RTP 2015/2018 — O que fizemos
Saio muito honrado por ter tido esta oportunidade e por ter podido contribuir dando o meu melhor a partir deste lugar privilegiado para esta extraordinária instituição de serviço público, a RTP.
Fez esta semana três anos que entrei como administrador na RTP, com a responsabilidade da área dos conteúdos. Agora que estou de saída, aqui deixo umas notas sobre o trabalho feito.
1. Fomos a primeira administração da RTP que não foi nomeada por um governo ou um poder político, mas sim por um Conselho Geral Independente.
Este é um modelo que defendo desde a primeira hora e que é um ganho civilizacional no sentido em que reforça a definição da RTP “como uma estação pública e não como uma estação do Estado”.
Antes de ser oficialmente nomeado, foi-me exigido que deixasse todos os cargos de administração que tinha nas minhas empresas, o que, obviamente, fiz. Ficou também estabelecido que a RTP não teria qualquer relação comercial, que não faria qualquer negócio, com qualquer empresa de que eu fosse accionista. O que foi escrupulosamente cumprido nestes três anos.
Foi-me perguntado se eu punha a hipótese de vender as minhas empresas. Ao que eu respondi que sim, desde que tivesse uma boa oferta. O CGI referiu que seria melhor se o fizesse, mas nunca colocou a hipótese como uma condição.
2. Sobre o Serviço Público de Média há muito o hábito de dizer que ninguém sabe o que é. Eu discordo. Há muito texto publicado, muitos artigos sobre o que devia ser o Serviço Público de Média, como deveria ser a RTP. Eu próprio escrevi muitos textos sobre o assunto antes de vir para este lugar. Sempre me pareceu que, por mais voltas que se dê, tudo se pode resumir a uma aposta em três generalidades: diversidade, qualidade e independência.
No momento em que iniciámos o mandato, a frase de que me lembrava era a de Almada Negreiros: “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa — salvar a humanidade.”
No caso da RTP, só faltava fazer. Fazer mais serviço público. E não perder tempo.
Primeiro princípio genérico: a RTP é o conjunto dos seus canais e plataformas de rádio, televisão e online/multimédia (por oposição a uma RTP totalmente focada na RTP1, que deixava o resto a ser só o resto).
Cada canal deve ter uma identidade e idealmente uma direcção autónoma com uma lógica de programação própria e distinta dos outros.
Todos os conteúdos devem ter uma outra existência individual e ficar, de acordo com os direitos de autor negociados, disponíveis no RTPPlay e acessíveis por qualquer meio e dispositivo.
Encontradas as equipas directivas, começou a fazer-se o caminho deste princípio.
Começámos pela Antena3. Em vez do perfil de “rádio jovem” partiu-se do conceito de rádio pop, não só da música pop, mas da cultura pop. E, por diferenciação da pop mais mainstream, presente nas rádios comerciais, ser “A Alternativa Pop”. Com menos playlist e mais programas de autor. Curadorias musicais. E humor, novo humor.
Outra prioridade foi fazer do site da Antena3 o canal de música que a televisão sempre quis ter e que hoje só faz sentido ter online e on demand. E para esse canal (muitas vezes em parceria com a RTP2 ou a RTP1) gravar programas sobre bandas, editoras, concertos. Criar património visual para o futuro. E alargar a outras áreas como as artes plásticas ou a fotografia.
Depois, foi a Antena2. Em vez do perfil da rádio da música clássica, alargar o conceito a rádio não só da música, mas da cultura erudita e de públicos mais minoritários. E, tal como acontece com a Antena 3, fazê-la ter mais presença fora da antena. Desde logo dando mais força ao excelente Prémio Jovens Músicos, ou marcando presença forte em eventos como Os Dias da Música do CCB, mas sobretudo lançando o Festival Antena 2, no Teatro da Trindade.
A Antena1 não teve grande alteração. É uma rádio generalista, sobretudo uma rádio de palavra, com múltiplos programas e rubricas de autor. E com uma componente de informação que sempre pensámos podia ser reforçada, em particular no período da manhã e com maior abertura para as breaking news.
Do lado da televisão, começámos pela RTP Memória. Entregámo-la à equipa mais jovem da RTP, a equipa do Centro de Inovação, e o desafio foi simples: a partir do arquivo da RTP e de conteúdos internacionais que fizeram a história da televisão, elaborar uma programação de revisitação do passado à luz do presente, misto de memória, nostalgia e ironia do design geral do canal aos conteúdos específicos. Cruzando uma lógica evocativa e sinalizadora das efemérides com celebrações nostálgicas de estética retro.
