Nuno Valentim: uma apologia do real na arquitectura
O seu projecto de reabilitação dos Albergues Nocturnos do Porto foi premiado. Nos últimos três anos assumiu a responsabilidade e a autoria do projecto de reabilitação do Mercado do Bolhão, também no Porto.
O tema da reabilitação na arquitectura é antigo e complexo. Desde a “intervenção contemporânea no património existente” à mais simples expressão de “construir no construído”, têm sido várias as formulações que procuram descrever a especificidade da prática da reabilitação em arquitectura. Trata-se de um tema delicado, e quase sempre polémico, que nos coloca num campo de discussão e reflexão, em que muito para além das questões técnicas ou estéticas emergem questões políticas, ideológicas e filosóficas que nos confrontam com o tempo, a história ou a identidade. Como lidar com os vários tempos em confronto? Que valores deveremos preservar? Que identidade deveremos valorizar? No final, todas estas questões se condensam no exercício da arquitectura, no qual o arquitecto tem de dar uma resposta concreta, construída a partir da formalização de um desenho que sintetiza a sua posição face a um determinado conjunto de circunstâncias.
O Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) distingue todos os anos os melhores projectos de reabilitação com o Prémio Nuno Teotónio Pereira. Na semana passada o prémio relativo a 2017 foi entregue ao arquitecto Manuel Aires Mateus (n. 1963), na categoria Edifício Habitacional, com o projecto de reabilitação de um edifício para habitação e turismo em Lisboa, e aos arquitectos Nuno Valentim (n. 1971), Frederico Eça e Margarida Carvalho, na categoria Edifício de Equipamento, com o projecto de reabilitação dos Albergues Nocturnos do Porto. Distinguido recentemente com o Prémio Pessoa, Manuel Aires Mateus possui uma visibilidade internacional que Nuno Valentim ainda não alcançou a nível nacional. É docente na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto desde 2005, onde terminou o curso de Arquitectura em 1995. Com percurso marcado pelo tema da reabilitação, concluiu o doutoramento em 2016 com a tese Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação Contemporânea — Sobre práticas de reabilitação no património corrente. Nos últimos três anos, assumiu a responsabilidade e a autoria do projecto de reabilitação do Mercado do Bolhão no Porto. Consciente da complexidade da intervenção sobre o edificado, Nuno Valentim defende os processos e as estratégias, numa abordagem culta e sensível apoiada num saber técnico e teórico consolidado.
O Prémio Nuno Teotónio Pereira é promovido pelo IHRU com o objectivo de valorizar e divulgar as boas práticas de reabilitação urbana. Que significado tem este prémio e o que o distingue de outros prémios de arquitectura?
Existem duas dimensões deste prémio que são de facto interessantes. Uma é relativamente ao reconhecimento público pelos pares e não só: o júri é composto por várias entidades, desde a Ordem dos Arquitectos à Ordem dos Engenheiros, passando pelo próprio IHRU até aos arquitectos paisagistas. Existe essa dimensão pluridisciplinar. Há um outro aspecto muito importante: o júri vai ao sítio e visita a obra. Não avalia o projecto apenas por painéis ou dossiers de apresentação. À partida, o projecto dos Albergues Nocturnos é uma obra em que reconheço uma certa dificuldade de avaliação. É até, no limite, uma obra improvável para ser distinguida, porque pode nem se perceber muito bem a intervenção do arquitecto. Pode até parecer que a obra tem algumas imperfeições. O júri soube ler o antes e o depois, a transformação, o nosso trabalho, as circunstâncias muito concretas de execução do projecto. Durante a obra, os sem-abrigo permaneceram dentro do edifício. Isto era um dado da questão, ou seja, os Albergues Nocturnos do Porto não se podiam dar ao luxo de perder a subvenção da Segurança Social e as próprias pessoas não podiam ficar em suspenso durante este tempo. Por todas estas circunstâncias, esta distinção, por um lado, surpreende-nos e, por outro, deixa-nos muito contentes, claramente não só por nós, mas também pelo reconhecimento do trabalho notável que os Albergues desenvolvem. Uma dimensão muito interessante da particularidade deste prémio é que é uma distinção que reconhece e premeia o trabalho do projectista, do dono de obra e do construtor.
