Dos meyhane à nova cozinha da Anatólia
Local de contrastes, fruto do cruzamento de povos e culturas e de uma localização geográfica singular, Istambul é uma cidade com uma gastronomia rica que vale a pena descobrir — os produtos locais, as cozinhas turca e das comunidades estrangeiras e, também, a cozinha de autor que procura resgatar as raízes.
Já passa das 21h quando chegamos ao meyhane Asmali Mescit, no antigo bairro europeu de Pera, actual Beyoglu, em Istambul. Ambiente informal, casa cheia e barulhinho bom, apanágio de conversas animadas e boa disposição de quem gosta de conviver à mesa. Os meyhane são uma espécie de tascas ou restaurantes populares que servem comida tradicional para partilhar. As origens remetem para o período bizantino, porém, a sua popularidade foi ganhando pontos no final do século XIX, sobretudo nas comunidades arménias e gregas, numa altura em que Império Otomano começou a aproximar-se de certos hábitos ocidentais.
Asmali Mescit é um dos vários restaurantes do género que existem pela cidade e se é pela confraternização e pelo meze (petiscos para partilhar) que se vai, é em torno do raki que se convive. “Enquanto em muitos países europeus escolhes o vinho para acompanhar a tua comida, aqui, escolhes uma série de pratos para acompanhar o teu raki. É um hábito cultural muito enraizado”, diz-nos Gamze Ineceli, antiga bailarina da companhia de Robert Wilson e “activista” gastronómica turca, a propósito deste tipo de casas e do popular licor anisado local. À nossa mesa vão chegando os petiscos, primeiro os frios e depois os quentes: kofta, baba ganoush, börek, bonito curado, anchovas grelhadas com rúcula, entre outros.
Depois de todo este manjar e de uns valentes copos de raki é preciso algo, como diz Gamze, “que nos traga para cima”. E esse “algo” é uma espécie de mousse decadente de tahini (pasta de sésamo) batida com sumo de limão que é levada ao forno e servida com avelãs e canela. (Um conselho: deve-se beber o raki misturado com água, como fazem os locais. Só para que não se culpe a canela ou as avelãs no dia seguinte).
O curioso é que há igualmente por toda a cidade (e mais ainda quando se sai dela) uma série de cantinas e restaurantes com uma culinária semelhante mas onde, essencialmente por questões religiosas, o álcool está abolido.
Este é um dos muitos contrastes de uma cidade fascinante, com séculos de História, que foi capital de quatro impérios e onde povos de etnias e crenças diferentes têm convivido em relativa harmonia, não obstante os momentos turbulentos que se viveram ao longo de séculos nesta metrópole entrincheirada entre a Europa e a Ásia.
Istambul cresceu brutalmente nas últimas décadas e, hoje, com os seus 14,8 milhões de habitantes, é a quarta cidade mais populosa do mundo. Este crescimento desenfreado, com a falta de espaço e a pressão imobiliária associadas, tem sido um desafio constante para quem nela habita e actua, como é o caso da restauração e da industria hoteleira.
Este sector, ainda abalado pelos acontecimentos de 2016, que afastaram uma boa parte do turismo (os atentados terroristas na Avenida IIstiklal, no início do ano, e o falhado golpe de estado dois meses depois), tenta igualmente lutar contra outras adversidades, como as derivadas de políticas repentinas de um governo conservador que em finais de Outubro, por exemplo, resolveu impedir ou dificultar a atribuição de vistos a turistas norte-americanos, ou as que resultam da dificuldade em vender bebidas alcoólicas, uma vez que, para obter uma licença, um restaurante não pode estar a menos de 100 metros de uma escola ou de uma mesquita. Acontece que nesta cidade, como lamentava o dono de um restaurante conhecido, “há uma mesquita a cada esquina”. Porém, Istambul parece ter uma energia contagiante e a resiliência de quem opera no mercado, juntamente com as oportunidades que emergem nos períodos de crise, fazem com que haja novos modelos e novas atracções a juntar-se às históricas já existentes.
A nova cozinha de Istambul
No mundo da gastronomia local há um grupo de chefs, investigadores, historiadores e autores/jornalistas empenhados em resgatar práticas, produtos e tradições, olhando em várias direcções e com abordagens diferentes. Em Outubro, o seu núcleo duro, onde se destacam o chef Mehmet Gürs e a jornalista Cemre Narin, organizou o Yedi, um simpósio que reuniu um conjunto de especialistas nacionais e internacionais para falar do tema “extinção” perante um público entusiasta, que encheu por completo o auditório do Museu Sakip Sabanci.
De ascendência turca e finlandesa, Mehmet Gürs é o chef do restaurante Mikla, número 51 da (segunda parte) da lista dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo. Situado em Beyoglu, no último andar do Hotel Marmara-Pera, com vista privilegiada sobre a cidade, ele coloca na mesa de quem o visita uma série de pratos do que designa como “Nova cozinha da Anatólia”. E a proposta deste simpático chef turco, alto, louro e de olhos azuis, tem uma reflexão que deu origem a um manifesto.
É verdade que alguns pontos poderiam ser transpostos para a carta de intenções de qualquer outro país. Porém, outros mais específicos têm uma mensagem e um carácter mais desafiante à conjuntura política actual, como é o caso quando refere que esta “nova cozinha” deve “atrever-se a olhar para as tradições, produtos e técnicas com uma perspectiva nova e fresca”; deve “adaptar ao presente a mistura harmoniosa “Ocidente/Oriente”; ou “manter afastadas as barreiras nacionalistas, religiosas ou étnicas”. Porém, o “activismo” de Gürs não é imposto à força e o forasteiro adepto de uma cozinha moderna que deseje apenas passar ali um bom momento deliciando-se com as propostas elaboradas com talento, criatividade e os melhores ingredientes de produção local, não dará o seu tempo (nem dinheiro) por mal empregue.
O mesmo se poderá dizer do Neolokal, a 20 minutos a pé do Mikla, no bairro de Gálata. Neste restaurante, que fica no prédio do antigo Banco Central turco, o chef Maksut Askar usa as técnicas modernas para fazer a ponte entre o passado e o presente. Também ele fala em cozinha da Anatólia e avisa: “O que vão comer é a comida da nossa mãe vista por um ângulo nosso.” A cozinha é contemporânea como a de Gürs, mas mais simples, e, ainda que o modelo se aproxime do fine dining, Maksut introduz um estilo mais de partilha, quer à carta quer no menu de degustação. O “húmus, ovo de codorniz e a paisagem da Anatólia” é um dos pratos emblemáticos que traduz bem as ideia de Maksut Askar.
Num ambiente mais descontraído, mas charmoso, o Kantin, no bairro de Nisantasi, é aquele tipo de lugares com alma e comida deliciosa que gostamos de visitar em qualquer cidade — e que recomendamos mesmo a quem não viaja por motivos gastronómicos. A chef Sensa Denizsel busca inspiração na cozinha tradicional, quer seja a de influência palaciana, quer nas das comunidades locais (grega, arménia ou judia), sem ter problemas em introduzir alguns ingredientes de fora. O trio de carnes curadas (rosbife, corned-beef e língua fumada), o fígado de borrego com cebola caramelizada e endro, ou o flatbread com mozarella e anchovas são pratos muito recomendáveis.
Do börek ao mercado na zona asiática
Com excepção dos meyhane, falámos até agora dos novos intérpretes das tradições, cozinhas e produtos locais de Istambul e da Turquia. Porém, faltava-nos ir “à fonte”, à rua, a um mercado, para entender melhor do que falam Mehmet, Maksut e Sensa.
A ideia era ir a pé do hotel até ao porto de Karaköy, junto à famosa ponte de Gálata, apanhar um ferryboat para a parte asiática da cidade e visitar o mercado de Kadiköy. Porém, para chegar ao cais, havia a hipótese de fazer um percurso maior, passar por uma série de locais e petiscar aqui e ali. Claro, não será necessário referir qual terá sido a opção...
Logo pela manhã, após um óptimo café no Mikla, no topo do hotel Marmara Pera, onde estamos instalados, descemos em direcção à emblemática Istiklal Cadesi, acompanhados de Sabiha, braço direito de Mehmet Gürs. Cruzamos a rua e seguimos no sentido da Bogazkesen Cadesi, numa área onde novos e velhos negócios parecem prosperar: galerias de arte, lojas de design vintage, novos cafés e lojas antigas emblemáticas. No número 65, a Bogazkesen Simit Firini é um bom lugar para comprar um simit, o popular pão trançado e circular incrustado de sementes de sésamo, que vem do período otomano e que se vê um pouco por toda a cidade. Porém, do outro lado da rua há algo mais viciante.
Aberto há 30 anos, o Özen Börek é um pequeno espaço que só vende börek, um pastel de massa filo com recheios diversos: espinafres, queijo, carne ou doce. O mais famoso ali é o de carne de vaca refogada, que acompanha bem com chá ou iogurte azedo ligeiramente salgado. Seguimos em direcção ao cais mas não sem antes provarmos, no Galata Simitçi, um tahinli çörek (idêntico ao simic mas levemente doce e recheado com tahini) e uma bakhlava no histórico Karaköy Güllüoglu (fundado em 1820), um dos melhores lugares para comprar estes doces de massa filo com frutos secos e mel.
Já no barco, deixamos a Europa, atravessamos o estreito do Bósforo, na parte onde este encontra o mar de Mármara, e chegamos ao continente asiático em menos de meia hora. O mercado de Kadiköy fica a poucas centenas de metros do porto e embora se note um certo rebuliço não é tão caótico como esperávamos. Serpenteamos clientes, caixas e outros obstáculos que se vão acumulando na estreita rua principal ladeada de lojas, enquanto admiramos as bancas de peixe. Há um pouco de tudo, mas os mais comuns são os peixes azuis, como a cavala, a anchova, o carapau e o bonito, este normalmente exibido com as guelras bem vermelhas de fora, num sinal revelador da sua frescura.
Mas o mercado inclui outros atractivos, como as lojas de pickles, queijos, frutas, especiarias, doces, talhos e, claro, diversas casas de comidas. Alguém chega com uma lahmacun, um agradável pizza turca de massa fina enrolada e recheada, enquanto esperamos mesa no afamado Çiya Sofrasi. Como é hábito, também neste restaurante especializado em cozinha tradicional partilha-se uma série de pratos, do húmus aos kebabs, passando por um gigante pão pita insuflado, kibe, e umas deliciosas tripas recheadas de carne. Nas sobremesas chama à atenção o prato de frutas secas em calda onde se destacam umas nozes apanhadas ainda em verde e preservadas na calda, ainda com a casca e a pele exterior.
Começa a entardecer e é já tempo de voltarmos para apanhar o barco. “Bebia-se um café”, diz alguém. Porém, enquanto caminhamos de volta ao porto, Sabiha tem outra ideia. Entra na Meshur Özcan Tursulari e compra vários copos de pickles com o seu líquido avinagrado. “Tomem, é óptimo para a digestão.” Não é que é mesmo? E traga-se quase tão bem como o raki.