O potencial tangível da livre circulação global. Um Direito Humano que quereremos deixar aos nossos filhos
É tempo de pensarmos o direito à mobilidade como um direito humano universal.
Este ano, como aliás já nos anteriores, foram muito intensas as migrações humanas. Em todos os continentes a sedentarização tradicional, a idade da imobilidade em que temos a ilusão de viver, tem sido posta em causa por grandes movimentos migratórios tanto internos como internacionais. Atualmente vivemos uma época de grande e intensa mobilidade como nunca aconteceu no passado. As colossais migrações internas na China ou na India, as migrações internas em grandes áreas de consenso político como a União Europeia, os EUA ou a CEDEAO não param de demonstrar que Galileu era um visionário quando, referindo-se ao planeta, ao afirmar “Eppur si muove”, afinal, também a nós se referia.
A “crise dos refugiados” deu sinais de abrandamento na Europa Central e no centro da política europeia, mas não desapareceu. Moveu-se noutras direções, permaneceu nos países vizinhos das áreas de conflito, divergiu para países como a Líbia, o Egipto, o Sudão do Sul ou o Níger, encontrou novos atores políticos, perdurou no centro da atenção das principais agências humanitárias e de centenas de ONG. Novas “crises de refugiados” como as dos rohingya são apenas parte de um avassalador número de 65,6 milhões de pessoas em todo o mundo que foram forçadas a abandonar as suas casas. O maior volume de migrações forçadas de sempre. Entre estas pessoas estão quase 22,5 milhões de refugiados, mais de metade dos quais são crianças e jovens. Devemos ainda somar a estes números dez milhões de apátridas, seres humanos a quem foi negada a nacionalidade e o acesso a direitos básicos como educação, saúde, emprego e liberdade de circulação.
A intensidade (e volume) das migrações irá aumentar ao longo das próximas décadas. O conhecimento científico que detemos atualmente sobre as causas das migrações não deixa margem para dúvidas. Os desequilíbrios demográficos norte-sul, o envelhecimento demográfico de muitos países europeus, mas também da Rússia ou do Japão, a pressão demográfica em países como a Nigéria ou o Bangladesh e a urbanização ineludível do mundo são apenas algumas das condições potenciadoras de um aumento das migrações à escala global. As alterações climáticas, por si só, forçarão a migração em massa de um bilião de pessoas até 2100.
Não referimos ainda as causas e consequências de uma desigualdade social crescente entre ricos e pobres que, progressivamente, vai ocupando mais espaço no século XXI. O coeficiente de Gini tende cada vez mais para 1 (o valor da desigualdade perfeita) e afasta-se do 0 (o valor da igualdade perfeita) num número cada vez maior de países. Não falámos da irracionalidade de muitas das decisões políticas que negam as causas das migrações e pretendem condenar à imobilidade uma parte imensa da população mundial. Não falámos da corrupção que impede uma redistribuição progressiva da riqueza gerada em muitos dos países de origem dos migrantes. Não falámos da construção de muros, do negócio em que se tornou a segurança de fronteiras ou do aparecimento de uma indústria das migrações global com lobbies cada vez mais impactantes nas políticas de migrações internacionais.
Perante o crescimento potencial das migrações globais fechar fronteiras é uma solução? Não. Definitivamente não. Ao contrário, fechar fronteiras é um erro a vários níveis. Em primeiro lugar, é uma impossibilidade. Não é possível encerrar todas as fronteiras, a todo o tempo, para todos os indivíduos. A seletividade que tenderá a subsistir é um acelerador de desigualdades (veja-se o brain drain). Um mundo mais desigual por via da seletividade das migrações e dos migrantes não é aceitável. Em segundo lugar, é um erro económico. Várias análises vêm demonstrando que um progressivo abrandamento das barreiras à mobilidade humana entre países traria mais prosperidade económica global do que a eliminação total de todos os obstáculos políticos ao comércio de bens, a eliminação de todas as tarifas aduaneiras ou quotas e a total eliminação à circulação de capitais. Estimativas apresentadas por Michael Clemens, um economista do Centre for Global Development em Washington, sugerem que o mundo ficaria mais rico em cerca de 78 triliões de dólares com uma abertura de fronteiras e uma liberdade de circulação global. As razões apresentadas para este aumento de riqueza global são simples de explicar: por um lado, o capital humano é a principal razão atual de crescimento económico e, por outro, a produtividade económica de um trabalhador depende muito mais da sua localização do que das suas competências (veja-se o exemplo da emigração portuguesa). Acresce a este cálculo o impulso que as migrações despoletariam tanto no destino como nas economias de origem dos migrantes.
Ao aceitarmos a livre circulação global potenciamos a abertura de novas áreas económicas, um maior aproveitamento dos recursos e uma aceleração dos processos económicos globais. Livre circulação global significa que as pessoas são livres de migrar para encontrar trabalho. Não significa o fim das fronteiras nem a "abolição do Estado-nação" (embora tal fosse tentador defender também neste caso). Sim, há riscos e é um argumento liberal, mas o liberalismo fica incompleto sem a aceitação de mobilidade do mais importante dos fatores económicos: o ser humano. Muitos temem que uma flexibilização quanto às migrações internacionais acabe por destruir as suas próprias economias e as sociedades onde vivem. Este argumento, para além de nacionalista, é singularmente egoísta, pois defende a manutenção do status quo excludente que vigora no mundo atual. Este mesmo raciocínio foi usado contra a integração europeia nas últimas décadas (de Portugal, Espanha ou Polónia) sem que uma invasão dos países da Europa central tenha tido lugar.
A repressão à liberdade de circulação é particularmente injusta para aqueles que nasceram, sem o terem escolhido, em países ou regiões com poucas ou nenhumas oportunidades económicas. É ainda mais injusta para os mais pobres de entre os pobres. Para estes a condenação à imobilidade é parte de uma pena mais longa por se ser pobre. Na verdade, é tempo de pensarmos o direito à mobilidade como um direito humano universal. Não só porque sem ele não nascemos livres e iguais, mas porque sem este direito nunca poderemos ser iguais uma vez que as oportunidades estão desigualmente distribuídas no espaço. É certo que há outras vias de mobilidade social (a educação, por exemplo), mas umas não excluem as outras e, na verdade, fazem parte de um mesmo conjunto de direitos humanos básicos. O caminho a fazer é longo, mas creio que inevitavelmente teremos que ir dando passos nessa direção. A declaração que nos edifica enquanto humanidade começa assim: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos” e nela devemos ler o direito à livre circulação global num mundo que, afinal, é de todos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico