As origens dos “factos” plantados e das notícias falsas
A história das “relações públicas” é muito reveladora. Mostra-nos a importância de encontrar os seus “engenheiros escondidos” e de desconfiar dos “especialistas” que estes convocam. Entre outros aspectos importantes, a democracia agradece e fica fortalecida.
As “tochas da liberdade”
A 31 de Março de 1929, numa parada em Nova Iorque, um grupo de mulheres desfilou pela Quinta Avenida expelindo o fumo dos seus cigarros – as suas “tochas da liberdade” –, aparentando desafiar normas sociais estabelecidas. Este acontecimento parecia marcar um momento de viragem cultural importante. Por um lado, porque, à época, parecia constituir mais uma demonstração da imparável modificação do lugar das mulheres na sociedade americana, nove anos depois da aprovação do seu direito de voto. Por outro, mais tarde, porque foi tomado como um dos momentos fundadores da longa história de manipulação do espaço público por parte do mundo empresarial, aparentemente com um impacto transformador inequívoco. Mas não foi bem assim.
Aquela “rebelião” feminina foi uma encenação orquestrada por Edward L. Bernays, sobrinho de Sigmund Freud. Por encomenda do presidente da American Tobacco Company, George W. Hill, Bernays ficou responsável por o ajudar a concretizar a sua grande obsessão: colocar as mulheres americanas a fumar os seus Lucky Strike. A ideia das “tochas da liberdade” foi de A. A. Brill, psicanalista discípulo de Freud. Brill também contribuiu para a definição dos princípios psicológicos da operação: fume, seja uma nova mulher. Por olharem para os cigarros como um domínio masculino, cobiçavam-nos; acesos, eles eram instrumentos de conquista de territórios sociais interditos. Para Hill, a questão passava também pela associação do acto de fumar a um ideal de beleza particular. O seu slogan era “Reach for a Lucky instead of a sweet” (“Pegue num Lucky em vez de num doce”).
O acontecimento não teve o impacto transformador inequívoco proclamado por muitos. Não só o processo de redefinição social da presença feminina no espaço público já estava em marcha, como este acontecimento não acelerou a expansão dos direitos das mulheres. Ou aumentou a visibilidade da causa. Nem democratizou a sua expressão: as fotografias do acontecimento, que ainda hoje são usadas, mostram mulheres de classe alta e, uma delas, escoltada pelo marido. As mulheres já fumavam, inclusive em espaços públicos. Mais: alguns jornalistas de então especularam que tudo não passara de uma jogada publicitária.
A ressonância pública da marcha foi, ela própria, amplificada por Bernays e pela sua equipa. As cartas aos editores de jornais na sequência do acontecimento, assinadas por Nancy Hardin, mulher recrutada por Bernays, são só um exemplo. Com estas cartas, Bernays podia invocar um suposto “debate nacional” que sucedeu à pretensa “agitação nacional” suscitada pela parada. Foi tão importante encenar o momento como administrar a sua recepção e a sua memória. Bernays exagerou o impacto do acontecimento. As suas memórias tiveram um papel central na sua celebração hiperbólica. O acontecimento foi, por certo, muito mais proveitoso para ele do que para a causa feminista. Mudou mais a sua vida do que a história das relações públicas. Como ele deixou claro, a sua actividade era a de “criar e disseminar interpretações credíveis da realidade”, não promover factos. Trabalhar na fronteira entre o plausível e o inexistente. No seu obituário no New York Times, em 1995, lia-se que Bernays tinha tornado “aceitável que as mulheres fumassem em público”. Falso.
As dinâmicas da I Guerra Mundial tinham ajudado a ultrapassar obstáculos sociais importantes: a abertura das portas das fábricas às mulheres e o seu serviço nas frentes de guerra fora do país tinham, por razões distintas, atenuado hierarquias sociais vincadas e duradouras. Reuniram-se condições propícias a uma iniciativa que visava promover interesses empresariais a cobro de pretensas preocupação e responsabilidade sociais. É que se o consumo feminino de tabaco nos Estados Unidos da América (EUA) tinha duplicado entre 1923 e 1929, não deixava de representar uns míseros 12% do mercado... Algo tinha de ser feito.
Uma das protagonistas, Bertha Hunt, declarou que a ideia da parada resultara do facto de ter sido confrontada na rua por um homem exigindo que ela apagasse o seu cigarro. A resposta foi a organização de uma fumaça feminina conjunta. O objectivo declarado era o de “destruir o tabu discriminatório” existente, contribuindo para a causa geral, o feminismo. O que Hunt não revelou foi que era secretária de Bernays, uma peã na sua estratégia comercial. A engenharia da moral e dos costumes era um instrumento de intervenção no mercado. Para muitos, a elevação do estatuto e condição da mulher era filtrada por cálculos económicos: a sua entrada no mercado de trabalho reduziria os salários e, ao aumentar a mão-de-obra disponível, desferiria um golpe significativo na capacidade de negociação individual e colectiva dos trabalhadores. Ou ainda, algo certamente importante para Bernays, a defesa dos direitos da mulheres acarretava a expansão dos recursos disponíveis para que estas se tornassem objecto de persuasão individualizada e, simultaneamente, consumidoras mais independentes. Nas suas palavras, “fazer consumidores” era o desafio. Transformar “impulsos” e “emoções” em “hábitos de consumo” era o objectivo.
“Engenheiros escondidos”, “especialistas” como cogumelos
No seu Cristalizando a opinião pública (1923) lia-se que “o cidadão médio é o mais eficiente censor do mundo”, com uma “mente que é a maior barreira entre ele e os factos”. Bernays caminhava nos trilhos abertos pelo famoso escritor e jornalista Walter Lippmann, que publicara Opinião Pública um ano antes. Este último defendia que, devido ao carácter “irracional” e paroquial da percepção dos indivíduos, esse “rebanho desnorteado”, a coesão social estava em risco. A utilidade da “fabricação do consentimento” era assim realçada, para que o tecido social não se desagregasse e a democracia não se corrompesse. As ocorrências do mundo tinham de ser filtradas e sintetizadas por uma “classe especializada”, para que o processo de decisão política e a subsequente “arte da persuasão” do “rebanho desnorteado” pudessem ocorrer. Bernays estendeu estes princípios à esfera económica e à propaganda empresarial. Baseou-se em Lippmann de modo selectivo e retorcido. Inspirou-se, de modo instrumental, em Gustave Le Bon, autor do livro A Multidão, de 1895, que era tomado como um oráculo por todos os que estremeciam com as consequências sociais, reais e imaginadas, da industrialização e com o potencial transformador de um módico de democratização.
A política do medo – da mudança, da perda de privilégios, da “desordem”, da “degeneração” social e moral – ganhava espaço de manobra, ontem como hoje. A multidão precisava de ser domesticada e dirigida. Incapaz de razão, “intelectualmente inferior” ao indivíduo da classe média, a massa popular precisava de ser governada com rigor científico, inclusive por processos de engenharia social, com os seus especialistas próprios. Afinal, dominar “a arte de impressionar a imaginação das multidões” seria, ao mesmo tempo, conhecer a “arte de as governar”. Em 1947, Bernays escreveu A Engenharia do Consentimento.
Propaganda (1928) foi igualmente influente. Neste escrevia que a “manipulação consciente e inteligente dos hábitos organizados e das opiniões das massas” era um elemento importante na “sociedade democrática”. O “pequeno número de pessoas” que a protagonizavam eram “um governo invisível”, detentoras do verdadeiro poder, o de “mexer os cordelinhos que controlam a mente pública”, dando “ordem ao caos”. Para este efeito, o recrutamento de experts que legitimassem as ideias a ser promovidas tornou-se instrumental: da negação dos efeitos do consumo do tabaco até à promoção da norma estética da magreza, passando pelo condicionamento da averiguação crítica da promiscuidade entre o político e o económico. O spin doctor nasceu e foi ganhando relevância, ao mesmo tempo que, em muitos sentidos, foi perdendo visibilidade, dificultando o seu escrutínio público. Os inquéritos de opinião e os estudos de mercado multiplicaram-se, coordenados por “eminentes” especialistas e interpretados por “célebres” peritos. Outra vez: ontem como hoje.
