A construção da Escola de Coimbra
Faz hoje sentido falar em escolas de arquitectura? Nos seus 30 anos de existência, o Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra atingiu a maioridade e expôs-se publicamente, assumindo sem complexos a vontade de “construir uma escola”.
Faz hoje sentido falar em escolas? Uma escola, seja de arquitectura, filosofia ou literatura, é sempre uma construção. É sempre uma ficção, uma narrativa baseada em interpretações, desejos, propostas, personagens e mitologias. Faz hoje sentido falar numa Escola de Coimbra? Como a definiríamos? Qual a sua identidade? Qual a sua matriz? Será construída com base numa figura tutelar, como a de João Mendes Ribeiro? Ou com base em várias figuras que partilham o mesmo entendimento da arquitectura, como Jorge Figueira ou Nuno Grande, Paulo Providência ou José Fernando Gonçalves? Será que a Escola de Coimbra tem como base um manifesto e um conjunto de princípios que configuram um programa pedagógico distinto das outras escolas? Ou será apenas uma vontade de se afirmar como uma escola, à semelhança da Escola do Porto? O que Coimbra nos verdadeiramente oferece é uma oportunidade para pensar que escola queremos. Que arquitectos queremos hoje? Que arquitectura queremos ver hoje produzida? Com um discurso e posicionamento marcados por uma forte consciência social? Ou por um profundo saber técnico e construtivo? Mais artístico, mais intelectual ou mais culturalista?
Uma escola entre Coimbra e o mundo
Em 1999, num encontro que assinalou os dez anos da criação do curso de arquitectura na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, o historiador de arte Paulo Varela Gomes (1952-2016), um dos professores mais carismáticos do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra (DARQ), fez uma intervenção sobre o que deveria idealmente ser uma escola de arquitectura: “Uma escola altamente especializada em áreas de pós-graduação, integrativa de saberes, crítica de formalismos e das auto-suficiências, viajante e curiosa, assente no rigor e no debate, não apenas entre arquitectos e destes com a arquitectura mas da arquitectura com tudo o resto.”
O texto da intervenção foi publicado um ano mais tarde na revista oficial dos docentes do DARQ — Em cima do joelho —, no segundo número com o título “10 anos de arquitectura no Colégio das Artes” e subtítulo “[construir uma escola]”. Neste número, os editores assumiram desde logo que tinham “como ambição pôr uma escola de arquitectura a falar.” Foi neste contexto, de construção de uma escola, que Paulo Varela Gomes reivindicou “uma escola capaz de ouvir filósofos, sociólogos, cineastas, músicos, jornalistas, políticos e de os pôr a conversar uns com os outros”.
No seu estilo acutilante, com que provocava e seduzia os seus alunos e colegas, Varela Gomes lançou o desafio para a construção de “uma escola capaz de publicar tanto um projecto como um texto filosófico, tanto imagens de arquitectura como imagens de vídeo, capaz da mais rigorosa investigação teórica e histórica e da mais provocatória emissão de manifestos.”
A vontade de “construir uma escola” esteve sempre presente em Coimbra. O curso de arquitectura foi criado em 1988 na Universidade de Coimbra com base nas experiências pedagógicas das Escolas Superiores de Belas Artes do Porto e de Lisboa. Em Coimbra encontraram-se arquitectos do Porto, como Fernando Távora (1923-2005), Alexandre Alves Costa e Domingos Tavares; e arquitectos de Lisboa, como Raúl Hestnes Ferreira, Vítor Figueiredo (1929-2004), António Reis Cabrita, Gonçalo Byrne e Mário Krüger. No DARQ, juntamente com uma nova geração de arquitectos, estes arquitectos-professores encontraram um espaço-outro com possibilidades de debate e vontade de projectar uma outra escola. Foi neste espaço, entre Lisboa e o Porto, que a alternativa e a ambição de uma escola ganharam corpo. No entanto, a vontade de Paulo Varela Gomes levou o sonho da Escola de Coimbra ainda mais longe, libertando-a das suas amarras regionais, com o remate da sua intervenção a desejar “uma escola não entre Lisboa e Porto mas entre Coimbra e o mundo.”
Jorge Figueira, professor em Coimbra desde 1992 (também crítico de arquitectura do PÚBLICO), é uma das principais figuras da construção da Escola de Coimbra, tendo adquirido plena consciência dos longos processos associados à configuração da identidade de uma escola enquanto autor do livro Escola do Porto: Um Mapa Crítico (Edarq, 2002).
