A quimera da bitcoin
Os promotores das criptomoedas exploram a ignorância do que é e como funciona um sistema monetário.
As chamadas “criptomoedas” têm conquistado uma visibilidade crescente nos últimos tempos, à medida que aumenta o número de participantes nas pirâmides que elas constituem, atraídos pela esperança de ganho que só a entrada de novos intervenientes tornará possível. Neste momento são cerca de 20 as criptomoedas transaccionadas a nível mundial, a maior parte das quais surgiram depois de 2013. A mais popular e dominante, tanto em quantidade existente como em número de transacções, é a bitcoin, criado em 2009 por Satoshi Nakamoto, designação da qual não se sabe se é o nome verdadeiro duma pessoa, ou o pseudónimo duma entidade individual ou colectiva. A bitcoin está no centro das atenções porque, tendo começado a ser negociada abaixo de 0,001 euros por unidade, aumentou de valor a um ritmo quase vertiginoso nos anos mais recentes, que a fez ultrapassar o valor de 17.000 euros por unidade no meio de Dezembro de 2017, a que se seguiu uma quebra no início de Janeiro deste ano. Conseguiu recuperar parcialmente dessa quebra, até que o passado dia 2 de Fevereiro se tornou a sua sexta-feira negra, pois nesse dia o seu valor caiu para baixo dos 7000 euros, limiar que não ultrapassou desde então.
Outra das razões que têm feito da bitcoin uma vedeta é o facto de os que estão envolvidos na sua promoção tentarem fazer passar a ideia de que as criptomoedas irão substituir as moedas convencionais. Os promotores das criptomoedas exploram a ignorância do que é e como funciona um sistema monetário e atribuem aos bancos centrais o papel maléfico de destruir permanentemente o valor das moedas convencionais. Não sabem os entusiastas das criptomoedas que, para desempenharem as suas funções, as formas de moeda convencionais têm de dispor dum conjunto de características, das quais se destacam as de manterem o seu valor monetário constante, a sua quantidade se ajustar às necessidades da economia e de manterem o poder de compra acentuadamente estável. Sendo esta última característica a única que não decorre da própria natureza dos meios de pagamento, tomam-na os bancos centrais como um dos seus objectivos fundamentais, para o que levam a cabo políticas monetárias que contrariam grandes variações do nível médio de preços, nomeadamente a inflação elevada.
As criptomoedas não possuem nenhuma das características exigidas às moedas convencionais. Com efeito, o seu valor de mercado, para além de desprovido de qualquer base económica sólida, tem sido acentuadamente instável. Também não dispõem de capacidade de ajustamento às necessidades da economia, porque têm limites quanto à sua expansão. Segundo anunciaram os seus criadores, o algoritmo gerador de bitcoins tem o limite de 21 milhões de unidades, geradas ao ritmo de 12,5 por bloco até meados de 2020, e posteriormente 6,25 unidades por bloco, durante os quatro anos seguintes, sendo depois reduzido para metade, o que fará com que o processo fique terminado algures entre 2110 e 2140.
Os instrumentos monetários convencionais são o resultado dum processo de selecção natural cuja evolução foi condicionada pela sua adequação ao desempenho das funções da moeda. Sabemos como se chegou, e porque se chegou, aos meios de pagamento modernos que são as notas e moedas metálicas emitidas pelos bancos centrais e os depósitos à ordem nos restantes bancos. É completamente abusivo afirmar-se que as criptomoedas substituirão as moedas actuais, pois não há qualquer prova de que estas tenham capacidade de responder às necessidades de meios de pagamento na economia. Podemos mesmo dizer que todos os indícios apontam em sentido contrário.
A criação de moeda está estritamente associada à actividade de concessão de crédito por parte dos bancos e é inseparável dela. Não há, nas criptomoedas, qualquer ligação com operações de crédito que assegure que o seu processo de criação se ajusta às necessidades de financiamento e das transacções na economia. Por outro lado, a moeda emitida pelos bancos centrais é necessária para assegurar o funcionamento ininterrupto do sistema de pagamentos, uma vez que é por seu intermédio que se processa a transferência de depósitos entre os restantes bancos. Um sistema de criptomoedas concorrentes entre si, sem uma moeda com poder mais elevado, como pretendem os seus criadores, estaria permanentemente sujeito a suspensões de pagamentos e a falências sucessivas de criptomoedas.
Não sendo, nem podendo vir a tornar-se verdadeiras moedas, haverá, mesmo assim, algum fundamento para que se comprem bitcoins ou outras criptomoedas, da mesma forma que se compram activos financeiros como acções e obrigações? Não, porque o preço dos activos financeiros é determinado pelos seus rendimentos futuros, os quais não existem nas criptomoedas. A única razão que move os que as compram é acreditarem que, depois deles, outros virão, fazendo com que o seu preço suba e que obtenham o proveito de terem chegado primeiro. Mas, como acontece inevitavelmente com todas as pirâmides de Ponzi, também às criptomoedas chegará o dia em que deixarão de aparecer novos compradores, o que levará ao desmoronar da pirâmide e à queda abissal e definitiva dos preços. E o facto de o Chicago Mercantile Exchange ter admitido a negociação de um contrato de futuros sobre bitcoins não é uma garantia de que eles continuarão a ter valor no futuro? O CME é uma bolsa auto-regulada pelos intermediários financeiros que nela actuam, pelo que quaisquer novos contratos de futuros são para eles novas oportunidades de negócio, não sendo afectados pelas vicissitudes do activo subjacente, uma vez que a liquidação dos contratos se faz em moeda convencional, pela diferença entre o valor de compra do contrato de futuro e o valor spot da bitcoin na data de vencimento do contrato. Não há risco para esses intermediários, mas há para aqueles que tiverem posições de compra abertas nos contratos de futuros sobre as bitcoins, pois sendo obrigados a fazer depósitos de garantia (margens), quando os preços desses futuros caírem serão chamados a responder a novos apelos de margem em montantes elevados e, se os não fizerem, as suas posições ser-lhes-ão fechadas com perdas avultadas.
Além dos que entram na pirâmide das bitcoins na esperança de obterem ganhos com a chegada de novos compradores, há também os “mineiros” que com os seus computadores, alguns com kits acoplados que são fabricados propositadamente para esse efeito, pesquisam a rede da criptomoeda, na esperança de serem eles a encontrar a próxima bitcoin gerada pelo algoritmo. A mineração de criptomoedas foi proibida muito recentemente na China, tendo sido encerrados muitos hangares onde esses mineiros desenvolviam a actividade, e não é de excluir que essa proibição seja uma das causas das quedas recentes do valor das bitcoins. Quem viu o filme de Charlie Chaplin A Quimera do Ouro não pode deixar de imaginar um Charlot da era digital, sentado em frente ao computador, sem passar a fome e o frio do Alasca como Charlot do filme, mas, tal como este, procurando ansiosamente a sua pepita, não de ouro, mas de bitcoins. Só que, enquanto a pepita de ouro manterá sempre um valor elevado, ainda que sujeito a flutuações, as pepitas de bitcoins valerão zero quando a pirâmide vier por aí abaixo.