Em 1923, Bernays já podia mostrar como fizera o consumo de bacon ao pequeno-almoço parecer uma boa escolha alimentar com a ajuda determinante de um médico “reputado”. Ou podia revelar que interviera na cristalização de uma identidade colectiva lituana. Longe iam os tempos de agente de imprensa no teatro, com clientes como o famoso tenor Enrico Caruso. Os dias como entusiasmado evangelizador do Comité de Informação Pública americano, agência de propaganda criada por Woodrow Wilson em 1917, encarregada de administrar a guerra junto da “opinião pública”, dentro e fora de portas, também já tinham terminado. A sua experiência na “Casa da Verdade”, como o director do comité, George Creel, o apelidava, foi um momento importante na sua trajectória profissional. Contudo, o comité não assentava numa “fundação de factos”, mas sim num “pântano de emoções”, como escreveu Stuart Ewen no seminal PR! A Social History of Spin (1996). Na vida de Bernays, a acumulação de ensinamentos na encenação de acontecimentos e na fabricação e gestão de informação nunca deixou de se revelar frutuosa. O mesmo sucedeu com o envolvimento instrumental de experts nesses processos. Os “engenheiros escondidos”, como o cientista político Harold Lasswell apelidou os que se dedicavam à análise e manobra da “opinião pública”, precisavam de especialistas, incluindo académicos, dispostos a fazer o serviço. Esta tradição não se perdeu.
O homem das bananas
Na América do Sul, a United Fruit Company (UFC) era conhecida como “El pulpo” (“O polvo”). Com inúmeras plantações na América Central e do Sul, o seu poder estendia-se por várias geografias. Os seus tentáculos alcançavam várias áreas, da finança às infra-estruturas e transportes de vários países. E, claro, ao seus governos. O resultado era a existência de múltiplos benefícios fiscais e favores na concessão de terras. Estes conduziam à formação de vários espaços de soberania económica escassamente controlados pelo Estado. Um dos instrumentos mais eficazes da empresa era o do controlo dos direitos de exploração da terra que, com a activa colaboração dos políticos locais, bloqueava a exploração individual pelos camponeses. A realidade descrita por O. Henry no seu Cabbages and Kings (1904) na ficcional República da Anchuria, marcada pela absoluta subordinação da sociedade desse país agrário aos ditames das empresas centradas no comércio da fruta, pouco diferia das que caracterizavam os países onde “O polvo” actuava. Se Henry cunhou a expressão “república das bananas” para se referir às Honduras, esta adquiriu novos sentidos com as intervenções da UFC na Guatemala e noutros sítios.
Nas Honduras, em 1911, o fundador da Cuyamel Fruit Company, o americano Sam Zemurray (futuro dono da UFC), envolveu mercenários na execução de um golpe de Estado contra o presidente Miguel Dávila, considerado pouco afecto aos interesses da empresa. Um governo militar foi instalado no poder. A obrigação de pagar impostos foi suspensa para Zemurray por um quarto de século. Como ele próprio terá dito, nas Honduras “as mulas custam mais que um membro do Parlamento”. A instabilidade política e económica que se seguiu, gerando uma dívida externa imparável e impagável, reforçou o epíteto cunhado por Henry anos antes. O modelo de negócio da UFC era claro: grandes propriedades, controlo das terras e do mercado frutífero, baixíssimos salários e governos diligentemente comprometidos. A 6 de Dezembro de 1929, na Colômbia, o governo local acrescentou uma outra possibilidade ao cardápio de instrumentos que garantiam a expansão da UFC: a violenta repressão dos que estavam envolvidos em greves nas suas plantações, massacrando centenas de trabalhadores e seus familiares.
Na Guatemala, mais tarde, ocorreram dinâmicas semelhantes. Nos anos 50, a UFC insistiu com os presidentes americanos Harry Truman e Dwight Eisenhower no sentido de envolver o governo no forçar da destituição do presidente Jacobo Árbenz. Este cometera o pecado de expropriar terras não lavradas, propriedade da UFC. Em contexto de caça às bruxas e de intensificação da lógica da Guerra Fria, não foi difícil colar uma imagem de pró-soviético a Árbenz: o “red Jacobo”. O facto de o director da CIA de então, Allen W. Dulles, ter sido presidente da UFC ajudou certamente. O mesmo sucedeu com o facto do irmão deste, John Foster Dulles, Secretário de Estado de Eisenhower, ser um grande acionista da UFC. Em 1954, sucedendo a uma outra, a Operação PBSuccess foi de facto bem sucedida: o governo da Guatemala democraticamente eleito foi deposto. Um governo favorável aos antigos arranjos político-económicos foi entronizado. Seguiu-se uma recorrente instabilidade política e uma violenta guerra civil, que perdurou até 1996, com milhares de mortos e deslocados.
No centro destes casos estavam as bananas e Zemurray, também conhecido por “Sam, the Banana Man”. Este contratou Bernays no início dos anos 40. Era preciso transformar o lugar que as bananas tinham no imaginário e nos consumos dos americanos. Especialistas encartados apareceram a associar o consumo de bananas a uma alimentação e saúde de qualidade. Uma ofensiva no mercado interno colocou bananas um pouco por todo o lado. Mais inovadora foi a associação entre o negócio das bananas e a defesa nacional. Num memorando escrito por Bernays em 1942 para a UFC, esta associação e a estratégia publicitária para a promover ficavam claras. A defesa do comércio bananeiro assegurava a “estabilidade” das “repúblicas” da América Central e garantia a “base económica” para levar “material de defesa” para o canal do Panamá, aspecto “vital” para os EUA.
Tão importante quanto estes aspectos, a UFC podia ser estratégica no desenvolvimento da Good Neighbor Policy, a política externa de Roosevelt para a América Latina. Esta tivera já uma expressão propagandística na Feira Mundial de 1939, em Nova Iorque, na qual inúmeras tentativas de questionamento dos estereótipos negativos sobre a América Latina foram levadas a cabo. A feira teve Bernays como principal estratego publicitário. Voltaria a ter um outro momento áureo com o famoso filme The Gang’s All Here (1943), no qual a actriz e cantora luso-brasileira Carmen Miranda e o seu chapéu tutti-frutti massificaram a mensagem política. Para Bernays, a questão era simples: os barcos que seguiam para o canal do Panamá levavam armamento, no regresso traziam bananas. A promessa de acordos de troca reciprocamente vantajosos, princípio retórico da política promovida, podia ser demonstrada. E, afinal, a UFC já tinha uma linha de cruzeiros que tornava tudo possível. Claro, os interesses corporativos escondiam-se por detrás de um argumentário de interesse público, nacional.
Mas Bernays não se ficou por aqui, como documenta o seu biógrafo, Larry Tye. Desempenhou um importantíssimo papel no processo que levou ao golpe de Estado na Guatemala. Em 1945, Juan José Arévalo ganhou as eleições com 85% dos votos e encetou uma série de reformas que pretendiam transformar a sociedade guatemalteca. A iliteracia era elevadíssima e 70% da terra estava na mão de 2% da população. Árbenz seguiu as suas pegadas, inclusive na política agrária. Entre 1952 e 1954 confiscou 1,5 milhões acres de terra inutilizadas, incluindo, só em Março de 1953, 210 mil acres à UFC. Colocou as terras à disposição de 100 mil famílias camponesas pobres, mas fê-lo com uma compensação em títulos públicos. Sendo a maior proprietária, exportadora e empregadora do país, muito devido a décadas de favorecimento político, a UFC não tolerou tal afronta. A CIA sintetizou a acção do Árbenz do seguinte modo: “um programa de progresso intensamente nacionalista” colorido pelo “complexo de inferioridade da ‘república da banana’”. Bernays aconselhou a empresa a reagir de modo estridente, transformando a situação num caso de interesse nacional. Com os especialistas de sempre, agora nos meios de comunicação social, Bernays sedimentou a ameaça vermelha. Em 1952, vários jornalistas visitaram os “trópicos”, recolhendo “informação” e visitando o que interessava, com tudo pago. Do New York Times, cujo director era familiar da mulher de Bernays, ao liberal The Nation, textos centrados na crescente influência comunista na Guatemala inundaram a “opinião pública”. As palavras já existiam. Faltavam os actos.
A documentação existente deixa pouca margem de manobra interpretativa. Bernays foi central no processo que conduziu à Operação PBSuccess. Em 1952, foi um dos responsáveis pela desvalorização da proposta que o Governo da Guatemala fez à UFC com um contrato com contornos que esta reivindicara. Para ele, a proposta não passava de um “recuo táctico” dos “comunistas”. Um recuo da empresa e do Governo mostraria que tudo o que até então se passara resultava de um mero interesse económico. O resultado foi a intensificação da campanha. Em Abril de 1954, por exemplo, após ter lido um artigo no Saturday Evening Post em que a disseminação do comunismo na América Latina era denunciada, Bernays ofereceu-se para facilitar a sua divulgação na classe política, na CIA, nos departamentos de Estado e da Defesa e por “cem escribas especiais”. Em Junho, 200 homens armados e treinados pela CIA entraram na Guatemala sob comando de Carlos Castillo Armas e depuseram Árbenz. Castillo Armas devolveu as terras confiscadas e atribuiu negócios privilegiados à UFC, nos portos e nos caminhos-de-ferro. Centenas de guatemaltecos foram assassinados. Nos anos que se seguiram, uma mortífera operação de “contra-insurgência” continuou, com o apoio americano. Bernays chamou-lhes “exército de libertação”. E foi o canal de transmissão de informação sobre o que se passava no terreno para os meios de comunicação social. A “engenharia do consentimento” servira a engenharia do autoritarismo, em nome da democracia.
Os usos das “relações públicas”
A questão das “relações públicas” desde muito cedo se relacionou com a da diplomacia pública. Essa ligação foi visível nos esforços britânicos e alemães para seduzir a “opinião pública” americana no tocante à posição que o país devia adoptar face ao conflito que eclodiu em 1939. No pós-guerra, este tipo de intervenção tornou-se cada vez mais comum. Estados como a Espanha franquista apostaram em estratégias muito similares. Isolado após 1945, dada a sua proximidade dos fascismos vencidos, o Governo espanhol estabeleceu como prioridade o restabelecimento de relações com os EUA. Havia objectivos claros: receber apoios para a reconstrução pós-guerra civil e convencer os norte-americanos a estabelecerem bases militares no país, por exemplo. O antigo representante do Caudillo em Vichy, Felix Lequerica, foi enviado para os EUA. Uma firma, liderada por Charles Patrick Clark, foi contratada, servindo Franco até à morte do primeiro, em 1967. Às actividades de lobbying propriamente ditas juntou-se a disseminação de informação por jornalistas. Publicações próprias, como a Spanish Newsletter (desde 1962), visavam criar uma atmosfera favorável ao Estado espanhol. Em geral, à superfície, a dimensão política era preterida. A exaltação dos feitos económicos espanhóis, a projecção de uma imagem do país que combinava modernidade e tradição (e anticomunismo, claro) eram valorizadas. A promoção do turismo e até a facilitação da rodagem de filmes de Hollywood predominaram. Em 1953, o Pacto de Madrid estabelecia bases militares norte-americanas em Espanha, mas a campanha de sedução, que resultara, perdurou.
A necessidade de sensibilizar uma “opinião pública” cada vez mais global, também levou movimentos subalternos vários a refinar as suas tácticas de “relações públicas”. Foi o caso do Students Non-violent Coordinating Committee (SNCC). Esta organização agregou vários movimentos que vinham a desenvolver iniciativas de protesto contra a discriminação e segregação raciais no Sul dos EUA, desde os finais dos anos 50. A disseminação de informação e a coordenação de iniciativas de protesto eram fundamentais. Estas incluíam manifestações, boicotes ou o arriscado registo de eleitores negros. O bloqueio comunicacional à divulgação das suas actividades pelos jornais locais, comprometidos com o sistema vigente, obrigava a chegar a jornais nacionais. A estratégia seguida resultava tanto de uma questão de visibilidade, como de uma de sobrevivência: a cobertura de órgãos de comunicação nacionais, a quem os membros do NSCC providenciavam as identidades dos manifestantes detidos, funcionava como dissuasor da violência e arbitrariedade policiais locais.
A cristalização de uma esfera pública global abriu espaço a outras dinâmicas de “relações públicas”, que não se confinaram a espaços nacionais ou meras relações entre Estados. Dois exemplos são particularmente reveladores a este respeito.
O primeiro é o caso da guerra de secessão do Biafra. Entre 1966 e 1968, esta ficou marcada pelos massacres das populações igbo do Leste da Nigéria por forças governamentais, pela declaração de independência do Biafra em 1967 e pela explosão da projecção mediática da crise humanitária em 1968. A visibilidade desta última resultou de diversos factores. A maior parte dos Estados que compunham a Organização da Unidade Africana estava particularmente preocupada com o seu impacto na questão da inviolabilidade das fronteiras nacionais pós-coloniais. Ao mesmo tempo, a população igbo era maioritariamente cristã. O Governo nigeriano era apoiado tanto por britânicos como soviéticos, por exemplo. Neste sentido, os representantes do Governo do Biafra tiveram de procurar estratégias alternativas à normal pressão diplomática para tentar garantir a viabilidade do futuro Estado. Essa estratégia assentou numa narrativa que procurava retratar a crise humanitária como o resultado de um genocídio deliberado. Ligações com o papa Paulo VI, o Vaticano e o World Council of Churches facilitaram a promoção da imagem da guerra como extermínio de cristãos por “hordas” muçulmanas.
Toda esta estratégia assentou em duas empresas de comunicação. Estas disseminaram imagens que se tornaram icónicas, como as de mutilações e crianças subnutridas. A campanha era deliberadamente dirigida às sociedades ocidentais e não aos seus governos, ainda que alguns, como o português ou o sul-africano, tivessem interesses óbvios em apoiar a secessão e também em publicitar as atrocidades ao máximo. Os esforços tiveram resultados visíveis. “Grupos do Biafra” multiplicaram-se nas universidades europeias e norte-americanas, apelando à suspensão de vendas de armas dos seus governos. Estados africanos como a Tanzânia ou a Zâmbia reconheceram a secessão. Jornalistas de todo o mundo deslocaram-se ao Biafra e transformaram a crise humanitária na primeira globalmente mediatizada. O papel desempenhado pelas “relações públicas” na divulgação planetária do conflito e na sua persistência nas memórias colectivas foi decisivo.
Outro caso digno de nota é o da Amnistia Internacional, a primeira organização de direitos humanos com um alcance verdadeiramente global, criada em 1961. O seu sucesso nos anos 70 resultou, em parte, de inovações organizacionais e nas estratégias de comunicação. Associações mais antigas, como a Liga Internacional dos Direitos Humanos ou a Comissão Internacional de Juristas, tinham desenvolvido as suas práticas de lobbying maioritariamente nos corredores das Nações Unidas. A Amnistia Internacional seguiu caminhos mais inovadores, combinando um activismo de base com uma centralização que favorecia a recolha, produção e disseminação global de informação. Os seus famosos relatórios anuais sobre violações dos direitos humanos captavam o interesse dos meios de comunicação social em quase todo o mundo. O seu gabinete de imprensa em Washington facilitava o contacto com actores políticos. O uso de histórias pessoais de tortura ou maus tratos, acompanhadas por imagens pungentes, apelavam ao cidadão comum. Campanhas globais, como a de 1973 para a abolição da tortura, galvanizaram os activistas e expandiram a sua capacidade de influenciar as “opiniões públicas” nacionais. Em menos de dez anos, o número de associados disparou de 20 mil para 200 mil.
Nada novo?
A história aqui traçada de modo panorâmico serve para matizar algumas ideias feitas sobre o que são as “relações públicas”, uma expressão demasiado vasta e com fronteiras porosas, que não se reduz ao spin, mas que dele se alimenta recorrentemente. É verdade que as “relações públicas” têm constituído um espaço no qual se movimentam agentes pouco escrupulosos, apostados em fazer avançar os seus interesses individuais ou colectivos, políticos e económicos, a qualquer custo. Mas têm sido também um domínio em que muitos acreditam estar a prestar um serviço abnegado à sociedade. Acima de tudo, têm respondido às necessidades de sociedades nas quais os debates e os consumos públicos se massificaram, atravessando barreiras geográficas, culturais e políticas. Esta história mostra-nos como, não obstante as fundamentais transformações e diferenças tecnológicas, mediáticas e políticas, os combates em torno dos “factos” ou das “notícias” talvez não sejam assim tão recentes. Em certo sentido, são muito pouco originais. O que parece aconselhável é o seguinte: há que encontrar os “engenheiros escondidos” e desconfiar de alguns dos “especialistas” que por aí pululam, sem resvalar para a facilidade do cinismo crónico e para a teoria da conspiração enquanto modelo base para pensar o mundo. A História talvez possa ajudar nessa missão espinhosa.
Os autores da série História(s) do Presente são investigadores do Centro de Estudos Sociais — Universidade de Coimbra.
Através da revisitação crítica de 12 livros, ao longo de 12 meses, a série História(s) do Presente recupera um conjunto de processos históricos que modelaram inequivocamente o nosso presente. Da longa persistência de modelos de organização concentracionária em “campos” durante o século XX, à recorrente ameaça, proveniente de vários sectores, sobre os fundamentos racionais do conhecimento, passando pelas preocupações relativas ao crescimento demográfico ou à sustentabilidade do planeta, a série oferecerá ao leitor uma visão mais poliédrica dos passados que construíram o mundo como o conhecemos hoje. Para acompanhar sempre no primeiro domingo de cada mês, no P2, caderno de domingo do PÚBLICO