Não percebeu bem se era Manel ou mesmo Manuel, sabia que estava num canto da sala junto dos restantes. Ele observava-o de perto, reparava-lhe no fraco aspecto, roupa de levar para o campo, descuidado, no rosto parecia ter um golpe e o olhar distante, provavelmente do trabalho árduo e das mãos grandes para aguentar com a lavoura a sério. Sossegado e simples, até começar a falar.
Aproximara-se então do Manel, começaram por falar da agricultura, das chuvas e, de uma forma geral, de trabalho. Foi logo ali que ele achou que devia reduzir o diálogo, ir buscar vocabulário primário e simples para que este o compreendesse; porque, afinal de contas, não lhe custava moldar-se às pessoas. O diálogo prosseguia e ele apercebera-se de que fora apoderado pelo conhecimento do Manel. Simples, mas concreto, dizia coisas espantosas. Como é que o homem que só põe as ovelhas na rua para estas comerem poderia ter este jeito para falar?
A questão emergia ao mesmo tempo de muitas outras: terá vindo da quinta sem mudar pelo menos a roupa? E, apesar do conflito de pensamentos, o diálogo era desenvolto e acontecia. Não quis falar muito de outros temas, temendo que o Manel não o percebesse. Antes de se despedirem, ainda lhe disse: “Tome cuidado consigo, não force muito a coluna que mais tarde é que começa a pagar pelo esforço de novo e isto só quem tem o mal é que o sabe.” Ouvira isto a um tio avô e achou adequado. O Manel sorriu e deram um passou-bem. Não o fez por mal, quis apenas pôr o homem à vontade e esforçou-se para o conseguir.
Foi só quando desceu as escadas e chegou à rua que o filho lhe disse: “Olha que aquele foi o meu professor de Etimologia e Literatura Clássica. Bom homem e bom professor também.” Esta tendência para julgarmos as pessoas pela aparência é quase intrínseca e a mim me culpo também. Quem nunca fez um julgamento errado sobre outra pessoa, mesmo que nem tenha sido deliberado? Porque o preconceito quase nos parece inerente. Somos rudes na forma como olhamos para as outras pessoas e não as vemos pelo que são, mas sim pelo que aparentam.
A personalidade nunca será uma camisa mal arranjada e o carácter não se define pela barba de três dias. Os traços do rosto são normalmente pedaços de uma vida que terá sido fácil ou difícil, mas nem a mais amargurada expressão pode ser logo julgada antecipadamente. Criamos julgamentos, rotulamos pessoas como se fossem etiquetas ou marcas e esquecemo-nos sempre que o melhor vem mesmo de dentro, passa pela alma que atravessa o olhar e se expressa da forma que melhor sabe.
Um carteiro nunca será melhor nem pior do que um médico e o pastor até costuma ter sempre uma melhor nobreza de carácter do que qualquer que seja o ministro. Porque a “pasta” vem primeiro da essência e só depois das constituições. Eu gosto das pessoas porque as pessoas não são coisas, nem são aquilo que vemos, elas são aquilo que sentem ou o que são.
A tentação de julgarmos o outro pela aspecto é tão recorrente que todos os dias há tanta gente a passar por aquilo que não é. E acredito que, no final de contas, é sempre quem julga que se envergonha. O QI não tem que fazer pendant com um cabelo alinhado e uns sapatos caros, nem o coração no lugar certo tem que combinar com um traço de rosto de recorte fino e bonito. As pessoas não valem pelo que aparentam, mas por aquilo que são. É por isso que, quando olhamos para o outro, nunca devemos antecipar um juízo com a certeza de nos equivocarmos. Um bom pai nunca o será pela forma como se veste e um bom profissional não o é pelo modo de falar. Até os grandes génios como Einstein tinham uma fraca figura e vistos de perto nunca ousaríamos pensar que mudavam o mundo.
A simplicidade cresce de uma boa educação e os valores também; não aparecem com o melhor pullover do mercado. E até a falta de gosto nunca será falta de conhecimento. Assim como o dinheiro não é personalidade. A sociedade e a forma como nos formata com todos os estereótipos associados contribui imenso para que julguemos as pessoas primeiro pelo aspecto, nem que seja pela pressão da influência dos outros sobre nós. Contudo, também é a nós que cabe contrariar este rumo tomado pelo erro que nos moldou a sociedade.
Talvez tenha sido por isso quem sem nada dizer ao filho, voltou atrás, carregou no quarto andar do elevador e acercou-se novamente do homem, para o olhar nos olhos e desculpar-se com um aperto de mão que não diz nada, mas lhe devolve a consciência tranquila. Até porque de repente passou a conhecê-lo em vez de o julgar. E o mundo tomará um rumo melhor se todos os dias quando nos cruzarmos com alguém e olharmos primeiro para o coração e só depois para a gravata.