Quando, pela primeira vez na história da (cada vez menos republicana) República da Turquia, foi lançada uma proibição categórica das actividades das associações LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexo) pelo Governo Distrital de Ancara, muit@s ficaram revoltad@s.
Até à altura, estávamos habituados à proibição de um evento concreto (geralmente por causa da “interrupção da ordem pública”) ou de uma organização específica (geralmente por supostas “ligações terroristas”), onde o objectivo do Estado era censurar e suprimir todo o tipo de oposição política. Enfim, o estado turco tem uma longa história de opressão e de violação dos direitos democráticos.
Contudo, a declaração do Governo Distrital de Ancara falava sobre “eventos como projecções de filmes, teatro, painéis, entrevistas, exposições, etc., que ferem diversas sensibilidades sociais, organizados em vários locais da cidade por várias organizações não-governamentais ditas LGBT e LGBTI.” Ou seja, este decreto era contra qualquer tipo de actividade que pudesse ser ligada a qualquer organização com qualquer ligação aos assuntos LGBT. O governo distrital achou estes eventos “contra a moralidade pública”. A declaração acrescentava que a proibição não tinha prazo.
Banir actividades relacionadas com as pessoas LGBT categoricamente e indefinidamente (e num distrito em que vivem cinco milhões de pessoas) era uma novidade do fascismo de Erdogan. Mas a malta não desistiu. Afinal, sempre havia espaços em que o governo distrital não podia facilmente interferir, como universidades.
Na Universidade Técnica do Médio Oriente (METU – Middle East Technical University), um núcleo de estudantes feministas organizou, a 22 de Novembro, uma projecção do filme Orgulho na cantina do dormitório da universidade. No meio da projecção, a energia no dormitório inteiro foi cortada. Este dormitório, onde moram 400 estudantes, ficou sem luz durante duas horas, sem que o mesmo tivesse acontecido em qualquer outro sítio.
Mas nós já sabemos que tudo pode acontecer sem razão na Turquia, e que nada acontece sem razão. Os seguranças da universidade disseram que era “uma avaria técnica”, mas depois, “para evitar conflitos” (palavras dos seguranças também), ligaram a electricidade novamente.
Dois dias depois, a 24 de Novembro, os estudantes organizaram uma outra projecção, desta vez do filme Romeos, no Pavilhão de Física. Antes de o filme começar, falhou a energia. Mas a malta trouxe bateria e projector. Problema: a bateria tinha energia só para a metade do filme. As dezenas de pessoas que queriam ver um filme, acabaram por ter de voltar aos seus dormitórios. As outras dezenas de pessoas que estavam a realizar experiências científicas nos laboratórios, tiveram de começar de novo no dia seguinte, se isso fosse tecnicamente possível.
E agora? Este jogo entre fascismo e pensamento crítico nem começou hoje, nem acabará amanhã. Mas os estudantes não desistiram. Marcharam contra a administração homofóbica e transfóbica, a 24 de Novembro. E organizaram um debate, no Pavilhão de Matemática, a 28 de Novembro. E conseguiram debater a visibilidade das pessoas trans na luta LGBTI+ e a hegemonia patriarcal na luta LGBTI+… à luz das velas. Se estás a pensar em analogias com as Dark Ages, não estás a exagerar.
Sabes que mais? Uns dias depois, a 1 de Dezembro, organizaram outro evento. Mostraram o filme How to Survive a Plague no Pavilhão de Física. Desta vez, os agentes da segurança ficaram na entrada, mas ninguém desligou as luzes e o evento decorreu pacificamente. Que vitória: a administração recuou e umas dezenas de estudantes conseguiram ver um filme!
Selahattin Demirtas, o líder do Partido Democrático dos Povos (HDP em turco), antes de se tornar preso político, deu uma entrevista onde disse: “Não estou em desespero nem sou pessimista. Nos períodos em que a opressão é desproporcional e exagerada, temos uma vantagem: para ganhar, basta ficar de pé. Não é necessário responder aos ataques na mesma proporção. Alguém que ataca com tanta força tem uma desvantagem: Se, apesar de tanto poder, não conseguir derrubar o seu adversário, fica a perder tudo. Por isso, acho que a oposição da Turquia deve avaliar bem esta oportunidade.”
É muito útil pensarmos nestes termos quando olhamos para os tempos que aí vêm, dentro e fora da Turquia. E que este pequeno excerto da luta LGBTI dentro de uma das melhores universidades turcas nos sirva de exemplo.