Nós, muçulmanos
O Estado deve escutar e exibir a plurivocalidade do novo panorama do Islão em Portugal, articulando-se e apoiando também as novas associações emergentes.
A Comunidade Islâmica de Lisboa celebrou no passado dia 16 de Março os seus 50 anos. Desde a sua fundação em 1968 (a Mesquita Central de Lisboa só veio a iniciar a sua construção em 1979) que tem tido um papel fundamental na articulação do Estado português com os muçulmanos que o integram ou visitam, nacionais e estrangeiros, residentes, imigrantes, refugiados ou visitantes. O secretário-geral das Nações Unidas esteve presente nas comemorações, enquanto tal, fazendo-se acompanhar de um número admiravelmente discreto de guarda-costas. Congratulemo-nos por tudo isso e felicitemos a CIL. Mais ainda porque de forma clara (e ao contrário doutros discursos oficiais), António Guterres quebrou publicamente um dos mitos nacionais: o de que nós não somos racistas. “Não devemos ter ilusões: em Portugal também há manifestações de racismo, também há manifestações de xenofobia, também há formas de anti-semitismo, de ódio anti-muçulmanos.” Contudo, e como também disse, a coesão social, a “tolerância” (um termo ainda não erradicado e que ecoou em todos os discursos) e o respeito mútuo, não nascem espontaneamente nas sociedades: exigem engajamento persistente dos governos, da sociedade civil, dos leaders religiosos.
Poderemos, eventualmente, em Portugal congratular-nos por comparação, com a discrição relativa de expressões radicalizadas do Islão e do racismo, mas nunca nos podemos orgulhar disso. Primeiro porque nunca poderemos orgulhar-nos daquilo que não somos como um todo (longe disso) e, segundo, porque se o aparentamos ser, isso deve-se mais a contingências históricas e sociais, e aos percursos particulares do nosso passado (nomeadamente o colonial) e presente, que configuraram uma diversidade cultural e religiosa contemporânea que escamoteia e acomoda profundas assimetrias sociais e económicas, do que ao nosso investimento real em sê-lo.
A CIL tem uma genealogia que a radica nos interesses portugueses coloniais pela construção de um bom muçulmano. Foi constituída há 50 anos por elites de origem moçambicanas que, por serem elites, rapidamente se integraram no tecido económico, social e até político da ex-metrópole. Esse percurso fundacional liderado por um grupo social privilegiado e com fortes heranças culturais ‘portuguesas’ (como a língua) facilitou-lhe a tarefa, que não deixa por isso de ser meritória, de participação na integração dos muçulmanos mas, ao mesmo tempo, contribuiu para o escamoteamento das dificuldades económicas e sociais de alguns grupos invisibilizados (por exemplo da comunidade guineense, mais apreendida pela diferença ‘racial’ do que ‘religiosa’).
Embora sem o fazer explicitamente, a CIL tem-se assumido como representante da comunidade islâmica portuguesa sunita (ao lado da comunidade ismaelita, os nossos bons xiitas, com um percurso semelhante). A sua genealogia, a par da sua efetiva eficiência, tem, de certa forma, legitimado essa representatividade, que o Estado português — através da sua convocação pública para tudo o que tem que ver com Islão e muçulmanos — tem sancionado.
Contudo, a partir do início do século XXI, com novos fluxos de imigração para Portugal (sobretudo de bangladeshianos e paquistaneses), o universo de muçulmanos transformou-se cada vez mais naquilo que Abdoolkarim Vakil, na crónica da CIL apresentada na comemoração, referiu como “uma comunidade de diásporas”, desligada de uma genealogia colonial portuguesa, com vivências cada vez mais diversas do Islão (incluindo as de um sufismo embebido nas novas práticas New Age) e com níveis de integração social e económica cada vez mais diferenciados. O número de muçulmanos hoje em Portugal deve rondar os 50.000 (não sendo estes, obviamente, números oficiais) e o número de mesquitas será de cerca de 30, algumas delas constituídas em torno de pertenças religiosas, mas também nacionais ou étnicas diversas. É importante garantir também a visibilidade e expressão no espaço público destas novas comunidades que constituem o nosso islâmico presente.
Os nossos manuais escolares ainda ignoram os árabes e o Islão, excluindo-os da nossa genealogia; o nosso património islâmico — com honrosas exceções entre as quais a de Mértola Vila Museu, que muito contribuiu para a construção de uma imagem pública positiva do Islão em Portugal e que acompassou o desenvolvimento da CIL — ainda não foi resgatado do enterramento do Estado Novo; os nossos media insistem em importar um recorte e modelos de notícia indutoras de islamofobia mas, sobretudo, e mais importante, muitos de nós, muçulmanos e também não muçulmanos, vivemos à margem num mundo cada vez menos inclusivo socialmente, e onde a exclusão reproduz fraturas históricas desenhadas sobre as categorias de raça e de religião. E, perante isso, não haverá medida islamófila que contrarie a radicalização (de qualquer tendência) ou a islamofobia (ou qualquer outra forma de racismo). De resto, islamofobia e islamofilia são duas faces da mesma moeda, uma o gémeo mau da outra: ambas alimentam a sedimentação do ‘outro’, congelando a ideia do que é ser muçulmano na sua pior ou melhor representação, mas sempre esconjurando o princípio de que os muçulmanos fazem também parte de nós.
A CIL, tal como mais recentemente outras comunidades islâmicas em Portugal, essas sim, podem orgulhar-se: ao mesmo tempo que algumas se esforçaram por dar visibilidade a um Islão embebido na nossa história (muitas vezes chamando até si a ingrata tarefa de a pacificar) para exibir, ainda que discretamente, um Islão presente alheio aos radicalismos reforçados pelos media, todas se transformaram, com o tempo, em associações culturais e de apoio social, alargando práticas caritativas islâmicas (de resto muito semelhantes às do cristianismo) e desempenhando um papel integrativo que, em muitos casos, o Estado não garante ou, noutros, fazendo-o em articulação com ele. O Estado deve escutar e exibir a plurivocalidade do novo panorama do Islão em Portugal, articulando-se e apoiando também essas associações emergentes, sem ceder ao impulso para a sua promoção no pacote do multiculturalismo cosmopolita para consumo, nem ao ímpeto alarmista e securitário que mina organizações congéneres um pouco por todo o mundo (em países de maioria e de minoria islâmica). Porém, por cima disso tudo, deve empenhar-se em ser, ele próprio, o garante último, para todos nós, de políticas efetivas de inclusão social e cultural e de cuidar uma narrativa identitária que nos permita, se não poder dizer com propriedade que não somos racistas ou islamofobos, orgulhar-nos do facto de que tudo faremos para não o ser.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico