Habitação: idiotas e parvos

Não querendo ser idiota, permitam-me ser parvo: creio que precisamos urgentemente de um novo mapa para nos orientar na actual geografia dos problemas. A partir da habitação podemos pensar tudo, desde a segurança social até às finanças

Foto
Jason Briscoe/Unsplash

“Há mais idiotas (incluindo professores) por metro quadrado na universidade do que numa tarde de sábado no El Corte Inglés.” As palavras não são minhas, mas do arquitecto espanhol José Antonio Coderch, quando inquirido, em 1980, sobre a qualidade do ensino superior. O homem estava, de facto, bastante chateado com aquilo que as faculdades de Arquitectura consagravam como boas práticas profissionais. Revoltado, escrevia: “Precisamos que milhares e milhares de arquitectos pelo mundo fora pensem menos em Arquitectura (com letra grande) ou em dinheiro e mais no seu trabalho de arquitecto. Que trabalhem com uma corda atada ao pé, para que não possam afastar-se demasiado da terra em que têm raízes e dos homens que melhor conhecem, apoiando-se sempre numa base sólida de dedicação, boa fé e honradez.”

Mais ou menos pela mesma altura, John Turner — também arquitecto mas muito diferente do Coderch — escreveu outro texto que pode ser útil para dar ao parágrafo anterior um sentido um pouco mais construtivo. Para o inglês, que tinha estudado processos de construção de habitação com maior envolvimento dos cidadãos, a questão não era bem definir “o que é que a habitação É”, mas antes “o que é que a habitação FAZ”. A habitação não é importante por ser feia ou bonita, mas porque permite que as pessoas construam um percurso de vida condigno e acessível a uma maioria social. É claro que isto só pode acontecer se percebermos que a habitação deve ser abordada não tanto como um objecto mas, antes, como uma ferramenta útil para se poder viver uma vida boa.

Para perceber o que a habitação FAZ em outras áreas da nossa vida, é útil referir o que aconteceu em Yonkers, Nova Iorque, nos 80 e 90. Como descreve Lisa Belkin no livro Show me a Hero, o juiz federal Leonard Sand virou do avesso um caso de segregação escolar ao apresentar um argumento sem precedentes: “A razão pela qual as escolas de Yonkers estavam segregadas era porque a habitação em Yonkers era segregada. Negros e hispanos iam às mesmas poucas escolas porque eram forçados a viver nos mesmos bairros e qualquer ordem judicial para mudar as escolas teria também de mudar os bairros”. Foi isso que o juiz mandou fazer: construir habitação a custos controlados no centro da cidade como maneira de melhorar o sistema educativo.

No livro Agents of Change, Cels, de Jong e Nauta relatam outro exemplo, acontecido em Nova Orleães, onde a destruição causada pelo Katrina exponenciou o número de sem-abrigo. Neste contexto, Martha Kegel, directora de um consórcio de organizações não-governamentais, encontrou a desculpa para concretizar aquilo que sempre tinha perseguido: mais do que sarar as doenças de quem vivia na rua, o objectivo deveria ser dar casa a quem não a tinha para, deste modo, construir percursos de vida. A mudança de paradigma passou por convencer as instituições da área da saúde de que dar um tecto aos sem-abrigo era uma necessidade médica. "Como fornecedor de saúde, tens de usar o teu dinheiro para alojar as pessoas, porque as atenções médicas não vão funcionar se não há habitação.” Muitos médicos, se pudessem, receitariam uma casa.

Diz uma colega investigadora que tudo o que não se resolve na habitação torna-se despesa no resto das políticas. Leio no Google que os gregos utilizavam a palavra idiótes para designar aos egoístas que se desinteressavam pelos assuntos públicos, o que me faz algum sentido. O filósofo Ortega y Gasset, que escreveu bastante sobre a universidade e a sua missão, descreveu um dos sintomas modernas desta idiotice: o especialista que sabe tudo sobre a sua área e ignora tudo o que fica fora dela. Não querendo ser idiota, permitam-me ser parvo: creio que precisamos urgentemente de um novo mapa para nos orientar na actual geografia dos problemas. A partir da habitação podemos pensar tudo, desde a segurança social até às finanças. Nem ética nem estética: é uma questão de ordem pública, especialmente cara para aqueles que têm mais dificuldades em aceder às vantagens de vivermos em sociedade.

Sugerir correcção
Comentar