Figueira terminou recentemente o seu mandato de seis anos enquanto director do DARQ. Na sua passagem de testemunho na direcção para o novo mandato de José António Bandeirinha, foi publicado o livro Cadernos DARQ 2010-2016, numa publicação que procura traçar um retrato da escola a partir de uma reportagem fotográfica de José Maçãs de Carvalho e de uma sistematização das práticas pedagógicas desenvolvidas em articulação com a nova estrutura do plano de estudos. Jorge Figueira, no texto de introdução do livro, esboça uma nova síntese da escola: “O que define o DARQ é assim um estatuto de instabilidade e interpelação também por ser uma escola relativamente recente, numa universidade muito particular, no centro do país, observando o Porto e Lisboa e directamente o resto do mundo.” Sentindo-se ainda a reverberação das palavras de Paulo Varela Gomes, Jorge Figueira assume o desafio: “Procuramos neste lugar intermédio, sem complexos, uma radicalidade para o nosso tempo: a intuição e o desenho em tensão com o saber científico e técnico; a manualidade com os processos digitais; a ironia com o positivismo.”
Uma escola em cima da mesa?
O primeiro sinal do reconhecimento da pertinência de discutir publicamente a Escola de Coimbra surgiu num acontecimento exterior à sua condição local, a propósito da realização em Coimbra, em Maio de 2016, da exposição Habitar Portugal 12-14, comissariada pelos arquitectos Luís Tavares Pereira, Bruno Baldaia e Magda Seifert. A exposição, com uma selecção de 80 obras, representativa da melhor arquitectura portuguesa realizada entre 2012 e 2014, itinerou por todo o país. No Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, a exposição deu maior destaque às cinco obras localizadas na região, da autoria de Gonçalo Byrne, Traço Banal, Jorge Teixeira Dias, Miguel Figueira e Atelier do Corvo.
Na inauguração da exposição, perante o facto de nove do conjunto total das 80 obras seleccionadas serem da autoria de docentes ou de arquitectos formados no DARQ, os comissários decidiram realizar um debate para reflectir sobre o percurso e a identidade da Escola de Coimbra. No debate, intitulado “Coimbra – Uma Escola em cima da mesa?”, os comissários colocaram as seguintes questões: “O resultado hoje é o de uma complementaridade de características distintas, do choque de opostos ou uma outra via ‘entre Coimbra e o mundo’? Existe uma identidade comum nestas obras que a possam diferenciar de outras origens? Qual é o lugar da Escola de Coimbra?”
Fora do claustro do DARQ, os comissários do Habitar Portugal, com a devida independência crítica e visão ampla de conjunto, problematizaram a identidade da Escola de Coimbra numa breve sessão de psicanálise colectiva. O debate, moderado por Luís Tavares Pereira, contou com a participação de Jorge Figueira, enquanto director do DARQ, de João Mendes Ribeiro e Luís Miguel Correia, arquitectos e professores do DARQ, bem como do autor deste texto, enquanto crítico e antigo aluno. No debate surgiram dois entendimentos diferentes da escola. Da plateia, numa intervenção emotiva, Susana Lobo, professora no DARQ, afirmou que a Escola de Coimbra está inevitavelmente associada à figura de João Mendes Ribeiro — não só pela qualidade e influência da sua obra, mas também pelos arquitectos que se formaram no seu escritório, como os casos de Pedro Brígida, Jorge Teixeira Dias e Luísa Bebiano ou dos escritórios Atelier do Corvo, Orange Arquitectura ou Branco-Del Rio Arquitectos. Da mesa do debate, no conjunto das intervenções, foi recordado que a escola tem complementarmente outras figuras incontornáveis, com obras e percursos igualmente marcantes e influentes, quer na prática ou na crítica, na história ou na teoria, como os casos de Paulo Varela Gomes, José Gigante, Paulo Providência, Pedro Maurício Borges, Jorge Figueira ou Nuno Grande.
