O Tejo corre para a morte
O Tejo agoniza. Está seco e poluído. Os peixes morrem à procura de oxigénio. Os animais recusam-se a beber as suas águas sujas e espumosas. Os turistas fogem das praias. Quem ainda vive junto ao rio pouco sustento tira dele. Retrato de um rio que já foi vida e é hoje uma tragédia
Na lezíria ribatejana junto ao Tejo, os borregos e os cabritos deixaram de beber água do rio. Os cheiros que as águas soltam afastam-nos daquele que foi o seu bebedouro natural ao longo de séculos de pastorícia na região.
Na Beira Baixa e no Norte alentejano, os peixes apareceram mortos aos milhares em Outubro e Novembro. Os pescadores do Tejo, cada vez menos, enumeram de enfiada as espécies que antes pescavam com fartura e que agora desapareceram do rio. Em alguns locais, o pouco peixe que resta nas águas já não presta para comer, e os restaurantes, que antes o apregoavam, já o retiraram das ementas porque quase ninguém arrisca o seu consumo.
Os turistas fogem das praias fluviais, assustados com as notícias que dão conta da poluição do rio, e os empresários que investiram perto das águas temem pelo futuro dos seus negócios. Fogem também os jovens, porque o rio já não dá sustento nem futuro.
As gentes que vivem na margem do rio falam de um Tejo cada vez mais minguado de água, pintado de castanho pela poluição, que deixa as margens e as suas pedras tingidas de preto.
Relatam marés de espuma causadas pelas “lixívias” que os poluidores lançam para a água. Indignam-se com as autoridades e com os ministros “que nada fazem”. Desconfiam da certeza assegurada pelos governos ibéricos de que a água descarregada por Espanha para Portugal seja a acordada pelos dois países.
Este é o retrato que os que ainda vivem e trabalham junto ao Tejo fazem do rio que no passado foi a sua vida e o seu sustento, e que hoje dizem ser uma “tragédia”. Uns mostram esperança de que o mal ainda possa ser reparado, outros dizem que “o rio já está morto”.
Nos primeiros quatro dias da semana passada, o PÚBLICO desceu o Tejo ao longo de cerca 200 quilómetros. Desde a barragem espanhola de Cedillo, onde o Tajo passa a ser Tejo, até à parte portuguesa onde o rio começa a ser navegável antes de desaguar no Atlântico.
Cedillo, onde “nasce” o Tejo português
A Barragem de Cedillo é uma espécie de fronteira ibérica entre a Estremadura espanhola e a Beira Baixa portuguesa. É desde este obstáculo de água que é descarregada para o Tejo português a água acordada na Convenção de Albufeira, assinada em 1998 e em vigor desde 2000, que estabelece o aproveitamento sustentável das águas das bacias hidrográficas luso-espanholas.
Desde que nasce na serra de Albarracín, em Aragão, até chegar a Cedillo, o Tejo percorre cerca de 795 quilómetros, passando por 207 represas de água, entre as quais 19 grandes hidroeléctricas. Daqui para baixo e até chegar ao Atlântico, o maior rio ibérico percorre em solo português cerca de 212 quilómetros.
Ródão, onde “o problema começa”
Assim que se chega a Vila Velha de Ródão pelo norte, a cerca de 40 quilómetros da Barragem de Cedillo, sente-se de imediato um cheiro a podre. Vem das altas chaminés que, à entrada da vila, soltam permanentemente para o ar fartas colunas de fumo. São o resultado da operação de várias empresas ali instaladas.
No dia 22 de Novembro, o Ministério do Ambiente determinou o encerramento da actividade de secagem de bagaço de azeitona da Centroliva, por esta empresa de Vila Velha de Ródão ter descarregado para o Tejo “águas pluviais contaminadas”. É, porém, a Celtejo, gigante da indústria da celulose, a principal acusada de poluir o rio. O PÚBLICO tentou contactar um responsável da empresa, mas ninguém se mostrou disponível. E ninguém respondeu até ao fecho desta edição às perguntas enviadas por email.
“É aqui, em Vila Velha de Ródão, que o problema começa. O Tejo já vem contaminado de Espanha, mas é a partir daqui que a água fica castanha e que se formam ilhas de espuma e os peixes morrem aos milhares”, diz Vasco Fernandes. Para este empresário turístico de 43 anos, “o problema é “o rio sem correr” e “os resíduos que as empresas largam para a água”, junto ao cais fluvial, um dos lugares mais visitados pelos milhares de turistas que se deslocam a esta vila no distrito de Castelo Branco.
“As descargas são directas para o rio, mesmo aqui [aponta para um local à esquerda do cais]. Vê-se frequentemente uma mancha castanha enorme a entrar no rio. Hoje não se vê porque Espanha está há uns dias a largar água com fartura. Corre que se farta”, afirma o empresário, proprietário de um hotel no centro da vila, de um restaurante no cais e de sete barcos de passeio no rio.
Vasco Fernandes assegura que “há muitos meses que a água não corria assim”. E tem uma explicação: “Os caudais, devido à seca e à falta de descargas, estavam muito baixos. As águas andavam negras, negras, negras. Morreram milhares de peixes. As televisões começaram a falar nisto, deu polémica, e eles agora estão a limpar. A poluição está lá, só que o rio corre com tanta força que não se vê. Vai rio abaixo.”
O empresário diz estar convencido, “embora não tenha forma de o provar”, de que Espanha “não está a soltar as quantidades de água que tem acordado com Portugal”. Uma percepção que se deve “à água que corria há dois, três anos e às menores quantidades da que correram este ano”. “Eles [espanhóis] não a têm para eles e vão largá-la para Portugal? Este ano passaram-se semanas em que não largaram água.”
Peixe que “sabe a celulose”
Vasco, nascido na vila, lembra os tempos de miúdo em que mergulhava no rio e fazia desportos náuticos “sem problemas”. Hoje ainda lá mergulha, mas a norte de Vila Velha de Ródão, para o lado da barragem espanhola. “Pelo menos ali a água parece limpa. Ali os peixes não morrem.”
É para lá que os pescadores da vila e das proximidades passaram a ir pescar os lagostins-vermelhos-do-luisiana, uma espécie invasora que é hoje o principal sustento dos cada vez menos pescadores na zona. Uma espécie pouco apreciada pelos locais, mas que vendem para Espanha, onde é transformada em pasta alimentar com sabor a marisco.
“Se não fosse os lagostins, já nem havia pescadores. Aos peixes, a não ser os pescadores desportivos, já ninguém vai. Não há, não presta, e se o houver ninguém o come. Sabe a celulose”, afirma o empresário.
Numa viagem pelo rio num dos barcos de Vasco Fernandes, a cerca de dois quilómetros a norte de Vila Velha de Ródão, vêem-se dezenas de bóias que assinalam o lugar onde foram largadas as narsas (armadilhas de pesca aos lagostins). Já a sul, passando as paredes graníticas de 170 metros de altura que formam as Portas de Ródão, quase não se vêem bóias, e, embora o rio corra com força, é notória uma água ligeiramente mais acastanhada.
Apesar de ser “um dos grandes prejudicados” pelo estado do Tejo, Vasco Fernandes diz ter esperança de que “as coisas melhorem no futuro”. Critica mesmo “os radicais que dizem que o rio está morto”. “O Tejo não está morto, tem um problema, mas não está morto.”
Afirmando que as empresas da região “são as grandes responsáveis pela poluição no rio”, não deixa também de atribuir “grandes responsabilidades” ao Estado. “As empresas não podem ser fechadas, porque empregam centenas de pessoas, por isso, o Estado tem de fiscalizar. Tem de exigir equipamentos que impeçam a poluição do rio e multar a doer quem poluir. Apliquem multas a sério e vão ver se as empresas não se mexem. É o Estado que deixa poluir. Vem aí a fiscalização e diz que está tudo dentro dos parâmetros, e nós a ver a poluição a correr no rio.”
O “Ti Jaime” já não constrói picaretes
O Monte do Arneiro, já no concelho de Nisa, fica a pouco mais de 12 quilómetros de Vila Velha de Ródão. Na segunda-feira da semana passada, apenas dois barcos prestáveis estavam amarrados à saída para o rio Tejo que serve a aldeia. O pequeno lugarejo foi outrora conhecido pela sua intensa actividade piscatória e pelas sopas de peixe do rio que os locais faziam e que levavam gente de toda região à aldeia.
Jaime San Pedro, 86 anos, aprendeu com o pai a construir picaretes, um dos barcos típicos do Tejo. Começou já tarde, após a reforma, a “carpintar” os barcos com a memória que guardava do trabalho do pai. Fez algumas dezenas deles, e os do Arneiro “eram especiais”, pois eram construídos com uma cabine que permitia aos pescadores dormir nos barcos durante a noite enquanto esperavam que as redes se enchessem de peixe.
O “Ti Jaime”, como é conhecido na zona, já não constrói picaretes. Nem ele nem ninguém. Chamam-lhe, por isso, o “último mestre”.
O antigo carpinteiro lembra os seus tempos de miúdo no Arneiro, “quando havia sempre peixe fresco” e se “ia buscar água ao rio para beber e cozinhar”.
“A gente governava-se do Tejo. Agora mudou tudo, as pessoas vivem de costas para o rio. Já não há carpas, nem barbos, nem nada, e qualquer dia acaba o peixe. O que se apanha já ninguém come. Se sabem que é daqui, ninguém quer”, assegura. A culpa, afirma, “é da poluição que matou tudo”.
Peixes “com a cabeça fora de água à procura de oxigénio”
A conversa decorre à entrada da aldeia, no largo junto à associação recreativa local. Alguns minutos depois, junta-se à conversa Francisco San Pedro. O “mestre” apresenta-o como um dos mais experientes pescadores da região. No Arneiro, há pouco mais de uma dezena de anos eram mais de cem, hoje já não são mais de vinte e andam todos ao lagostim.
Francisco, 52 anos, dana-se assim que sabe que os jornalistas andam por ali para falar sobre o rio. “Está tudo morto, já não há peixe, e o lagostim, que é muito resistente, também já está a morrer. O rio está morto desde que fizeram a fábrica de celulose. Toda a gente sabe, só não sabe quem não quer saber”, afirma, gesticulando sem parar. O pescador diz que este Verão a água “mal correu”. “[Os espanhóis], como havia seca, estiveram sempre à retranca, não largaram água.” Nesse período, lembra, o rio ficou “com pouca água e com cor amarela e castanha como há muito não se via”.
Francisco pesca no rio “desde criança”. Diz ter descoberto “a mortandade de peixes” do dia 2 de Novembro perto do Arneiro e de ter alertado os ambientalistas. “Era impressionante, milhares de peixes mortos, alguns a morrer de cabeça fora de água à procura de oxigénio.” Depois de várias análises, o relatório técnico-científico do Laboratório de Patologia de Animais Aquáticos apontou as microalgas como responsáveis pelas duas mais recentes mortandades de peixes, em Outubro e Novembro, nomeadamente por retirarem oxigénio à água.
Esta conclusão leva o pescador do Arneiro a fazer duas perguntas: “Então só há algas de Vila Velha de Ródão para baixo? Para cima, onde não morrem peixes, não há?”
Francisco diz ter a certeza de que o que tira o oxigénio ao rio “é a pouca água que corre e as lixívias que despejam no Tejo”. “Há uns dias veio para aí o ministro [do Ambiente] e disse que não viu poluição nenhuma. Pois não, na noite anterior correu água com fartura. Ele devia ter vindo era um dia antes, quando o rio estava todo castanho”, acrescenta.
Para este pescador, os que poluem o Tejo são “uma cambada de assassinos, num país que não tem autoridades competentes”. “O rio já está morto”, sentencia.
Fratel e Belver, as “prisões” do Tejo português
Da Ortiga ao primeiro grande bloqueio de água no Tejo português, são pouco mais de 25 quilómetros. A Barragem do Fratel, no concelho de Nisa, distrito de Portalegre, é a primeira das duas grandes hidroeléctricas da EDP no rio. A funcionar desde 1974, a albufeira junto ao paredão de 45 metros de altura estava composta de água na segunda-feira da semana passada (mais de 40% da sua capacidade).
A grande quantidade de água armazenada na albufeira contrasta com o mirrado rio de água depois do paredão, com o leito magro a revelar ilhas de terra.
Da Barragem do Fratel à de Belver, já no distrito de Santarém, concelho de Mação, são pouco mais de 27 quilómetros. A segunda e última hidroeléctrica do rio é mais antiga (1951) e mais pequena do que a sua irmã do Norte.
Há porém uma importante diferença entre as duas: Fratel está isolada no meio de uma serra; Belver fica junto à pequena aldeia da Ortiga, por ali passa e pára o comboio e, acima de tudo, a construção da barragem abriu um braço de rio antes do paredão, criando uma grande praia fluvial num vale de grande beleza agora manchado pelos incêndios de Agosto, que também por ali andaram em força.
Rui, o lisboeta que está a perder dinheiro na Ortiga
Na vila e na praia da Ortiga há vários restaurantes, um parque de campismo, diversas casas de férias, equipamentos náuticos e de lazer, para miúdos e graúdos.
Atrás balcão do Café d’Ortiga, quase em cima da água da praia, está Rui Martins, 50 anos. Trocou a confusão de Lisboa por este local bucólico há dez anos, tendo alugado o café à Câmara de Mação.
Rui está preocupado. “Primeiro foram os incêndios, depois a seca, a falta de água e a poluição. As pessoas deixaram de vir para aqui, têm medo de tomar banho.”
O pequeno empresário mostra análises recentes feitas à água por uma firma especializada que indicam estar boa para banhos. Só que, acrescenta, “as pessoas vêem as notícias na televisão sobre a poluição do rio, os peixes mortos a 30 quilómetros, mas mostrados como se fossem daqui, e fogem”.
“As análises dizem que se pode tomar banho, mas eu vejo a poluição na água — claro que há poluição —, os peixes desapareceram e eu já não sei quem tem razão, se as análises, se o que nós vemos aqui.”
Rui Martins diz não ter dúvidas de que a seca e a poluição no rio “vão afectar toda a actividade económica da região”. “Eu já estou a perder dinheiro. Queria investir uns milhares de euros em insufláveis para colocar no rio e não sei que fazer. Não sei se a tendência é para melhor ou pior.”, conclui.
Comer o peixe do rio? “Nem oferecido”
Samuel Moleiro, nascido há 52 anos na Ortiga, assiste à conversa na esplanada do café. Confirma as palavras de Rui Martins, acrescentando memórias de “há 20, 30 anos”, quando “se bebia a água do rio”, “havia peixe com fartura” e “as pessoas não tinham medo de tomar banho”.
“Isto agora está uma desgraça. Quase não há peixe, e o que há está poluído. Quem é que quer vir para aqui? As pessoas vêm para o parque de campismo, mas depois vão para outras praias”, afirma o jardineiro da Câmara de Mação e proprietário de um pequeno comércio na aldeia de Ortiga.
Samuel Moleiro tem uma certeza: “Nos próximos 20 anos não como peixe do rio. Nem oferecido eu o como.”
“Mataram tudo. Isto é uma tragédia”
Pouco depois chega à esplanada Carlos Maia, 49 anos, um dos poucos pescadores que ainda ali vão ao rio, especialmente à procura da lampreia. Entra na conversa sem pedir autorização e a “pés juntos”. De rajada grita uma dúzia de impropérios que deixam todos em silêncio. Conclui com uma frase: “Aos tipos que poluem o Tejo era amarrar-lhes um baraço ao pescoço com uma pedra grande atada e jogá-los ao rio.”
Carlos lembra que “há uns anos pescava 700 a 800 lampreias por temporada”. “Agora, nem vê-las! A água não corre e o rio está envenenado. Mataram o peixe todo, as bogas, as carpas, os barbos. Mataram tudo. Isto é uma tragédia. Ainda por cima, construíram o dique insuflável em Abrantes que não deixa o peixe arribar”, conta o pescador.
Já no centro da aldeia da Ortiga, o proprietário do restaurante O Bigodes, José António, 56 anos, em tempos célebre por servir peixe do rio, centra agora a ementa no porco preto. “O pessoal tem medo de comer o peixe daqui. Mesmo que eu garanta que o peixe vem de outro lado, a malta não come.”
“Mar de Abrantes”: “Espuma com um metro de altura”
O dique insuflável de Abrantes que o pescador diz que não deixa o peixe arribar rio acima fica a cerca de 25 quilómetros por estrada da Ortiga. Esta barragem foi construída em 2004 e custou cerca de dez milhões de euros. Foi criada com o objectivo de criar um espelho-d’água que desse aos cidadãos uma praia fluvial e um local para a prática de desportos náuticos motorizados e não motorizados. Chamaram-lhe na altura “Mar de Abrantes”, garantindo ser “o maior espelho-d’água urbano de Portugal”.
Só que o dique tem vários problemas. “Quando o rio corre pouco, a poluição junta-se aqui onde a água é travada. Às vezes, o rio fica negro e juntam-se enormes quantidades de espuma morta. Já cheguei aqui a filmar espuma com um metro de altura”, conta Arlindo Marques, um ambientalista de 52 anos, nascido na Ortiga e que denuncia nas redes sociais os crimes ambientais cometidos no Tejo (ver texto nestas páginas).
“As pessoas vêem aqui a poluição e, claro, ninguém toma banho. Há alguns desportos náuticos e pouco mais”, garante.
Outro problema, diz, “é que a escada passa-peixes foi mal construída e não deixa o peixe subir o rio” e fazer a sua migração natural.
O terceiro problema do dique, com cerca de 240 metros de comprimento, prende-se com as fortes correntes que se formam quando a Barragem de Belver faz descargas. Facto que levou o município a espalhar vários cartazes na zona a avisar banhistas e canoístas para o perigo que correm se usarem as suas águas. “Isto basicamente serve para juntar aqui os focos de poluição à vista de toda a gente”, diz Arlindo Marques.
Borregos e cabritos que fogem da água
Ao lugar do Alvienga, a norte do dique, já no interior da lezíria ribatejana junto ao Tejo, só se chega por um irregular caminho de terra. A cerca de 200 metros do rio, Artur Lopes, 46 anos, cuida de mais de meia centena de borregos e cabritos com poucos dias de vida. Tem-nos entre grades por ainda não estarem em condições de se juntarem ao rebanho de 600 cabeças aos cuidados de vários pastores. O Tejo sempre foi o bebedouro destes animais. Já não o é. “Os bichos fogem da água do rio. Há uns tempos a esta parte, há uns meses, deixaram de beber no rio. Nos dias em que leva menos água, nem se aproximam”, conta.
A culpa, diz, “é da poluição”. “É um veneno. Quando corre pouca água, formam-se aqui grandes pedaços de espuma. As pedras e os pés dos canaviais mais perto do rio ficam pretos. Aquilo deita um cheiro muito forte, os bichinhos chegam lá e fogem, recusam-se a beber aquela água”, acentua.
Uma situação que o obrigou a trazer para a lezíria depósitos de água para dar de beber aos animais, o que lhe causa um acréscimo “de trabalho e de despesa”. “Este rio já deu de beber às pessoas e agora nem os animais o querem. Já ali tomei muitos banhos, agora calha-me lá ir lavar as mãos e pouco mais. Uma miséria”, afirma.
Em Almourol passou-se o rio a pé
À saída de Abrantes, o rio sai já mais encorpado de água, segue em direcção a Constância e logo a seguir recebe o rio Zêzere, que, embora também corra minguado por estes dias, dá água nova ao Tejo. É por aqui que está instalada a Caima, a segunda grande celulose junto ao Tejo.
Menos de dez quilómetros abaixo, as margens aproximam-se e esmagam-no, até encontrar o Castelo de Almourol, onde se divide em dois. Contam os locais que o rio correu tão baixo no pico do Verão que se ia a pé das margens à ilha do castelo.
As águas unem-se novamente pouco metros à frente. Quando chega à aldeia de Tancos, na margem esquerda do rio, que olha de frente para a aldeia de Arrepiado, na outra margem, o Tejo volta a ser um rio largo.
E assim chega a Vila Nova da Barquinha, terra que tantas vezes castigou com as suas cheias e cujos piores anos a população gravou em pequenas placas de cimento a revelar a altura a que o rio subiu.
“A nossa vida era o rio”
Ilídio Filipe Carreira, 85 anos, fez a sua vida no mundo autárquico. Nos anos 1970 foi secretário na Câmara da Barquinha e mais tarde ocupou o mesmo cargo na autarquia de Vila Velha de Ródão. Já nos anos 1980, ganhou as eleições para a Junta de Freguesia da Barquinha, onde cumpriu dois mandatos.
Aqui nasceu e foi criado. Recorda animado e com visível paixão a meninice. “A nossa vida era o rio, de manhã à noite. Era o dia todo dentro de água. Mergulhos, corridas de natação Tejo acima. Muita chinelada levei da minha mãe por chegar tarde a casa por andar no rio. Depois, comecei a chegar a horas, mas, mal ela se deitava, escapava pela janela e ia outra vez para o rio noite dentro. Levei muita porrada por causa do malvado Tejo”, conta. Nessa altura, lembra, a vida de todos passava pelo rio. “Era do Tejo a água que bebíamos, e o peixe que comíamos não faltava. Havia uma praia fluvial onde levávamos luz para iluminar 12 barracas e o dancing das festas. Era uma alegria.”
Lembra os namoricos nas margens e as escapadelas às escondidas à noite ou de madrugada “para ir ver as garotas tomarem banho, que, por pudor, só o faziam por essas horas”.
“E depois vieram as fábricas”
Em meados do século XX, toda a vida económica da Barquinha passava igualmente pelo Tejo. A vila era uma espécie de entreposto comercial “onde chegava o vapor que vinha de Lisboa carregado de mercadoria”, para trocar pela que chegava das terras do interior e a levar para abastecer a capital.
Enquanto fala, Ilídio Carreira mostra fotos e recortes de jornais da primeira metade do século XX. Lê um deles: “Pedra, cortiça, madeira, lenha, vinho, palha, tudo o que se produzia no interior para abastecer a grande capital era por aqui que passava, chegando do Alentejo, por caminhos de carros de bois, ou das Beiras e do Pinhal, pelo Zêzere.”
Ilídio interrompe a leitura para mostrar fotos dos carros de bois que “vinham carregados do Alentejo”. E continua: “Sal, peixe salgado, produtos transformados e outras mercadorias que faziam falta aqui. Depois veio o comboio acelerando o progresso e mais tarde as camionetas e os barcos foram encostando.”
“E depois”, acrescenta Ilídio, “vieram as fábricas e a água ficou poluída.” “Uma tristeza, uma tristeza, um rio cheio de espuma. (...) Água negra que parece o líquido dos lagares de azeite”, diz, agora com uma voz mais sumida.
O antigo autarca acrescenta que “deixou de haver vida à volta do rio”. “Nunca vi, nem tenho conhecimento de que alguém com poder fizesse algo para acabar com esta poluição”, acrescenta.
Não é o seu caso. Foi no ano passado a uma manifestação em defesa do Tejo em Espanha e, em Outubro deste ano, esteve num novo protesto em Lisboa também em defesa do rio. “Enquanto tiver forças, contam comigo.”
“O rio já não dá nada”
Continuamos a rumar a sul em direcção a Escaroupim, no concelho de Salvaterra de Magos. Uma aldeia piscatória formada em meados dos anos 1930 por famílias que durante os meses de Inverno se deslocavam de Vieira de Leiria para o rio Tejo, para as campanhas de pesca, regressando no Verão à sua terra natal, para pescar no mar. Aqui, o Tejo já é navegável e sente os efeitos das marés do Atlântico.
Escaroupim é hoje mais um ponto turístico do que uma aldeia piscatória. Ainda por ali está atracada uma dúzia de barcos, e as velhas casas de arrumos dos pescadores também estão a uso. Igualmente de pé, para turista ver, estão algumas casas típicas, as Avieiras, construídas em madeira sobre estacas, para protecção das cheias, e pintadas de cores vivas.
“Agora são mais os velhos que vão à pesca. Os mais novos ainda lá vão, de vez em quando, mas foram todos trabalhar para as obras. O rio já não dá nada”, afirma Tiago Simãozinho, 41 anos.
Um dos mais velhos que ainda anda à pesca é Júlio Letra, 77 anos. Fá-lo desde miúdo. “O rio está muito poluído, mata o peixe todo, já pouco se apanha. Na época passada, apenas pesquei seis lampreias e já aqui apanhei muitas”, diz o velho pescador.
Lembra “o Tejo limpo” da infância, em que as mulheres faziam covas à beira-rio onde “deitavam a água para poisar”, para ser consumida. “Agora está tudo sujo, vem para aqui muita espuma”, acrescenta. Ainda assim, garante que o peixe que ainda ali se pesca “é bom de comer”.
A partir de Escaroupim o rio começa a ganhar corpo para entrar, alguns quilómetros depois, em Lisboa, onde já parece mar. Corre então deslumbrante, quase sempre sereno até desaguar no Atlântico com todo o lixo que lhe despejaram.