Pode mudar o mundo a partir do seu smartphone

Ajudar não devia ser difícil — com a Internet, chatbots e aplicações móveis, é cada vez mais fácil dar tempo e energia a boas causas a partir do conforto do sofá. Kirthi, Filipa e Vítor são exemplos de quem já é voluntário em frente ao ecrã.

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Há sete anos que Kirthi Jayakumar — uma jovem advogada de 29 anos — tenta melhorar o mundo, depois de o sol se pôr, sentada em frente do seu computador na cidade de Chennai, no Sul da Índia. Recebe chamadas de zonas de guerra, fala com activistas no terreno e escreve sobre as histórias que lhe contam. São missões típicas de um voluntário da ONU, mas são todas feitas sem sair do país, ou mesmo de casa. Online. Por vezes, basta-lhe o telemóvel.

“Trabalho a tempo inteiro durante o dia, mas dedico outras 24 horas por semana ao voluntariado. Dá para conciliar”, diz Kirthi ao P2. “Quando estava a organizar mapas de zonas de conflito, durante a Guerra Civil na Líbia, lembro-me de acordar muito cedo só para conseguir falar com os responsáveis por enviar mantimentos e apoio nos EUA. A Internet permite-me trabalhar com pessoas e organizações em fusos horários diferentes.”

Inscreveu-se na plataforma de voluntariado online da ONU assim que terminou o curso, com vontade de trabalhar no sector humanitário, mas sem qualquer experiência profissional. Desde então, são muitas as noites que passa em branco, em frente aos ecrãs, a entrevistar mulheres que a inspiram, como Zainab al-Khawaja que luta há anos pela democracia política do Bahrein, no Golfo Pérsico. O Skype é dos seus maiores aliados. “O voluntariado offline até pode ser mais directo, mas o voluntariado online é igualmente eficaz mesmo que não vejamos os resultados em frente aos nossos próprios olhos”, diz a advogada. “Senão, como é que se explica que equipas de voluntários online coordenem a ajuda humanitária na Líbia, ou ajudem a abrir uma escola na Nigéria? Tem-me dado as experiências mais gratificantes da minha vida.”

Como Kirthi, há milhares. Desde 2000 que a ONU une pessoas motivadas com organizações que precisam de ajuda através da Internet. “Qualquer pessoa com mais de 18 anos pode registar-se”, diz ao P2 Elise Bouvet, a actual responsável pelo programa. “Chegam-nos pessoas de todas as idades, desde estudantes universitários que querem utilizar os seus conhecimentos recém-adquiridos, ganhar experiência e suportar uma causa em que acreditam, a reformados com tempo livre.”

A média de idades dos voluntários da ONU ronda os 30 anos: cerca de 60% são de países do hemisfério sul, 58% são mulheres e 2% são pessoas com algum tipo de deficiência. Em todo o mundo, mais de meio milhão de pessoas já se registaram na plataforma. O ano passado, 13 mil indivíduos trabalharam em mais de 22 mil projectos. Em 2016, porém, apenas 190 portugueses estavam registados na plataforma.

“O Reino Unido, Portugal, a Bélgica e a Alemanha estão atrasados na adopção deste tipo de ajuda”, diz Jayne Cravens, uma investigadora norte-americana que escreve sobre o voluntariado virtual desde a década de 1990. “Contrariamente ao que alguns países pensam, o voluntário online não é novo e não é experimental. Há anos que está provado que é uma excelente forma de agarrar voluntários.”

Um conceito que nasceu com “Gutenberg”

De acordo com a investigadora, o conceito veio do Projecto Gutenberg do século XX — a mais antiga biblioteca digital do mundo. Foi em 1971 que Michael Hart, um estudante da Universidade de Illinois, EUA, teve acesso a um supercomputador e começou um movimento para criar versões electrónicas de obras de literatura clássica — desde Les Misérables a Drácula — de graça. Acreditava que um dia os computadores estariam acessíveis ao público em geral. Tinha razão e em meados dos anos 1990 juntaram-se milhares de voluntários. Para Cravens, é a prova de que o modelo electrónico do voluntariado já “entrou na meia-idade”, mesmo que ainda não se tenha popularizado em todo o mundo.

“Em Portugal, não há divulgação suficiente sobre estes projectos”, queixa-se Filipa Pias. Aos 51 anos, a portuguesa também dedica perto de dois dias por semana a ajudar via Internet, entre o doutoramento e o emprego, mas desconhecia a plataforma da ONU. Chegou sozinha a essa parte do mundo digital, em 2009, quando percebeu que a sua profissão — o design — podia ser um veículo de ajuda e lançou o projecto Design É Preciso, para juntar profissionais interessados com instituições online. 

Mesmo depois do fim desse projecto, continua a ocupar os serões a criar ilustrações para decorar as paredes de um centro de dia para idosos da Caritas em Vila Franca de Xira. O resultado é uma mistura de citações e imagens, com o objectivo de inspirar conversas e memórias. “Dá-me uma enorme satisfação utilizar a minha experiência de trabalho para ajudar alguém que não poderia aceder ao serviço de outra forma”, diz Filipa.

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Parte das imagens seleccionadas por Filipa para o centro de idosos da Caritas Filipa Pias

“Mas já foi procurar à Bolsa?”

Ainda que menos conhecidas, há oportunidades de se ser voluntário online em Portugal. Filipa tem encontrado algumas entre as propostas da Bolsa do Voluntariado, uma plataforma online que a ajudou a lançar o Design É Preciso e reúne várias ofertas para ajudar num site.

“Mas já foi procurar à Bolsa?”, é uma frase repetida, frequentemente, pela presidente do projecto, Isabel Jonet. Embora à primeira vista o site pareça ignorar as possibilidades do voluntariado virtual, Jonet garante que “sempre fez parte do ADN do projecto” porque “há muito trabalho que pode ser feito à distância, desde ilustrações, relatórios informáticos, consultoria ou tradução”. A própria Entrajuda — a organização por detrás da Bolsa que apoia instituições sociais portuguesas — utiliza o conceito para recrutar “pessoas para ajudar de casa”.

Vítor Saraiva, 61 anos, é um exemplo. Desde que se reformou da banca, há seis anos, que dedica pelo menos duas horas ao voluntariado em frente ao ecrã. Actualmente, coordena o Banco de Bens Doados no Porto: gere o que a Entrajuda recebe de várias empresas e particulares e faz o contacto com as instituições que precisam de materiais ou alimentos. “Ocupa-me os tempos livres, permite-me falar com pessoas novas e, ao mesmo tempo, sei que estou a ajudar o próximo”, diz Vítor. Recomenda o voluntário online a todos. “Bastam algumas horas por dia para fazer a diferença. Até para atender chamadas de quem se sente sozinho.”

Foi através da Bolsa do Voluntariado que a designer Filipa Pias também começou a desenvolver uma marca para os produtos da Quinta da Várzea, um projecto de reinserção social do Estabelecimento Prisional de Setúbal (EPS), em que os reclusos podem também ser agricultores. “Muitas pessoas acham que o voluntariado só passa pela acção social, visitas aos hospitais, distribuição de alimentos. Há muitas mais formas de ajudar.”

Há também vozes críticas que chamam ao voluntariado feito de casa de slacktivism: um neologismo inglês que funde as palavras “preguiça” com “activismo”. “O argumento é que ao participar de forma fácil, online e nas redes sociais, as pessoas mostram à sua rede de contactos o quão virtuosas são, e dessa forma, livram-se de se dedicar a tarefas mais complicadas, offline, como participar em manifestações ou praticar actividades de voluntariado em pessoa”, explica ao P2 Daniel Lane, um investigador de Estudos da Comunicação da Universidade de Michigan, EUA.

Depois, segundo a investigadora Jayne Cravens, há algumas instituições de solidariedade social — falsas — que publicam posições em que os voluntários têm de pagar para participar. “Isto é bastante raro”, frisa Cravens. “Mas se alguém quer ser voluntário online, deve ter cautela perante qualquer organização que exija uma taxa de entrada. Quando há um preço, é geralmente para uma verificação do registo criminal e apenas para projectos que envolvam ensinar crianças. A maioria do voluntariado online é grátis.”

Emprestar os olhos com o smartphone

Em 2017, até uma simples chamada de vídeo entre dois smartphones pode fazer a diferença no dia-a-dia de pessoas cegas. Foi há dois anos que o programador dinamarquês Hans Jorgen Wiberg, 53 anos, criou uma aplicação móvel para pedir ajuda quando não conseguia ler embalagens sozinho. Desde os 25 anos que um problema genético reduziu o seu ângulo de visão a cinco graus.

O conceito do Be My Eyes (disponível para Android e iOS) é simples: instala-se uma aplicação, definem-se as línguas que se consegue falar, e quando alguém com problemas de visão pede ajuda, recebe-se uma notificação. Já há 67 mil voluntários registados para ajudar as 50 mil pessoas com problemas de visão na aplicação. “É fantástico que existam tantas pessoas. Permite que eu possa utilizar a aplicação a qualquer hora, quando antes teria medo de incomodar alguém. De noite geralmente apanho alguns voluntários dos Estados Unidos porque para eles é de dia”, diz ao P2 Kelly Barton, uma utilizadora da aplicação em Inglaterra. “É frequente usá-la para confirmar alguns ingredientes porque tenho uma alergia severa a nozes.”

