Volta ao mundo à mesa de um brunch
Ana e Rita Gil Pires adoram comer e viajar. Das paixões de infância nasceu o projecto Brunch do Mundo, agora na Lx Factory.
Em miúdas, o globo da família era alvo recorrente das brincadeiras de Ana e Rita Gil Pires. “Virávamo-lo, apontávamos para um país e depois íamos pesquisar sobre ele”, recorda Ana, hoje com 33 anos. Gostavam de saber qual era a capital, de descobrir mais sobre as tradições, a história, a gastronomia. Debaixo do indicador acabava quase sempre a Rússia, o mais extenso país do mundo, e as duas irmãs andavam fascinadas com o Kremlin. Quando o jogo era imaginar o casamento de sonho, Rita tinha sempre a resposta na ponta da língua. “Vai ser aos 24, de branco, com lua-de-mel em Moscovo”, recorda. “Aquelas cúpulas [do Kremlin] faziam-me lembrar gelados”, ri-se a mais nova das duas irmãs.
Para ela, a gastronomia sempre foi uma paixão. “Lembro-me do meu pai dizer: ‘Tu não comes para viver, tu vives para comer’”, conta. “Sempre me entusiasmei muito com a comida e, mais tarde, quando tive um blogue, era precisamente sobre restaurantes.” No DeGostar, entretanto adormecido por falta de tempo, Rita contava a experiência que tinha tido em cada espaço visitado, entre histórias e avaliação dos pratos. Já a irmã, três anos mais velha, cresceu a preferir pôr as mãos na massa e organizar jantares temáticos lá em casa, em que procurava sempre recriar pratos de outras latitudes. Desde criança que têm negócios juntas. Ana a fazer, Rita a ajudar e a vender. “Pulseiras, desenhos, tudo e um par de botas.”
Ouvindo as histórias, parece inevitável que hoje sejam protagonistas de uma volta ao globo à mesa de um brunch. Rita, adepta da refeição mais popular do momento, estava sempre a tentar arrastar a irmã para experimentar mais um menu. Mas Ana, “farta dos brunches convencionais”, recusava quase todos os convites. Até que desafiou a irmã para fazerem algo diferente lá em casa. “Mas queres o quê? Um brunch do mundo?” Perceberam que tinham acabado de ter uma “grande ideia”. Não só para aquele dia como para um negócio juntas, uma vez que o conceito ainda não existia em Portugal.
De repente, já estavam a pensar nas ementas, a perceber que aquilo “podia ser engraçado na temática dos continentes”, com um país diferente representado em cada prato. “Entretanto fui passar o meu aniversário ao Porto e já ia com as ideias todas a fervilhar”, recorda Ana. “Dei por mim a comprar toalhas para a Europa, tecidos para a Ásia e a dizer: ‘Rita, isto vai acontecer, porque já estou a comprar tudo’.”
O projecto Brunch do Mundo nascia um mês depois, em Maio do ano passado, com mesa para dez pessoas no terraço da casa de uma amiga. Na véspera de cada refeição, enviavam uma mensagem com a localização “secreta” e os restantes “dados de embarque” aos clientes inscritos. A ideia era preparar um brunch todos os sábados, com uma bebida, uma sopa, dois pratos e três sobremesas, inspiradas em países diferentes. Um continente por cada mês. Primeiro a América, depois África, Ásia e Europa.
“Quando dou conta, já estava a fluir muito bem. Tínhamos sempre a casa cheia, com pessoas a pedir mais vagas porque nunca conseguiam ir”, recorda Ana. É ela quem lidera a cozinha, quem faz o grosso da pesquisa, do teste das receitas e das compras. Rita passou a ajudar de forma mais permanente desde que se mudaram para a Kitschen, a cafetaria oficial da Cowork Lisboa, localizada na Lx Factory. O conceito mantém-se em tudo semelhante na “segunda temporada”, a decorrer desde Outubro, mas a comprida mesa de madeira tem espaço para o dobro dos comensais. “Agora faz sentido estar com a minha irmã, porque uma coisa era ela cozinhar para dez pessoas, outra é cozinhar para 20.”