A escola de João Mendes Ribeiro
Um ano depois, em Setembro de 2017, realizou-se o encontro de arquitectura “Escola de Coimbra”, num ciclo de conferências organizado por João Mendes Ribeiro, com o objectivo de assinalar o início do ano lectivo e os 30 anos do DARQ. Para este encontro, Mendes Ribeiro convidou oito escritórios de Coimbra: Atelier do Corvo, Atelier R&B, Estúdio Branco-Del Rio, Comoco Arquitectos, Jorge Teixeira Dias, Luísa Bebiano, Pedro Brígida e Orange Arquitectura. Três destes escritórios são encabeçados por arquitectos mais velhos, nascidos entre 1969 e 1970, e professores no DARQ: Carlos Antunes e Désirée Pedro (Atelier do Corvo), Luís Miguel Correia (Comoco) e Pedro Brígida. Os outros cinco são encabeçados por arquitectos mais novos, nascidos entre 1974 e 1986. Dos oito seleccionados, apenas dois não colaboraram anteriormente com João Mendes Ribeiro: o Atelier R&B, de Ana Brett e Gerson Rei, e o atelier Comoco, de Nelson Mota, Susana Constantino e Luís Miguel Correia.
Entre Novembro e Dezembro de 2017, João Mendes Ribeiro organizou ainda, com Catarina Fortuna, professora no DARQ e colaboradora no seu escritório, uma exposição integrada na programação convergente da Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra. A exposição, também intitulada Escola de Coimbra, à semelhança do ciclo de conferências, deu continuidade ao objectivo de explorar “a relação entre a formação e a prática profissional, partindo da observação do percurso de oito escritórios sediados em Coimbra e/ou formados no DARQ, para considerar a existência de uma identidade comum e demonstrar o seu impacto na cidade.” Acompanhada por um conjunto de textos críticos sobre cada uma das oito obras escolhidas, só o texto de Nuno Grande ensaiava uma reflexão sobre a escola: “ser arquitecto é também ser um ‘trapezista’ que caminha sobre a corda que liga a memória (leia-se a História) e a transformação (o Projecto), e na qual é sempre difícil, mas importante, encontrar um ponto de equilíbrio.” Procurando diferenciar e posicionar a escola, Nuno Grande defendeu: “se algo vem distinguindo a ‘Escola de Coimbra’ no panorama nacional, é precisamente o facto de nela leccionarem diferentes arquitectos que ensinam os seus alunos a ‘equilibrar-se’ nessa corda.”
Segundo João Mendes Ribeiro, a escola parte de uma matriz próxima da Escola do Porto dos anos 80 e de um conjunto de professores cuja prática profissional assenta num vínculo entre o ensino e a prática projectual, ao mesmo tempo que afirma que as oito obras apresentadas na exposição evidenciam aspectos comuns que poderão enunciar uma nova tradição local: “Refiro-me, por exemplo, à abordagem tectónica do projecto com enfoque nas questões relacionadas com a sua materialidade, ou a procura de uma contenção formal que decorre da concentração do projecto nos seus elementos essenciais. Creio que esses aspectos constituem um factor distintivo da formação do DARQ e, nessa medida, poder-se-á falar da existência de uma Escola de Coimbra.”
Com base nesta interpretação, a questão da diferenciação identitária entre escolas não se coloca: em termos linguísticos, os aspectos formais assentes na tectónica, na expressão da materialidade, na contenção depurada, coincidem com um determinado programa imagético e simbólico que representa hoje grande parte da arquitectura contemporânea portuguesa. Ou seja, ao definir-se apenas através da questão da forma, a partir de uma leitura meramente estilística, Coimbra será apenas entendida como mais uma declinação formal da Escola do Porto. O que não é necessariamente negativo, dado que as declinações estão, muitas vezes, mais aptas para a renovação e adaptação da linguagem.
Nesta abertura oficial do ano lectivo do DARQ, o retrato traçado foi o de uma Escola de Coimbra associada à imagem de uma figura tutelar como a de João Mendes Ribeiro, rodeado maioritariamente pelos seus antigos colaboradores, numa lógica de linhagem geracional muito próxima do modelo dinástico da Escola do Porto. A ascensão da figura e da arquitectura de João Mendes Ribeiro, na recente construção da identidade da escola, está assim em linha com a intervenção de Susana Lobo no debate do Habitar Portugal, quando afirmou que “a Escola de Coimbra é o João Mendes Ribeiro.” Por um lado, o modelo de uma escola apoiada e representada por um arquitecto reconhecido, como João Mendes Ribeiro, com um conjunto de obras de grande qualidade (a Casa das Caldeiras, o Centro de Artes Visuais, as Estufas Tropicais do Jardim Botânico de Coimbra, o Laboratório Chimico, o Centro de Artes Contemporâneas – Arquipélago ou as várias cenografias realizadas), constitui uma mais-valia para a percepção exterior do sentido e alcance da produção arquitectónica da própria escola. No entanto, por outro lado, a estratégia de construção da Escola de Coimbra poderia também optar por seguir um modelo complementar que privilegiasse as restantes forças do DARQ na área do projecto, da investigação, da teoria, da história, da crítica ou da cultura arquitectónica. Neste sentido, espera-se que o projecto desta escola, “entre Coimbra e o mundo”, tenha abertura e ambição suficiente para convocar um conjunto mais alargado de arquitectos formados pelo DARQ e por outras escolas, de diferentes gerações e geografias, com outras referências e outras práticas.
“A Escola de Coimbra existe”
A construção de uma escola constitui uma narrativa escrita a várias mãos, com diferentes tempos, convicções e intensidades. Dentro do DARQ, o posicionamento do corpo docente relativamente a uma suposta identidade da Escola de Coimbra não é consensual. Paulo Providência, professor em Coimbra desde 1990, fala-nos dessa dificuldade: “Construir um consenso entre um campo sempre diverso de um conjunto vasto de participantes é por natureza difícil.” Do seu ponto de vista, Paulo Providência acredita na operatividade de “uma escola enquanto um conjunto de problemáticas centradas no ensino, na investigação teórica, na investigação pela prática, ou por uma abordagem específica da prática”. Nesse sentido, avança com um programa: “A identidade do DARQ, que não sei se é a Escola de Coimbra, é feita de um conjunto de investimentos identitários, que poderão vir a construir uma escola: uma abordagem que privilegia os contextos históricos no projecto, uma presença forte das ciências sociais, uma convergência de visões diversas, um radical aprofundamento do projecto que vem da academia, uma aproximação às práticas artísticas.”
Relativamente à existência ou não de uma Escola de Coimbra, Nuno Grande não tem dúvidas: “A ‘Escola de Coimbra’ existe, mas não é uma bandeira ideológica ou uma arma regionalista, nem um fim em si mesma ou um ponto de chegada. É antes um princípio, um lugar de partida, de onde se sai para abraçar o mundo, como o fazem tantos ex-alunos hoje a trabalhar, com enorme aceitação, em ateliers de diversos países.”
Nuno Grande defende então uma “escola de cruzamentos”, na qual se cruzam e combinam “diversas forças em jogo”, entre prática e teoria, entre projecto e história, entre arquitectura e cidade: “A escola em que eu acredito vive de cruzamentos e não de individualismos; aposta em métodos, não em estilos.”
Jorge Figueira aproxima-se do mesmo entendimento: “Entendo ‘escola’ no sentido de um cruzamento particular — de pessoas, contexto, tempo — que toca num nervo, responde a exigências que estão no ar e lhes dá forma e sentido. Uma ‘escola’ de arquitectura enquanto culto de um estilo será hoje anacrónico, mas continua a ser fundamental imaginar que uma ‘escola’ possa acontecer, enquanto resposta e desafio ao nosso tempo.” Jorge Figueira refere que em Coimbra existe “um grupo de professores – muito diferentes entre si –, com uma consciência particular da necessidade de imaginar uma ‘escola’, não podendo e não querendo ser do Porto ou de Lisboa.” Sem pôr em causa a centralidade do ensino de projecto de arquitectura, Jorge Figueira defende que em Coimbra o “desejo de imaginar uma escola” levou a “acentuar a história, a teoria, a crítica, o pensamento, como lugares que poderiam ser ampliados e redesenhados.”
Gonçalo Canto Moniz, um dos primeiros professores do DARQ formado em Coimbra, reforça também a vertente da escola associada ao pensamento: “Mais do que construir uma escola-atelier, onde a relação entre a escola e a profissão do arquitecto é muito próxima, Coimbra construiu uma escola-laboratório, privilegiando a relação entre a escola e a produção de conhecimento científico e cultural. O melhor exemplo disto é a criação, quase simultânea, de actividade editorial dos docentes, com a revista Em cima do joelho, e dos alunos, com a revista NU.” Para Gonçalo Canto Moniz, o espaço do claustro do edifício do Colégio das Artes é também responsável pela construção de uma determinada escola: “Um outro factor identitário da Escola de Coimbra é o seu espaço de aprendizagem, um espaço físico e social que promove a coesão do grupo e se afirma como espaço colectivo.”
Como nota final, o actual director do DARQ, José António Bandeirinha, revela a complexidade da questão ao recordar palavras de Fernando Távora: “Pensar demasiado na identidade é o modo mais límpido de atestar a ausência de uma identidade.” Como nos alertou Paulo Providência, “talvez os próximos vinte anos permitam esclarecer como se constrói uma escola com tudo isto.”