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Hans Jorgen Wiberg, o criador da aplicação Be My Eyes

Mais de 91 mil voluntários na aplicação falam português (10% são de Portugal). Joana Camargo, 17 anos, de Santa Catarina, no Brasil, diz que instalou a aplicação por curiosidade. Agora, recomenda-a aos seguidores no Twitter. “Sinto-me feliz a ajudar”, resume Joana, que apenas se queixa de não poder ajudar mais. “Devo-a ter há alguns meses, porém, só consegui atender a chamada uma vez. Era um senhor que precisava de ler o registo da água em sua casa.”

A aplicação faz parte de uma nova tendência de microvoluntariado, uma parte do voluntariado online, em que as pessoas podem aceder a sites ou instalar aplicações móveis, para ajudar, esporadicamente, em minutos. “Partilhas e likes não provocam a mudança por si só”, critica, no entanto, o antropologista e analista digital Brian Solis. É um dos investigadores que se preocupam com a tendência do slacktivism. “Todos nós acreditamos que estamos a desencadear a mudança porque dizemos, fazemos ou partilhamos algo através da Internet.”

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Dá o exemplo do Desafio do Balde de Gelo, que se tornou viral em 2014 e levou milhares de pessoas em todo o mundo a filmarem-se a levar com um balde de água fria no corpo para chamar atenção para uma doença degenerativa neurológica (esclerose lateral amiotrófica). Apesar de a iniciativa ter juntado 115 milhões de dólares (perto de 98 milhões de euros), Solis argumenta que muitos apenas o fizeram por atenção. “Mesmo nestes casos, há elementos de vaidade em que queremos que outros reconheçam o nosso lado filantrópico e humanitário.”

Hans Jorgen Wiberg defende a sua aplicação. “Nem todas as pessoas que instalam a Be My Eyes e falam sobre ela nas redes sociais a conseguem utilizar, mas a aplicação vai além de gerar ‘likes’. Mostra um desejo de conhecer uma pessoa e ajudá-la, através da câmara. E, sim, pode-se fazer a diferença do sofá. Um dos nossos utilizadores, por exemplo, ligou a pedir ajuda para ler um teste de gravidez.”

“De preguiçoso e fútil o voluntariado online não tem nada”, concorda o português Vítor Saraiva. “Muitas das pessoas que fazem estes comentários têm de se lembrar que há muitos empregos que se fazem sentados. O voluntariado online é mais cómodo, sim, mas não exige menos esforço.”

Novas formas de ajudar

“A utilização da Internet para o voluntariado faz parte de uma nova forma de viver”, diz Isabel Jonet. “As pessoas querem experimentar diferentes formas de ajudar. Antes, cada um focava-se num só tipo — a minha avó, por exemplo, sempre visitou doentes, a minha mãe reclusos — mas hoje as pessoas querem dar o seu tempo a diferentes tipos de actividades, em diferentes momentos.”

Filipa Pias concilia dois projectos, além de manter as ambições de ressuscitar, um dia, o Design É Preciso. Qualquer pessoa pode dedicar minutos à Be My Eyes e, Kirthi Jayakumar, na Índia, já trabalhou em 16 missões diferentes em todo o mundo desde que se juntou à ONU online.

A jovem indiana diz que, para evitar o slacktivism, a motivação tem de ser genuína. “Não ajudem só porque é uma forma fácil de incluir voluntariado no currículo”, adverte ao falar sobre a sua experiência na ONU. “Juntem-se porque querem. Porque vão colocar o sorriso na cara de alguém. Mesmo que seja uma cara que talvez nunca venham a conhecer.”

Um dos projectos online de que mais se orgulha é o Saahas (a palavra hindi para “coragem”) — um chatbot que funciona no Facebook e numa aplicação móvel e aconselha os utilizadores anónimos (vítimas ou espectadores de violência de género) sobre os seus direitos e as instituições que podem contactar em cada país. A base de dados — que reúne 196 países no total, incluindo Portugal — foi construída com a ajuda de voluntários em todo o mundo. Kirthi chama-lhes “embaixadores” do Saahas.

“Em todos estes casos, não é o online que faz a diferença”, frisa Kirthi. “A Internet apenas abre portas. Se podemos ter tanto impacto com programas online, é só devido ao poder do voluntariado e à vontade que partilhamos para provocar a mudança.”

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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