O mal-estar nos hospitais públicos
Um profissional insatisfeito conduz muitas vezes a maus cuidados aos doentes.
As associações de profissionais de saúde são unanimes na denuncia de um mal-estar permanente e profundo daqueles que trabalham nos hospitais públicos. Vários estudos foram realizados pela Ordem dos Médicos que apontam para um maior número de profissionais a sofrerem de burnout.
A síndrome de burnout é definida, por Codo e Menezes (2002), como uma condição na qual o trabalhador perde o sentido da sua relação com o trabalho, de forma que as coisas já não importam mais e qualquer esforço lhe parece ser inútil. A síndrome aparece como uma reação à tensão emocional cronica gerada a partir do contato direto e excessivo com outros seres humanos, particularmente quando estes estão preocupados ou com problemas.
Vários casos de suicídio foram diagnosticados em países, como a França, onde também a mercantilização da saúde foi instituída. Por cá, além do aumento de casos de depressão, provoca a fuga de profissionais de saúde para o estrangeiro na esperança que o seu trabalho seja valorizado e dignificado.
Convenhamos que é insuportável para um médico que um gestor venha explicar-lhe quanto tempo deve durar uma consulta com um asmático ou uma cirurgia, e um profissional insatisfeito conduz muitas vezes a maus cuidados aos doentes.
O "mal-estar" dos cuidadores nos hospitais deve-se à reestruturação do sistema de gestão interna para um modelo de gestão privada, iniciado em 2002, com os estabelecimentos públicos de natureza empresarial (EPE), que sem ética de administração e de organização no sistema de cuidados de saúde introduziram, obrigatoriamente, sem a mínima explicação aos trabalhadores, regras empresariais da era industrial, com fins lucrativos, e políticas de redução de custos.
O modelo de gestão privada é responsável pela destruição das carreiras médicas e da introdução dos contratos individuais de trabalho. A nomeação de gestores com poderes exorbitantes desequilibrou a relação de poder entre os cuidadores e a administração, agravada por direções médicas selecionadas com critérios a maior parte das vezes discutíveis e nomeadas ad aeternum, sem serem avaliadas, em que a filiação partidária conta mais que o percurso curricular.
Os administradores têm dificuldade em assumir que, ao contrário do que se passa nas empresas, em que os funcionários superiores são os agentes programadores e decisores, enquanto os operários, situados no fim da escala, são apenas executores, nos hospitais dá-se o contrário: são os médicos, situados na frente de trabalho, os principais programadores e decisores.
Salvo raras e honrosas exceções, os nossos gestores hospitalares aplicam religiosamente as teorias de F.W. Taylor (1856-1915) desenvolvidas nos finais do seculo XIX e aplicadas na indústria capitalista. Fortemente criticadas por inúmeros cientistas por desumanas, com imposição de ritmos de trabalho que não têm em conta a fadiga. Impondo a intensificação da produção com a instauração de movimentos repetitivos considerados mais económicos, regulando a velocidade do trabalho, sobre cronometragem, baseando-se nos trabalhadores mais rápidos, eliminação de tempos mortos que não são mais que pausas necessárias (veja-se a construção dos novos hospitais de Cascais e Loures, em que praticamente os profissionais raras vezes se encontram). Esta estratégia visa reduzir o coletivo e aumentar o individualismo, ficando o profissional sozinho num ambiente (hospital) onde se encontra confrontado com decisões difíceis.
A cura para este "mal-estar" dos profissionais de saúde, que se reflete cada vez mais nos utilizadores do serviço público, tem de passar por métodos democráticos de gestão: contratação por concurso dos administradores, eleição das direções clínicas pelos seus pares, concursos externos para diretores de serviço com avaliação continua e transparente e, finalmente, formação dos Conselhos Gerais, como previsto na lei.
O êxito de qualquer modelo organizacional passa pela participação. A participação é a concertação organizada a todos os níveis da estrutura, desde a base, para que todos aqueles e aquelas que aí trabalham saibam com clareza para quem e para quê servem os seus esforços diários.
Muitos dos contratos de hospitais públicos geridos por privados estão a chegar ao seu termino. É imperioso que eles não sejam renovados a bem do Serviço Nacional de Saúde, que é o mesmo que dizer, a bem da saúde dos portugueses.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico