A BlackRock guarda um segredo do BES

A maior empresa financeira do mundo tornou-se o terceiro maior accionista do BES, quando o banco já estava em dificuldades. Logo após a resolução vendeu as acções, que valeriam zero. Não se sabe a quem, nem por quanto.

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ERIC THAYER/ REUTERS

Neste negócio talvez só consigamos perceber a famosa “alma” – o segredo. O resto não se consegue explicar. O governador do Banco de Portugal não foi informado, a ministra das Finanças não soube, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) não tinha de saber. Os pormenores não são públicos. Mas a BlackRock conseguiu vender acções do BES quando o banco já estava sob medidas de resolução.

Foi, de facto, um “negócio estranho”, como admite ao PÚBLICO Maria Luís Albuquerque, a então ministra das Finanças. Sobretudo porque depois da resolução, decidida pelo Banco de Portugal (BdP) a 3 de Agosto de 2014, as acções do BES teriam “um valor próximo do zero” no mercado, explica a ex-ministra, que, garante, não foi informada desta mudança de donos numa parte significativa do capital do banco.

A única explicação para este negócio, “depois da perda de valor das acções” é, na opinião de Maria Luís Albuquerque, haver uma empresa que procurasse jogar com a hipótese futura de recuperar o investimento. Mas não há qualquer indicação sobre a intervenção de uma empresa de recuperação de créditos difíceis nesta venda.

Depois de várias vezes lhe ter sido colocada a pergunta, sem qualquer resposta, o BdP assegura ao PÚBLICO que o negócio não tinha de ser comunicado ao regulador (que gere o fundo de resolução): “As transacções de acções de instituições de crédito que não resultem na alteração da propriedade de uma participação qualificada não têm de ser reportadas ao Banco de Portugal.”

De facto, segundo a lei, apenas as alterações de capital superiores a 10% são consideradas “participações qualificadas”. Mas a lei diz também que o regulador deve ser informado, se a venda possibilitar “exercer influência significativa na gestão da empresa participada”. E essa é a parte que ninguém pode garantir, hoje.

A BlackRock não respondeu a várias tentativas de saber a quem e por quanto vendeu os 4,65% do BES. Ao longo dos últimos dois meses, a empresa americana adiou as suas respostas para, na última semana, declinar qualquer hipótese de entrevista ou resposta escrita. No domingo 6 de Maio o PÚBLICO traça o retrato dos riscos que a BlackRock coloca ao novo sistema económico pós-crise, num trabalho realizado pelo consórcio de jornalistas Investigate Europe.

O que se sabe é que a BlackRock comprou uma posição relevante no BES escassos seis meses antes da queda do banco. Chegou a deter cerca de 5% das acções, o que fazia dela o terceiro maior accionista, atrás da holding Espírito Santo e do banco francês Crédit Agricole, ou seja, foi o último accionista a chegar, e o primeiro a partir, no pior ano da história do BES.

Onze dias depois da resolução, a 14 de Agosto, num comunicado oficial do banco, foi noticiado que a BlackRock vendeu as acções, que valeriam zero euros, surpreendendo o Governo e os reguladores. Mais: “A alienação resulta de uma transacção executada fora de balcão.”

Na altura, o jornalista Diogo Cavaleiro do Jornal de Negócios tentou, também sem êxito, perceber o que se teria passado. A CMVM esclareceu-lhe que não tinha de ser informada, uma vez que a cotação bolsista das acções do BES estava suspensa desde a resolução.

Esse é o principal problema. Se as acções de uma empresa têm a cotação suspensa, não deveria ser garantida a necessidade de se conhecer qualquer venda “fora de balcão”? E o BdP, que geria o fundo de resolução, financiado pelo Estado, não deveria tentar saber tudo sobre as alterações dos principais accionistas?

