Informação, transparência salarial e (des)igualdade
Permitir o acesso aos dados sobre remunerações e características dos trabalhadores, de forma controlada e anonimizada, aumentará o poder negocial destes últimos e será um forte instrumento de combate à descriminação.
Imagine o leitor deste artigo que pretende adquirir um eletrodoméstico, comprar uma viagem ou contratar um fornecedor de energia. Antes de tomar uma decisão, o mais certo será consultar vários comparadores de preços que estão disponíveis online de forma gratuita. O acesso fácil e simples à informação sobre preços e qualidade dos produtos ou serviços pretendidos é um requisito fundamental para fazer uma boa compra. Imagine agora que se candidata a um emprego ou pretende renegociar o seu contrato de trabalho com o atual empregador. O seu conhecimento sobre os salários praticados é muito menor do que o conhecimento a que o futuro ou atual empregador tem acesso, sendo a assimetria de informação tanto maior quanto maior for a empresa. Por exemplo, os dois maiores grupos empresariais privados nacionais, Jerónimo Martins e SONAE, empregam no seu conjunto quase 150 mil trabalhadores (104 mil na Jerónimo Martins e 40 mil na SONAE), dos quais têm conhecimento individualizado e detalhado dos perfis e das remunerações dos seus trabalhadores. Não é difícil de perceber que na hora de (re)negociar o salário, melhor informação corresponderá a maior poder negocial.
A assimetria no poder de negociação entre empregadores e trabalhadores assenta não só no conhecimento que os empregadores têm da distribuição da remuneração dos seus trabalhadores, mas também na que se verifica no seu sector de atividade e/ou região. No caso limite em que cada trabalhador apenas conhece o seu salário, a empresa aumenta o seu poder para lhe pagar o seu salário de reserva, ou seja, o salário mais baixo que o trabalhador está disposto a aceitar, ao mesmo tempo que tem a possibilidade de exercer um poder discricionário na definição da remuneração de indivíduos igualmente produtivos. Deste modo, um acesso desigual à informação limita, por um lado, a capacidade negocial dos trabalhadores, e, por outro, abre espaço à desigualdade entre trabalhadores. Este último aspecto observa-se, por exemplo, na desigualdade salarial entre homens e mulheres. É neste contexto, que um número crescente de autores, como Cynthia Estlund, em “Extending the Case for Workplace Transparency to Information About Pay”, argumentam que a transparência tem o potencial de diminuir as disparidades salariais entre trabalhadores semelhantes, com destaque para a desigualdade por género ou raça, dentro de empresas e instituições.
A partir do momento em que cada um de nós conhece o salário de outros trabalhadores, da mesma empresa ou de empresas do mesmo setor ou região, pode de imediato detetar a discricionariedade de remuneração, e, enquanto colectivo, aumentar o seu poder negocial. De acordo com o 8º Relatório Acompanhamento do Acordo sobre a Retribuição Mínima Mensal Garantida, o acréscimo salarial para os trabalhadores portugueses que entre abril de 2016 e abril de 2017 mudaram de posto de trabalho, foi de 7,8% em termos nominais e de 6,3% em termos reais, ou seja, a mobilidade entre empresas poderá garantir acréscimos salariais bem mais expressivos do que os que resultam da atualização anual das tabelas salariais decorrente da contratação coletiva. Assim, há, de facto, um forte incentivo para que as empresas defendam a não divulgação das remunerações entre os trabalhadores, não só para prevenir reações de insatisfação por parte dos trabalhadores, mas também para limitar a maior mobilidade de trabalhadores entre empresas o que, no longo prazo, pode resultar numa alteração da distribuição salarial dentro da empresa, tal como concluem o economista David Card e co-autores, no trabalho “Inequality at Work: The Effect of Peer Salaries on Job Satisfaction”, publicado na American Economic Review em 2012.
Em Portugal, ao longo das últimas décadas, a disponibilização de informação sobre a atividade social da empresa constitui uma obrigação anual a cargo dos empregadores. A informação sobre remunerações constante no Quadro de Pessoal, embora deva estar disponível a todos os colaboradores da empresa, nem sempre assim acontece. Por outro lado, só por via informal e imperfeita é que os trabalhadores conhecem as remunerações auferidas noutras empresas por trabalhadores com características semelhantes, limitando a sua mobilidade entre empresas e o seu poder negocial.
O segredo é alma do negócio, segundo um velho provérbio português. No caso concreto do mercado de trabalho, o segredo interessa muito mais ao empregador do que ao trabalhador. Permitir o acesso aos dados sobre remunerações e características dos trabalhadores, de forma controlada e anonimizada, aumentará o poder negocial destes últimos e será um forte instrumento de combate à descriminação. Esperemos que as recentes alterações ao regime de proteção de dados não limitem ainda mais o acesso a esta informação, prejudicando aqueles que presumidamente pretendem proteger.