Quanto à RTP 2, o desafio da conciliação das várias missões do canal (cultura, infantil, desporto amador, sociedade civil, religiões...) não facilita a definição de uma identidade. Optou-se por destacar, no horário nobre, a componente cultural reforçando a linha de programação de séries estrangeiras dos diferentes países europeus, com as suas diversas línguas (por oposição ao domínio anglo-saxónico do cabo); e complementá-la com três linhas de programação de cinema — ciclos temáticos, cinema português e Tudo Menos Hollywood (que é auto-explicativo).
Retomou-se a programação de concertos, óperas, bailado e teatro, ao fim-de-semana. E a RTP voltou a gravar peças de teatro português.
Mas uma das decisões estratégicas foi não concentrar “a cultura” num único canal. A cultura deve ser absolutamente transversal a todos os canais da RTP.
Quanto à programação infantil, o que fizemos foi desenvolver a marca ZigZag, nome dos períodos de programação infantil da RTP2, e criar a Rádio ZigZag, a app, os eventos ao vivo e a colecção de livros (a sair na primavera). E propor a todas as crianças o acto de ziguezaguear pelos vários suportes à descoberta do universo ZigZag, sempre num ambiente de total protecção para descanso de todos os pais.
A RTP1, praça central generalista da RTP, foi onde aconteceu a mudança mais significativa e arriscada do nosso mandato. E nunca será demais realçar o corajoso trabalho que o Daniel Deusdado fez, com os mais baixos orçamentos de sempre da RTP1 para programas.
Primeiro, regressámos ao padrão europeu acabando com a programação horizontal e com as telenovelas (ou derivados) no prime time e apostando numa programação diversificada onde — combinados com produtos premium de grande audiência, como o futebol da Champions ou formatos internacionais de grande qualidade — se investiu em formatos originais nacionais e, sobretudo, naquilo que lamentavelmente não havia em Portugal: uma indústria de produção de séries, o género actualmente mais popular e mais prestigiado em todo o mundo. O que foi feito foi um começo. E só a continuidade da aposta na diversidade das propostas pode garantir o aparecimento de uma nova geração de argumentistas e produtores especializados e de qualidade.
Outra imagem de marca deste mandato são os documentários. Os de cultura da RTP2, os de “current affairs”, da RTP3, e os dos grandes temas programados no horário nobre da RTP1, com audiências de meio milhão de pessoas como foi o caso do Planeta Azul ou do extraordinário 2077 – 10 segundos para o futuro, uma encomenda da RTP em negociação para venda em todo o mundo (ambição que queremos estender a outros conteúdos, e para qual estamos a trabalhar num catálogo de conteúdos nacionais com potencial de divulgação internacional).
A relação com a produção independente foi uma prioridade, nomeadamente no sentido de abrir a possibilidade de mais produtores, e autores de diferentes e variadas características, poderem apresentar projectos à RTP. Foram abertas Consultas de Conteúdos anuais para Conteúdos Audiovisuais, Cinema, Online e Rádio, onde todos podiam apresentar projectos de acordo com os requisitos pedidos pelas diferentes direcções de conteúdos.
E para superar os baixos orçamentos disponíveis e reforçar a vontade de fazer conteúdos para todo o mundo, temos incentivado activamente as co-produções internacionais.
Mas também voltámos a produzir internamente os programas do daytime, nomeadamente o Praça, que regressou ao Centro de Produção do Norte (que, aliás, voltou a ter grande actividade, tal como o Centro de Produção de Lisboa).
E depois houve a reformatação do Festival da Canção, trazendo uma vida nova a esta marca da RTP com a presença dos melhores músicos pop portugueses. E este ano alargado a músicos com actividade em Portugal numa abertura a toda a comunidade africana e brasileira, entre outras, que são sinal da diversidade da cena musical em Portugal.
A extraordinária vitória no Festival da Eurovisão trouxe para a RTP a organização do maior evento musical do mundo. Não tenho dúvidas: vai ser um sucesso. Com a particularidade de todo o conceito, conteúdo e imagem serem criados e definidos por equipas RTP.
Esta mudança foi elogiada a nível internacional e considerada um case-study (aliás, a EBU tem mostrado curiosidade pela mudança que temos vindo a fazer na RTP e, se não fosse a minha saída da RTP, teria estado esta semana em Bruxelas, a convite da direcção da EBU para apresentar o nosso plano estratégico).
Do lado da Informação, quer da rádio, quer da televisão foi feito um caminho para tornar a Informação da RTP mais credível, independente, plural e longe da lógica tablóide que ameaça o jornalismo. Foi também iniciado um esforço, ainda não suficiente, para reduzir o espaço do futebol nos noticiários generalistas e do comentário futebolístico (mas a RTP também se distingue pela qualidade das suas equipas de desporto — veja-se a excepcional cobertura do Euro 2016 — e por privilegiar a discussão sobre o jogo em vez do fanatismo clubístico).
Reforçou-se a oferta de informação internacional, regional e cultural. E alargou-se o perfil ideológico dos comentadores, tornando-o menos partidarizado.
Foi igualmente relevante a iniciativa estratégica definida desde a primeira hora de, na rádio e televisão, acabar com os espaços de comentário político individuais sem contraditório, nomeadamente de dirigentes partidários de primeira linha ou de deputados do Parlamento português. Uma separação que nos parece clarificadora e diferenciadora no actual panorama televisivo. Mas precisamos de mais reportagem, de mais investigação, de mais activação das delegações regionais e africanas.
Fundamental foi a mudança da RTP Informação para a RTP3, criando uma nova imagem e um novo conceito para o canal de informação da RTP (cada vez mais devemos falar, mais do que em Informação, em Jornalismo).
Aliás, a nova imagem gráfica dos vários canais da RTP tem sido fundamental na percepção da mudança. Muito particularmente os separadores da RTP 1 encomendados a artistas plásticos e músicos (algo inédito em canais generalistas a nível mundial).
Podia falar de muitas coisas mais que fizemos: da nova estratégia para a RTP Internacional; da RTP África e da sua abertura para as novas gerações africanas mais cosmopolitas; dos Centros Regionais, e em particular da renovação das instalações nos Açores; do digital, das newsletters, do extraordinário potencial de desenvolvimento do RTPPlay e dos conteúdos directos para o online; do Ensina; dos Livros RTP; das parcerias com inúmeras instituições de prestígio...
Falarei só para fechar daquilo que talvez seja o mais importante: não só a ida da RTP3 e da RTP Memória para a TDT, mas sobretudo do RTP Arquivos, a abertura do arquivo da RTP a todos, de forma gratuita, cumprindo o princípio essencial da não exclusão e da igualdade de acesso para todos. E da ligação que vai ser feita com as escolas de todo o país.
Muita coisa ficou por fazer. No imediato e numa lógica de futuro.
Por exemplo, a passagem dos conteúdos da RTP Memória para conteúdos transversais aos vários canais e a transformação da RTP Memória num canal infantil, a RTP4, com conteúdos portugueses, tão necessários para colocar na RTP Internacional, para as segundas gerações de emigrantes (possibilitando igualmente à RTP2 um reforço da sua componente de canal cultural).
Mas, para se conseguir mais e melhor, é preciso continuar a exigir um aumento da contribuição audiovisual (que é escandalosamente baixa segundo os padrões médios europeus), com a contrapartida de oferecer conteúdos cada vez mais diferenciadores da oferta privada.
3. Não estava a contar sair no fim deste primeiro mandato (sobretudo, não desta maneira e pela razão invocada). Mas saio muito agradecido pela extraordinária oportunidade que me foi dada pelo Gonçalo Reis, que me convidou, e pelo CGI, que me nomeou. Foram três anos intensos de grande trabalho de equipa, também com a minha colega Cristina Tomé.
E aproveito para agradecer aqui o trabalho de todas as excelentes equipas da RTP com quem trabalhei.
Também não quero deixar de referir a inesperada e, para mim, comovente manifestação de tantas e tantas pessoas, entre as quais tantas que tanto prezo, que fizeram questão de me apoiar e que me honram mais que tudo pelo que disseram de mim e do meu trabalho. Não esquecerei.
Tenho a certeza que o Gonçalo Reis e o Hugo Figueiredo (que conheço e em quem muito confio) continuarão a estratégia que iniciámos, com as orientações gerais do CGI.
Saio muito honrado por ter tido esta oportunidade e por ter podido contribuir dando o meu melhor a partir deste lugar privilegiado para esta extraordinária instituição de serviço público, a RTP.