O jurista Nuno Garoupa tem, desde 2014, avaliado os efeitos do mecanismo de resolução. Para ele, este negócio da BlackRock pode representar “uma enorme falha regulatória”. Nuno Garoupa explica: “A composição accionista deveria ser acautelada muito tempo antes da medida de resolução pelo normal acompanhamento pelos reguladores (neste caso até mais a CMVM do que o BdP)”. A identidade dos donos do BES depois da resolução devia ser “completamente transparente e sujeita a todo o tipo de autorizações regulatórias depois da medida de resolução. Se a venda aconteceu e foi legal, evidentemente trata-se de um problema da medida de resolução”.

Para Nuno Garoupa esta história revela o “amadorismo” com que foi aplicada a resolução. “Que ninguém no BdP, CMVM e antiga ministra saiba com quem e por quanto foi o negócio não é grave, mas sim triste, porque é o espelho do fracasso da regulação.”

Mas a história continua, ainda que este tema não tenha passado sequer pela exaustiva comissão parlamentar de inquérito ao BES. Não há uma única referência à BlackRock no relatório da comissão.

A BlackRock não tinha apenas acções do BES. Era dona também de 254,1 milhões de euros de dívida, distribuídas por cinco linhas de obrigações seniores.

Em 29 de Dezembro de 2015, apenas algumas horas antes da entrada em vigor da directiva europeia de recuperação e resolução bancária (BRRD), o BdP – que administrava o Novo Banco – decidiu transferir essas cinco linhas de obrigações para o “banco mau”, o BES., ou seja, a dívida, que no total valeria dois mil milhões de euros, tornou-se uma pesada perda para os seus donos, como a BlackRock.

Isto aconteceu, curiosamente, um mês depois de o Banco Central Europeu ter pedido ao BdP para preencher uma lacuna de capital de 1,4 mil milhões de euros no Novo Banco. Assim, ao transferir estes 2 mil milhões de euros de dívida para o “banco mau”, o BdP resolveu de facto o défice de capital apontado pelo BCE.

Mas nem o BCE nem o Governo português aplaudiram ou justificaram a decisão do banco central.

Curiosamente também, tudo isso aconteceu um mês após a tomada de posse do actual Governo e em plena crise do Banif (que veio a ser comprado pelo espanhol Santander, de que a BlackRock é um dos maiores accionistas). O ministro das Finanças (actual líder do Eurogrupo) Mário Centeno e a sua equipa ficaram até preocupados.

O grupo de investidores liderado pela BlackRock disse que iria “boicotar” a dívida portuguesa, porque a decisão do BdP criara “danos reputacionais” ao país. Enfrentando as maiores empresas de investimento do mundo “com raiva” (como descreveu o Financial Times) e ameaçando com uma acção legal, o Governo tentou moderar a crise.

Houve “várias” reuniões no Ministério das Finanças entre a BlackRock, a Pimco e outros representantes de fundos e o Governo, mas nada resultou.

Tudo isto abriu uma caixa de Pandora de “litígios”, disse um grande investidor ao Financial Times. Mas o processo judicial está a decorrer em Portugal. E essa é uma das razões pelas quais o BdP pode ter escolhido estas cinco emissões da dívida sobre as outras 52 emissões da dívida sénior emitidas pelo Novo Banco: estas eram as únicas cuja resolução de litígios jurídicos se resolvia em Portugal e também porque eram detidas por “clientes institucionais” que não estavam tão protegidos como os cidadãos comuns no âmbito da BRRD.

Enquanto os processos judiciais estavam a ser preparados – o escritório de advogados inglês Clifford Chance foi contratado para representar os fundos –, a economia portuguesa começou a crescer. E isso deixou o Governo com um pouco mais de confiança para lidar com a pressão.

E mesmo o “boicote” da BlackRock aos investimentos em Portugal pode ter chegado ao fim. Já em 2018, a empresa comprou mais acções de um banco português, o Millennium BCP, no qual agora detém 2,99%, fazendo uma inversão de marcha na sua estratégia.

Saiba mais sobre a empresa que está a transformar a economia moderna no caderno P2 de domingo 6 de Maio.

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