O rap e o partido: como a China utiliza a cultura juvenil para atrair os millenials
Ao mesmo tempo que endurece a censura sobre o que não considera aceitável, o partido comunista usa a cultura popular para renovar a sua imagem e atrair os chineses mais jovens.
De boné de basebol e t-shirt amarela larga, a estrela rap Li Yijie – mais conhecido por “Pissy” – é uma cara estranha no austero Partido Comunista Chinês. O seu grupo, os Tianfu Shibian, tem ganho fãs e a admiração da Liga da Juventude partidária com músicas como “A Força do Vermelho” ou “Isto é a China”, que assentam como uma luva na visão nacionalista do presidente Xi Jinping sobre a China e o seu lugar no mundo.
Sob o comando de Xi Jinping, que começa um segundo mandato de cinco anos no Congresso do PCC que está a decorrer, o outrora inflexível Partido Comunista tem vindo a tentar revitalizar o seu papel na sociedade chinesa, ao mesmo tempo que enfrenta desafios à sua autoridade à medida que o país se torna mais rico, mais dinâmico e mais ligado ao mundo digital.
O impulso de modernização do partido acontece num momento em que um número significativo de millenials chineses instruídos, confrontados com um mercado de trabalho adverso e um aumento do preço da habitação nas grandes cidades, se sentem desiludidos com as suas perspectivas de vida e de carreira.
Os esforços do partido passam cada vez mais por cooptar sectores da cultura popular chinesa, como os Tianfu Shibian. Ao mesmo tempo, o governo continua a restringir os conteúdos e o entretenimento online que fujam às estritas definições do que é aceitável.
Se o partido “se mantiver à moda antiga, será cada vez mais rejeitado pelos jovens”, diz Li, de 23 anos. O nome do seu grupo significa “O Incidente de Tianfu”, região à volta da cidade natal dos elementos, Chengdu, na província ocidental de Sichuan.
“Precisamos de nos levantar e perguntar: por que é que os mais jovens não podem ser patrióticos?”, afirmou numa entrevista. “Precisamos de entrar no sistema. Se as gerações pós-1990 não se integrarem no sistema, o que é que o nosso país vai fazer?”
Pequim tem a mesma ideia.
Para ajudar a disseminar a mensagem do partido, a propaganda institucional abraçou outros projectos como os TFBOYS, uma boys band de meninos bem-comportados, cujos três membros têm cada quase 30 milhões de seguidores na popular sede social Weibo. A banda aparece frequentemente em eventos da Liga da Juventude Comunista.
“Este tipo de propaganda é um passo em frente e encaixa melhor nos interesses dos destinatários”, diz Qiao Um, investigador de media e ex-professor da Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim.
“Os cidadãos comuns começam a rejeitar os pregões do Diário do Povo e da CCTV News”, diz, referindo-se ao jornal oficial do partido e à televisão estatal.
Na sua conta no Bilibili – portal de vídeos muito popular entre a geração pós-1990 – a Liga da Juventude Comunista publicou este ano centenas de vídeos, que alternam entre videoclips de rap patriótico e assuntos mais tradicionais, como briefings do Ministério da Defesa.
Um desses "guichu" - um clip acelerado de imagens repetidas e música que fica no ouvido – pede aos cidadãos que estejam atentos e denunciem às autoridades pessoas que suspeitam que sejam espiões.
“A força do vermelho”
Os Tianfu Shibian atingiram a notoriedade em 2016, ao exprimirem valores patrióticos em canções às vezes bastante obscenas.
“A Força do Vermelho” ataca Tsai Ing-Wen, presidente de Taiwan, ilha com um governo próprio que Pequim considera uma província renegada. “Há apenas uma China, Hong Kong, Taipé, são todos meus amigos", diz a letra da música em inglês, juntamente com palavrões dirigidos a Tsai e ao seu governo: “Longe de nós, esqueces como deves agir. Até os cães sabem vir para casa e ladrar de agradecimento”.
O videoclip tornou-se viral, contabilizando mais de 7 milhões de visualizações na conta do grupo no Sina Weibo, rede social semelhante ao Twitter, e chamando a atenção da Liga da Juventude Comunista, campo de treino para os futuros quadros de elite do Partido Comunista, que conta com a força de 90 milhões de militantes.
O êxito seguinte do grupo – “Isto é a China” – teve o apoio à produção de um estúdio musical patrocinado pela Liga da Juventude, embora o grupo afirme que não teve apoios financeiros.
A ligação ao partido intensificou-se em Setembro do ano passado, quando Pequim enviou o grupo à ilha Woody, parte de uma disputada área no Mar do Sul da China, para gravar um videoclip a censurar a decisão de um tribunal internacional que rejeita as pretensões chinesas na zona.
Li revelou que o grupo tem ligações com as agências ligadas à propaganda institucional chinesa, e que muitas vezes janta com responsáveis dessas agências para trocar ideias. Em troca, o grupo assumiu uma postura mais moderada, para melhor incorporar a vontade governamental em apresentar conteúdos mais “saudáveis”.
Embora as suas músicas sejam descaradamente pró-China, as letras dos Tianfu Shibian expõem também problemas da China contemporânea, incluindo comida contaminada, corrupção e poluição.
“A crítica racional tem o lugar nas nossas músicas, mas desprezamos aqueles que se queixam cegamente”, afirmou Li à Reuters.
Nem todos são fãs.
Uma música do grupo que elogia o antigo líder chinês Mao Zedong foi criticada online por “maquilhar” a Revolução Cultural chinesa, período de caos e violência entre 1966 e 1976 em que, segundo alguns historiadores, perderam a vida cerca de um milhão e meio de pessoas.
Nas redes sociais, há quem considere que os Tianfu Shibian não passam de máquina de propaganda, chamando-lhes “wumao” – qualquer coisa como “50 cêntimos” -, referência às pessoas que são pagas pelo governo para publicarem comentários patrióticos online.
À margem
Há muito que a arte subversiva ou contracultura está à margem na China, mas a era de Xi Jinping extinguiu-a quase completamente, através da acção de censores que abafam não só o material politicamente incorrecto mas também tudo o que tenha uma carga negativa.
O artista chinês mais reconhecido a nível internacional, Ai Weiwei, que se assume como um crítico feroz do regime, esteve sob prisão domiciliária e deixou finalmente a China em 2015. Antes, tinha participado no projecto do estádio “Ninho de Pássaro”, para os Jogos Olímpicos de 2008.
Os antigos rebeldes do rock and roll limparam todos a imagem para aplacar os censores, e os que não o fizeram deixaram de ser conhecidos.
Zuoxiao Zuzhou, produtor musical que entre 2011 e 2014 foi banido pelo governo pela sua ligação a Ai Weiwei, é um dos que escolheram seguir a linha imposta pelo governo.
“Foi com grande dificuldade que Zuoxiao Zuzhou conseguiu ter hoje uma imagem relativamente aceitável na sociedade”, disse à Reuters o seu agente, Qin Baogui, declinando o pedido de entrevista com o artista devido à sensibilidade do tema.
Cui Jian, cuja música de 1986 “Nada Em Meu Nome” se tornou o hino não-oficial dos estudantes que participaram nas trágicas manifestações na Praça de Tiananmen em 1989, recusou-se a participar num programa da televisão estatal chinesa em 2014, depois de ser informado de que não poderia cantar o seu maior êxito, revelou na altura o seu agente.
Por outro lado, os filmes e as músicas que abraçam a ideologia do partido têm beneficiado de apoio estatal para conseguirem alcançar as gigantescas bases de fãs chinesas.
O manifestamente patriótico filme de acção “Wolf Warrior 2”, que estreou em Julho, tornou-se no filme chinês mais rentável de sempre, em parte ajudado por uma grande campanha de publicidade nos meios de comunicação do estado.
No mês passado, os organizadores americanos que estão empenhados em levar à China artistas vencedores de Grammys afirmaram que só irão promover “artistas com uma imagem positiva e saudável”.
Quanto a Li, está actualmente a trabalhar numa nova canção – “Carta ao Presidente Xi Jinping”. Contudo, ainda não se alistou no partido: “Escrever uma carta de candidatura é difícil e dá muito trabalho.”Tradução de António Domingos