A meio de uma manhã de sábado, encontramo-las atarefadas na minúscula cozinha, numa coreografia milimétrica de preparados com aroma a Médio Oriente. O “continente” é uma das novidades, assim como a estreia da Oceânia, no final do ciclo. “Sempre que for uma área do globo importante gastronomicamente, vamos ter gosto em representá-la, se tivermos conhecimento e uma história por detrás disso”, revela Rita. Parte do novo menu é inspirado na viagem que Ana fez durante um mês pelo Irão. Na bagagem, trouxe tudo o que pôde. A pasta de sésamo, as limas secas, os chás, as gomas. Até os utensílios que os participantes têm de utilizar e partilhar para comer a sopa dizi, feita à base de grão e de borrego.
“Entusiasmei-me muito com a sopa. Não tem um sabor assim tão diferente daquilo a que estamos acostumados, mas o facto de termos de separar o caldo do resto e partilhar um instrumento para criar uma pasta e comê-la com o pão cria alguma relação entre as pessoas que estão à mesa”, diz. É isso que se quer numa sala repleta de desconhecidos e Rita e Ana esforçam-se por promover as interacções e criar um ambiente descontraído. Sempre que chega um novo prato, falam um pouco do país, das origens da receita, da cultura ou das histórias que viveram naquele destino (quando já o visitaram).
No Irão, Ana teve a sorte de partilhar a cabine de comboio com um guia turístico local. “Ficámos a falar a viagem inteira, eu comecei a mostrar-lhe o mapa que tínhamos definido e ele deu-nos algumas dicas”, recorda. Do trajecto ficou a promessa de que ele os haveria de levar num “roteiro gastronómico em Teerão” quando regressassem do passeio ao Sul do país. “O final da viagem foi feito com ele, a experimentar sítios e a visitar os mercados. Foi ele que nos passou algumas receitas, incluindo o dizi.”
Para Ana, a forma como se confecciona a comida ou as especiarias que se utilizam revelam muito sobre de onde viemos ou que raízes temos. Acredita que “a identidade dos países está muito na comida”. Por isso, quando viaja tenta chegar às pessoas, conhecê-las, perceber o que comem e o que gostam de cozinhar. “Tento sempre conhecê-las através do estômago”, ri.
As memórias das viagens que Ana e Rita foram fazendo ao longo dos anos despontam em diferentes brunches. Como a primeira viagem que fizeram juntas: um interrail pela Europa. Ou os périplos de Rita pela América Latina. A sopa do menu América, por exemplo, é uma ajiaco que experimentou na Colômbia. Já da Argentina veio o “pote gigante de doce de leite”, que “ela não podia trazer nunca [na mala] mas mandou pelo correio” porque queria que a irmã o recebesse. Meses depois, já lançada a ideia do projecto, dali acabaria por sair o recheio dos alfajores que fecharam o menu inaugural.
Com a aposta definitiva no conceito, a gastronomia tornou-se ingrediente principal das viagens. “Começámos a fazer já com o sentido de trazer coisas para o projecto”, assume Rita. Primeiro no Irão, agora em Cuba. No futuro, querem estender o Brunch do Mundo aos domingos, mas “numa vertente completamente diferente”, revelam, sem querer levantar muito o véu.
O projecto cresceu tanto, em tão pouco tempo, que Ana decidiu despedir-se da empresa onde trabalhava como designer gráfica. “Neste momento, a cozinha é o que faz sentido para mim. É a minha paixão e aquilo que eu quero desenvolver.” Tudo o que Ana e Rita sabem de culinária, no entanto, vem das experiências em casa, das pesquisas na Internet e entre os amigos, dos livros de receitas e das viagens pela gastronomia dos outros países. “Ela está sempre a dizer: ‘Isto é amor’”, conta Rita. “‘Isto só está a correr bem porque é amor.’ E se calhar é mesmo isso.”