Em que consistiu o projecto? Como funciona a instituição?
A direcção dos Albergues Nocturnos do Porto contactou-nos, reconhecendo em nós capacidade para recuperar o edificado existente, conhecendo a nossa preocupação com temas sociais, como no caso do Centro Comunitário São Cirilo, o primeiro centro de apoio a imigrantes realizado em Portugal, e sabendo também que temos alguma capacidade para trabalhar com orçamentos limitados. A instituição tem uma história absolutamente extraordinária de trabalho e dedicação aos sem-abrigo, num trabalho realizado com uma profunda discrição, quase de anonimato. O projecto é fundamentalmente de reabilitação. Nesse processo de recuperação conseguimos passar de 60 camas para 75 camas. Como havia várias áreas do edifício principal que estavam muito degradadas, e que não podiam ser ocupadas, conseguimos ampliar, praticamente com a mesma área, a capacidade de acolhimento em 15 camas. Houve ainda uma pequena revolução interior que foi o libertar e o reposicionar das instalações sanitárias e dos banhos num sítio mais lógico, na zona central do edifício, libertando as fachadas para dar mais qualidade aos dormitórios, com mais luz natural, mais ventilação. Foi um exercício muito pragmático de reajuste interno do funcionamento, em que conseguimos manter praticamente todos os elementos estruturais, a caixa de escadas original e grande parte da compartimentação principal, sem grandes demolições interiores. Introduzimos também o aquecimento e a ventilação, dois aspectos fundamentais para melhorar o dia-a-dia e as condições de funcionamento e de higiene. Com estas pequenas operações cirúrgicas conseguimos também diminuir a capacidade de algumas camaratas, o que também era muito interessante para a Segurança Social e para os próprios Albergues, dado que havia camaratas muito extensas, com quase 20 ocupantes. Redimensionámos estes quartos e conseguimos uma ocupação máxima por camarata de dez camas. No edifício há ainda uma lavandaria industrial, uma rouparia e uma loja social que funciona com base em donativos. No edifício contíguo, onde não interviemos, existe um refeitório e uma zona com espaços de trabalho. Faz parte dos planos futuros dos Albergues a intervenção nestes espaços de modo a aumentar o número de refeições ao almoço e ao jantar.
Assistimos nos últimos anos a um grande aumento do volume de projectos de reabilitação, o que corresponde a um nível de encomenda muito diferente dos projectos realizados de raiz. No entanto, em termos mediáticos continua-se a dar mais destaque à construção de um novo equipamento como o novo Terminal de Cruzeiros em Lisboa ou em Matosinhos. Os arquitectos que fazem maioritariamente reabilitação acabam por ter menos visibilidade?
É uma pergunta pertinente e de difícil resposta. Toda a nossa cultura de escola, a minha, da Escola do Porto, insiste, e bem, até por força da prática dos nossos mestres e referências, que tudo é projecto. Existe esta recusa disciplinar, ligada à nossa filiação, de qualquer tipo de especialização. Portanto, reconhecer que existem práticas de reabilitação e práticas de construção de raiz é uma espécie de heresia. Eu, de alguma maneira, subscrevo esta posição. Mas, ao mesmo tempo, gosto de recordar também as palavras de Miguel Tomé, no livro Património e Restauro em Portugal (1920-1995) (FAUP Publicações, 2002): “Não sendo matéria de especialistas, as práticas de reabilitação e recuperação têm um modus operandi próprio.” Eu acrescentaria que a tua própria experiência e a tua própria cultura ganham na intervenção sobre o edificado existente uma sensibilidade maior, por força da interpretação e da análise do edifício pré-existente. Também reconheço que alguns dos nossos colegas acham que o tema da reabilitação está já um pouco saturado e que o que interessa é sobretudo falar de arquitectura. Parece-me que é um erro, sabendo que os grandes desafios que temos nos próximos tempos é sobretudo sobre o património existente. Uma vez mais, será algures aqui no meio que estará o debate equilibrado.
Há vários tipos de reabilitação, com diferentes escalas de intervenção. Qual o vosso posicionamento neste campo?
Antón Capitel, arquitecto e professor de Madrid, a propósito do famoso artigo de Ignasi Solà-Morales “Do contraste à analogia: novos desdobramentos do conceito de intervenção arquitectónica”, sintetiza muito bem esta questão através da identificação de dois terrenos muito confortáveis: o da mimésis (do restauro, da reprodução) e o do contraste (o actuar por contraste, puro e duro). Aqui no meio, entre a mimésis e o contraste, identifica uma vastidão de posições, a que chama “analogia”. O que eu sinto que acontece, caso a caso, é que nos colocamos entre a mimésis e o contraste mediante as circunstâncias — no sentido até da expressão que o próprio Fernando Távora utilizava, “o arquitecto e a sua circunstância”: programa, custos, herança, cruzamento da tua cultura com as circunstâncias locais, etc. Julgo que é isto que no fundo determina a tua posição neste vasto mundo que é a analogia. O Alexandre Alves Costa também refere isto: inevitavelmente, a tua posição é determinada por essas circunstâncias, mas também por essa dimensão autoral que trazes contigo e que levas para a concretização do projecto.
A discussão em torno do fachadismo está de regresso e em força. Como devermos enquadrar este fenómeno? Até que ponto é relevante manter uma fachada? Ou até que ponto é relevante manter ou demolir o miolo de uma casa numa reabilitação? Como nos situamos? Cada caso é um caso?
Essa é a resposta confortável. O coordenador nacional do programa Reabilitar com Regra, o professor e engenheiro Raimundo Mendes da Silva, disse no outro dia a esse propósito que “cada caso é um caso, mas para actuar em cada caso precisamos de um saber universal”. Um médico para actuar em cada caso precisa de um saber base transversal e universal, o melhor dos saberes, para depois poder actuar cirurgicamente. “Cada caso é um caso” é uma expressão óbvia em reabilitação. Mas também não se pode recusar que tem de haver aqui pontos de partida comuns. Por isso é que é tão importante distinguir as boas práticas na reabilitação. É muito louvável que isto seja feito, porque é importante que a sociedade reconheça o que é uma boa prática de reabilitação. As distinções pelas entidades públicas, pelas câmaras municipais, como o Prémio João de Almada, o Prémio Valmor, ou o Prémio IHRU, têm esse enorme valor. Voltando à questão do fachadismo: é verdade que há sinais preocupantes e assustadores relativamente ao sistemático desaparecimento de valores para lá da fachada do edifício, apesar de reconhecer o valor que a fachada do edifício tem e que, às vezes, em determinadas circunstâncias, é de facto até o único valor. Neste momento estou a reconverter a antiga Fábrica Ideal em Coimbra, que ardeu integralmente nos anos 80 e onde apenas sobreviveram as fachadas. A câmara, e bem, na minha opinião, impôs a preservação destas fachadas. Mas este é um exemplo extremo. A fachada pode ser em si própria um valor. Por vários motivos: não só pela sua composição construtiva, pela sua geometria, pelo seu detalhe arquitectónico, mas até pelo registo simbólico de um tempo, de um passado, de uma memória. Outra coisa é esta anulação sistemática e esta desvalorização de tudo o que está no interior do edifício, seja por questões especulativas, programáticas ou até pelas próprias imposições regulamentares. Há muito fachadismo hoje a ser produzido com a consciência tranquila de quem cumpre a lei — porque as escadas não cumprem a segurança contra incêndios ou as normas de acessibilidade. Temos hoje um quadro bastante favorável a que isto aconteça. É preciso que se diga e que se discuta isto.
Com o convite recente para integrar um painel consultivo no campo da reabilitação, a partir do trabalho desenvolvido na tese de doutoramento, que contributo poderá ser dado a este nível, mais próximo do poder político?
O meu doutoramento, pelo que percebi, chegou às mãos da secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho, no âmbito de uma resolução do Conselho de Ministros designada Reabilitar com Regra, através do seu coordenador nacional, o professor Raimundo Mendes da Silva, que me convidou a integrar um núcleo técnico, científico e consultivo, juntamente com o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e o IHRU, para pensarmos que tipo de ajustes regulamentares e políticos se deverão fazer no quadro normativo para tornar os processos de reabilitação mais sensíveis e adequados. A minha tese foi motivada pelo facto de na minha prática de intervenção, sobretudo no edificado corrente, ter de estar sistematicamente a contornar a lei para preservar os valores identificados. Eu sentia também que nós tínhamos este cuidado, mas que seguramente muitos outros projectistas poderiam não o ter, porque no fundo é mais confortável e prático cumprir a lei tout court, sem a questionar. Por isso fiz o meu doutoramento em que tentei elaborar uma matriz crítica da regulamentação existente que nos permitisse salvaguardar neste processo os tais valores identificados. Dito de outra maneira: um manual de boas práticas de reabilitação não regulamentares.
O debate sobre a nova vaga de construção nos centros históricos tem acontecido em vários fóruns, dos mais académicos e disciplinares aos mais transversais e informais. Que balanço se pode fazer do debate em curso?
É muito importante que haja debate e que estas questões sejam trazidas a público. Para além deste trabalho de ajuste regulamentar e político ao quadro normativo, que eu considero fundamental, penso que também não deveremos embarcar no extremo oposto da desregulamentação total — por exemplo, existe um decreto-lei actual em vigor para as habitações, o RERU (Regime Excepcional para a Reabilitação Urbana), que isenta totalmente de qualquer tipo de cumprimento regulamentar para edifícios de habitação com mais de 30 anos. É uma normativa transitória, que vai durar até 2020, que nasceu no Governo anterior numa perspectiva fundamentalmente economicista de promoção da reabilitação e que se revela preocupante pelos perigos que pode trazer ao não existir um balizamento regulamentar, sobretudo a nível estrutural. Existe esse perigo, essa tentação, num momento em assistimos a esta obsessão com o Airbnb, neste fenómeno de pintar paredes e pôr a alugar. O projecto tem de ser mais do que isto, não pode ser apenas tirar teias de aranha e pintar.
Apesar de tudo, por outro lado, estas intervenções mais superficiais e baratas acabam por não afectar a estrutura dos edifícios. As intervenções mais pesadas e musculadas é que podem destruir tudo, sem o tal cuidado e ponderação de que falávamos.
É verdade, é a tradicional esquizofrenia portuguesa do oito e do 80. Ou estamos numa espécie de loucura especulativa e normativa que faz rebentar com tudo, ou então entramos em problemas gravíssimos de situações muito complicadas em que não houve qualquer cuidado de verificação estrutural no momento de transição. No fundo, temos este sentimento de que há muita reabilitação a ser feita com o pêlo do cão, sem qualidade nem dignidade absolutamente nenhuma. Deveria haver, uma vez mais, um equilíbrio de meio-termo. Apesar de termos um quadro regulamentar extenso, complexo e pulverizado, temos regulamentos que até são bem feitos para a construção nova e que até poderiam ser uma boa base, através de outras experiências internacionais que já existem, para trabalharmos sobre elas e adaptá-las aos processos de reabilitação, sem desregulamentar totalmente.
A reabilitação do Mercado do Bolhão tem sido um processo muito complexo, com muitos atrasos e polémicas. Em que ponto está actualmente o projecto?
