O comum nos mortais
Dizer que quem ajuda a acabar com um sofrimento, antecipando uma morte certa e próxima, está a matar é um eufemismo invertido.
Corre por aí a tese, defendida pelos opositores à eutanásia e à ajuda ao suicídio, segundo a qual não há circunstâncias em que não deva ser punido quem, por misericórdia, antecipe a morte a pedido insistente de pessoa em sofrimento extremo. Tais opositores admitem, algo cinicamente, no entanto, que, se houvesse, nunca deveriam ser os médicos a agir.
Vamos por partes. Desmontar esta argumentação é obrigação de quem a deteta e vê uma oportunidade para a desmentir, mesmo sabendo que nunca conseguirá demover os seus divulgadores. O debate público, infelizmente, não parece conseguir ser suficiente para modificar a forma de pensar da maioria das pessoas. Aparentemente, quem se pronuncia em artigos de opinião ou noutros fóruns, vê-se a pregar aos convertidos. Porém, há destinatários que não são de desprezar – os deputados. Se formos claros e racionais, temos de acreditar que os detentores do poder legislativo tomarão as suas decisões no sentido certo da história, da civilização e do bem.
Assim, quando alguns profissionais de saúde dizem que o seu primeiro dever é curar e não matar, no que são acompanhados por preopinantes jurídicos, omitem o dever de assistir na morte. A assistência na morte não pode ser tida sempre como o seu evitar – a obstinação terapêutica é uma prática condenada por todos os códigos e diretivas. Reconhecer que se chegou ao fim, que a cura é impossível e não prosseguir com medidas geradoras de mais sofrimento é uma postura deontologicamente certa que ninguém pode considerar como atentatória do direito à vida. Sim, é verdade que esse reconhecimento é feito, muitas vezes, por ambas as partes: o doente e a equipa de saúde. Sim, tanto acontece ser o doente como o médico o primeiro a chegar a essa conclusão. Sim, há situações em que cabe ao profissional de saúde mostrar que ainda há algo a fazer e há situações em que ambos concordam que o fim está iminente.
Havendo, portanto, circunstâncias em que o mais correto é parar com medidas terapêuticas inúteis e com a realização de exame fúteis, importa reafirmar que as medidas paliativas são obrigação de quem cuida. Acabaram os tempos (acabaram mesmo?) em que, nos hospitais e nos domicílios, os médicos, reconhecendo que “não valia a pena investir”, abandonavam os doentes à sua sorte e esperavam pelo fim sem os assistir. Sim, há muito a fazer para prestar assistência às agonias – seja em unidades especializadas, seja em serviços “normais”, seja nas casas dos doentes. Para todos será óbvio que os cuidados paliativos hão-de ser prestados por profissionais de saúde e que têm de ser um recurso verdadeiramente disponível no nosso tempo.
Restam as tais circunstâncias excecionais em que, perante a inevitabilidade da morte e a inutilidade das medidas, é o próprio doente que pede a antecipação do desfecho. Quem melhor do que o médico que tentou curar ou que tentou aliviar para assistir nessa ocasião. Morte assistida = morte ajudada. Dizer que quem ajuda, compassivamente, a acabar com um sofrimento, antecipando uma morte certa e próxima, está a matar é um eufemismo invertido. É usar uma expressão agressiva para definir uma atitude moralmente aceitável.
Aproximando-se a discussão parlamentar de várias propostas de legislação para definir quais as condições em que deixe de ser considerado homicida e vá para a prisão quem, a pedido do próprio, ajude e assista no modo de antecipação da morte, iremos ver que a consciência de alguns deputados será assaltada por dúvidas relativas a várias questões. Oxalá a ideia peregrina de que não devem ser os médicos a assistir, caso se aceite que há circunstâncias excecionais para despenalizar a morte assistida, não ganhe vencimento.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico