Reforma do Estado, what else ?

A reforma do Estado é sempre um tema atual, independentemente das condições político-económicas do país.

Nesta altura de Natal, aproveito a ocasião para pedir um presente: uma reflexão sobre a reforma do Estado. A reforma do Estado não passa apenas por aumentar a eficiência da coleta fiscal ou da despesa pública. Passa, sim, por uma redefinição do papel do Estado na sociedade, enquanto regulador e ator do desenvolvimento económico do país, não descurando o papel redistribuidor que os Estados modernos ocidentais desempenham. É igualmente necessário debater as várias e heterogéneas carreiras da administração pública, discutindo a pertinência das diversas estruturas salariais, as condições de trabalho, as políticas de contratação e gestão de recursos humanos, e os métodos de avaliação. Porventura não será justo balizar carreiras altamente diferenciadas pela mesma bitola.

A reforma do Estado é sempre um tema atual, independentemente das condições político-económicas do país. É porventura o ponto de partida para a discussão política sobre a comunidade e como ela se deve organizar. Contudo, as reformas do Estado não passam, decerto, pelas tentativas de desburocratização e desmaterialização do acesso aos serviços públicos, desenvolvida afincadamente pelo atual executivo. Não se discute a pertinência destas políticas. Mas com certeza que não é isto que simboliza as reformas contínuas do Estado. Estes processos são sim processos de otimização da eficácia das Administrações Públicas na provisão de serviços públicos, sendo analisados, numa perspetiva académica, pelas áreas da Administração Pública ou da Economia Pública.

Com o surgimento dos Estados de Direito modernos, a partir do séc. XVIII, com a crescente representatividade parlamentar e a separação das esferas pública e privada nas sociedades ocidentais, tem-se vindo a registar cada vez mais tensões entre estes dois domínios. Antes desta separação não era assim: o privado e o público comungavam entre si. Com a emancipação da liberdade individual, as fricções entre público e privado emergiram naturalmente, o que parece encerrar em si um paradoxo. Numa sociedade capitalista moderna, o indivíduo não pode ser genuinamente privado se não houver um Estado, ou comunidade, que lhe reconheça esse estatuto.

Este paradoxo tem provocado, por um lado, a exigência de menos presença do Estado na economia e, por outro, a criação e o desenvolvimento de atividades empresariais de uma dimensão tal que poderiam ser apelidadas de Estados, com problemas de eficiência e peso excessivo na economia, e que estão muitas vezes na origem de algumas crises do capitalismo moderno.

O Estado não é apenas um problema de titularidade pública e limites económicos da burocracia. É também um problema de escala. É assim necessário estudar se o crescimento desmedido de algumas empresas não acaba por colocar às economias problemas similares aos do crescimento do Estado.

A reforma do Estado permite minimizar o aparente paradoxo. Minimiza-o porque a comunidade política é continuamente chamada a reconhecer o papel da propriedade privada e a determinar os seus limites, garantindo-lhe legitimidade. A determinação dos limites da natureza privada passa, entre outras, pela afetação dos meios financeiros arrecadados pelo Estado e pela regulação por este implementada.

O crescimento desmedido de organizações privadas representa muitas vezes limitações severas de outros privados. Quando tudo se passa dentro do respeito pela concorrência, não existe qualquer problema, mas até que ponto este tem sido um assunto devidamente estudado e discutido no debate político? Pensemos no sector da distribuição, onde está longe de estar provado que a tendência para a monopolização da distribuição por dois ou três grandes grupos económicos (mesmo aceitando a redução geral de preços) seja mais eficaz a redistribuir e, sobretudo, não sabemos se não correspondeu a um aumento da destruição empresarial (falindo milhares de pequenas empresas) com tudo o que isso significa, quer em perda de receita fiscal, quer em diminuição de liberdade, pela concentração de poder económico numa grande empresa de estrutura centralizada. No fundo, estamos sempre de volta a um velho problema (do qual nasceu a ciência económica de Adam Smith). A falsa dicotomia público/privado é uma forma de mascarar a tendência que os grandes grupos económicos têm para capturar o Estado (pois entregam avultadas receitas fiscais com aparente menos custos para o Estado), numa aliança a que no final do século XVIII se chamou mercantilismo.

O processo crescente de globalização tem contribuído para esta disrupção económica. Vários autores, como Stiglitz, evidenciam uma correlação entre a globalização e a desregulação com as crises económicas. A intensificação destes processos parece culminar com algumas pretensões de delapidação das funções do Estado.

É assim natural exigir uma reflexão aprofundada sobre o Estado, que não sirva para se servir a si próprio, garante de uma condução das suas políticas que emergem da vontade da comunidade política. É imperativo definir continuamente os seus limites de modo a garantir as várias liberdades daquilo que é comum e individual, diminuindo as disrupções. Parece evidente a necessidade de refletir sobre novos processos burocráticos (eficientes) garantes da separação entre Estado e privados, garantido um acesso transparente do privado ao público, e vice-versa, fazendo refletir não só os desejos da comunidade, onde se incluem as pretensões de ambas as esferas públicas e privadas. Só assim, e combatendo o paradoxo público-privado, a sociedade poderá contribuir para a diminuição das disrupções que as economias capitalistas enfrentam.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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