Depois do projecto de execução entregue, dos processos de revisão de projecto entregues, depois da dificuldade de gestão das especialidades técnicas, depois deste processo estar todo concluído, a obra vai finalmente ter início no mês de Maio. Vai existir entretanto um mercado provisório para os dois anos previstos para a obra. Tem sido, de facto, um processo muito complexo. O projecto para o Bolhão surgiu a partir de um convite da Câmara Municipal do Porto, com todas as limitações que o facto de ser um convite impõe. Eu sou apenas o autor do projecto geral de arquitectura. A câmara manteve-se como coordenadora do projecto. Foram sensivelmente dois anos de desenvolvimento do projecto em que um dos temas mais difíceis foi precisamente o acesso a uma cave logística que foi necessário fazer no centro do terrado, sem tocar na colunata periférica existente, para permitir as cargas e descargas, a oxigenação e o funcionamento do mercado de frescos municipal. A partir do momento em que o presidente da câmara, Rui Moreira, corajosamente assume manter radicalmente o mercado de frescos municipal a funcionar ali, sem nenhuma concessão, nós não podemos falhar com este objectivo. Todo o exercício passou então a ser o tratar e o cuidar dos dois objectos da classificação do Bolhão enquanto monumento nacional: o edifício e a sua actividade. Um dos pontos que levaram à classificação é a integridade do Bolhão como edifício, é esta praça descoberta, este recinto absolutamente extraordinário, este interior descoberto com um skyline único. O outro ponto, um dos grandes desafios deste projecto, consistiu em manter a actividade associada ao mercado, e não simplesmente uma caricatura da actividade. Tudo seria muito mais simples, se a opção fosse a implementação de um mercado com barraquinhas gourmet. Seria tudo muito mais simples, não haveria constrangimento regulamentar nenhum. O problema surge quando se pretende implementar um mercado de frescos diário, em que não podemos ter um raio de sol a tocar num vegetal, não podemos ter um pombo ou um animal a tocar nos frescos, em que só podemos ter uma liga metálica em contacto com os alimentos, em que temos de cumprir níveis de ventilação e de higiene absolutamente brutais para que o Bolhão possa concorrer com qualquer grande superfície com a melhor qualidade e atendimento possível. Passámos a ter aqui um desafio em que não podemos falhar.
Ao nível do desenho, quais foram as grandes opções da vossa intervenção?
Optámos por manter as cinco ruas de comércio que já existem no interior do Bolhão e por cobrir estas ruas substituindo as barracas existentes por uma reinterpretação dessa geometria que lá existe actualmente — ou seja, em vez de cobrirmos o Bolhão integralmente ao nível do segundo piso, propusemos uma cobertura à cota baixa, no terrado, que faz esta protecção do mercado em si. Se fosse um mercado sazonal, de um dia, dois dias, em que montas a tenda e desmontas, nada desta carga regulamentar seria necessária. Um mercado diário tem esta sobrecarga tremenda de normativas. A lei diz que o mercado tem de ser coberto, cintado e encerrado. Nós fizemos um híbrido, com zonas de abertura e descompressão para promover a ventilação. Não necessitámos de cobrir integralmente, porque temos a galeria, ou seja, há uma sobreposição entre a nossa cobertura e a galeria original que permite a tal ventilação. A nossa peça não toca assim em nada da pré-existência. No limite, a cobertura tem um aspecto até reversível. É uma estrutura metálica muito inspirada no Lavadouro de Arca de Água, naquelas estruturas de apoio antigas da Alfândega do Porto e das estações de comboio. É portanto uma peça que retoma a geometria das barracas existentes do Bolhão, com aquele ondulado das coberturas que lá estavam, e de alguns elementos da arquitectura de ferro do Porto. Foi um trabalho feito com algum cuidado pela nossa equipa e com um investimento muito grande para que essa transformação tenha, de alguma maneira, momentos de continuidade com a história, o passado e com o que lá está hoje. No perímetro exterior do Bolhão haverá uma transformação grande, porque iremos repor a solução original entretanto completamente adulterada. Actualmente existem duas ou três montras originais, mais dois ou três sistemas de toldos originais. Pegámos nesses restos e vamos recompor quase mimeticamente o que antes existia. Esta abordagem da mimésis para nós, neste ponto, é muito clara. Estamos a trabalhar no Mercado do Bolhão, num monumento nacional. É um caso de restauro. O que se está a passar aqui no Porto é algo muito corajoso, não só pela escala da intervenção, mas também pela própria vontade de fazer este mercado de frescos. A câmara procurou preservar o mais possível os vendedores que lá estão, alargando os direitos sucessórios aos descendentes directos, com reuniões individuais com cada comerciante, cada inquilino. Naturalmente há transformações. Por dentro e por fora, o Bolhão estava num estado de grande degradação, a aguardar uma intervenção há 30 anos, com condições que estavam já no limite de tudo o que era aceitável. É notável ter-se conseguido finalmente avançar com as obras.
Para terminar, uma questão sobre o desfasamento que existe entre a arquitectura produzida e divulgada a partir de arquitectos consagrados, como Álvaro Siza, Eduardo Souto Moura, Carrilho da Graça, Gonçalo Byrne, Aires Mateus, em contraponto com uma arquitectura mais corrente e anónima. Como nos poderemos posicionar perante esta arquitectura a duas velocidades?
Não estou nada preocupado com a visibilidade da intervenção ou do discurso. Interessa-me muito mais actuar e ter efeito numa determinada circunstância — por exemplo, acho que este prémio para os Albergues Nocturnos é fantástico. Quando ouvimos depois o caso da Raríssimas, com estes milhões que circulam de forma absolutamente louca, sinto que estamos perante dois casos extremos. Os Albergues Nocturnos do Porto trabalham com poucos meios, sem mediatismo, de forma discreta, a tentar melhorar as condições das pessoas que lá estão. Estas associações não têm facilidade em chegar a esses milhões. Os Albergues precisavam agora de ajuda para remodelar a cantina e os espaços de trabalho e não têm acesso aos fundos. Quando eu agora vou aos Albergues, respira-se um novo ar, uma nova auto-estima dos funcionários, um novo brio. Sentimos esta diferença naquilo que a arquitectura pode mudar no dia-a-dia das pessoas. Interessa-me que este prémio possa dar visibilidade e ajuda ao trabalho desenvolvido pelos Albergues. Fazem um trabalho notável e são de facto a primeira linha de apoio às pessoas que querem dar o primeiro passo para sair da rua. Não é uma operação arquitectónica mediatizável. Na verdade, pode nem se perceber muito bem o que o arquitecto andou aqui a fazer. Percebo que não seja uma coisa que entusiasme os editores e os curadores.
Tem-se falado muito da Escola do Porto e da continuação e importância do seu legado. Qual o significado da Escola do Porto no âmbito da vossa prática?
Numa altura em que se fala muito das questões da escola e de gerações, eu sinto-me, por um lado, com os livros dos mestres sempre na mesa — do Siza, do Távora, do Souto Moura —, e, por outro lado, sem recusar essa herança, sinto-me próximo de uma lógica muito realista, de trabalhar com a circunstância, de trabalhar com a realidade. O papa Francisco fala muito nisto, do real, da realidade ser uma espécie de matéria construtora da tua resposta. É algo de que nós sempre ouvimos falar, a propósito da importância do contexto. Mas a realidade é algo, tal como a circunstância, um pouco mais abrangente do que o contexto, ou seja, a realidade enquanto principal motor das tuas respostas arquitectónicas é uma ideia que me agrada imenso — mais do que importar um modelo ou procurar o statement justo, ou estar obcecado com que o projecto bata todo milimetricamente certo. Não quero fazer uma apologia da imperfeição, mas sim uma apologia do real, como o real pode contaminar o teu trabalho e torná-lo mais verosímil, menos distante, mais próximo. Há um livro do padre Vasco Pinto de Magalhães que se chama Não há Soluções — Há Caminhos (Edições Tenacitas, 2012). Defendo muito mais o caminho, sabendo que um depende do outro e que a estratégia e a táctica se contaminam. Estou de facto muito mais preocupado com as questões estratégicas e processuais. Por que razão é que eu gosto mais das fotografias de obra em curso do que as fotografias finais? Não é pela estética da patine. É por aquilo que ela significa, por causa do processo, das inúmeras pessoas envolvidas. É uma fotografia que convoca muito tempo, muito processo, muita gente, e não só uma espécie de solução final. Evoca um caminho.