A mercantilização da Educação: o dinheiro não fala às Humanidades
A cada novo ano letivo é o vigor democrático que é questionado, ao ser posta em causa uma educação plena para a cidadania.
A educação liberal visa proporcionar um conjunto de competências intelectuais e práticas, instigadoras do desenvolvimento do pensamento analítico crítico, competências ao nível da escrita e oralidade, enquadramento das matérias em contextos históricos e multiculturais, valorizando a autonomia e capacidade de trabalhar em equipa, desempenhar papéis cívicos e aplicação do conhecimento na resolução de problemas num mundo em mudança, no qual tem uma atitude valorizadora do papel da cidadania. Ou seja, competências transversais a todas as profissões.
Trump foi, recentemente, a voz mais audível de um notório ressentimento cultural que desvaloriza as áreas do conhecimento, tradicionalmente identificadas como essenciais numa educação liberal em simultâneo a uma ascensão da ideologia STEM (science, technology, engineering, math). Esta falsa obrigatoriedade de escolha instiga os governos a subfinanciar as humanidades e ciências sociais favorecendo as áreas associadas à ciência, tecnologia, engenharias e matemática ou áreas profissionais.
Nas escolas portuguesas, a cada início de um novo ano letivo, deparamo-nos com as turmas de Ciências e Economia assoberbadas com alunos motivados pela ideia de saídas profissionais mais facilitadas, publicitada pelo pensamento tecnocrático e neoliberal do money talks, centrado no PIB, que alastrou à educação.
Paralelamente, o curso de Línguas e Humanidades e o de Científico-Humanísticos de Artes Visuais perdem importância e reconhecimento. Nesta mercantilização da educação insuflada por rankings com guerra de matrículas entre as escolas mais bem posicionadas, o dinheiro não fala às humanidades, reféns da valorização económica, cada vez mais definidas como pouco vantajosas, alastrando a incompreensão da sua utilidade e relevância, ante políticas educativas, da ciência e da cultura servis ao utilitarismo neoliberal.
As consequências deste downsize a que estão votadas as humanidades estão espelhadas na carga horária das disciplinas abrangidas por estas nas nossas escolas. A avidez pelos cursos de Ciências e Tecnologias e Ciências Socioeconómicas faz com que, possibilitada pela autonomia das escolas, haja uma transferência de recursos para estas áreas, nomeadamente na distribuição de tempos letivos por disciplina. Assim, a nível nacional regista-se na carga horária da matriz curricular do 2.º ciclo do ensino básico a atribuição de um mínimo de 250 minutos semanais às disciplinas de Português e Matemática individualmente, a mesma carga horária que Inglês e História e Geografia de Portugal partilham entre si. A Educação Artística e Tecnológica (Educação Visual, Educação Musical e Educação Tecnológica) conta com 270 minutos, ficando a distribuição ao critério da escola, sendo que obrigatoriamente 90 minutos são para Educação Visual, podendo verificar-se o caso de apenas 45 minutos estarem disponíveis para Educação Musical no 5.º ano.
O ensino artístico sai, assim, penalizado. Para um professor de música ter um horário completo necessita de um número exagerado de turmas e, face à escassez de tempos letivos disponibilizados, os objetivos educativos/pedagógicos são postos em causa.
Ao abrigo da sua autonomia e do seu regulamento interno, a escola pode definir disciplinas cujo resultado levará à retenção ou transição do aluno, independentemente do número de níveis inferiores a três. Como exemplo, um aluno com nível 2 a Português e Matemática poderá reprovar se a escola assim o definir, ao passo que outro aluno, na mesma turma, com nível 2 a Português e Inglês transitará de ano. Essa mesma autonomia permite a criação de critérios específicos que definem a integração ou não do aluno num Quadro de Honra ou Mérito (prática comum nas escolas), espelhando uma discriminação de disciplinas em detrimento de outras, em que se regista o fato de a Matemática sair exageradamente valorizada e ser elemento impeditivo para a integração se o aluno tiver nível 3 (e não negativa!) a Matemática, mesmo que tenha obtido nível 5 a todas as outras disciplinas. A situação insólita (e existente) incentiva uma cultura baseada na convicção de que há disciplinas mais importantes do que outras, para além do embaraço indefensável de dar azo a casos em que alunos com média elevada ficam excluídos do Quadro de Honra relativamente a alunos com nível 4 a Matemática (mas média inferior aos primeiros), bastando aos primeiros ter um nível 3 na disciplina de Matemática para se verem arredados dessa possibilidade de integração. A média é, assim, preterida com base na valorização excessiva de uma disciplina.
A carga horária da matriz curricular do 3.º ciclo do ensino básico prevê um total mínimo de 200 minutos quer para Matemática quer para Português, atribuindo às disciplinas de Línguas Estrangeiras em conjunto 270 minutos e a Geografia e História 200 minutos no 7.º e 8.º anos e 250 no 9.º ano.
Penalizado continua o ensino das artes em geral, deixando de existir Educação Musical no 3.º ciclo e contando a área de Expressões e Tecnologias (TIC, Educação Visual, oferta de escola e Educação Física) com um total de 300 minutos no 7.º e 8.º anos e 250 no 9.º ano.
No panorama citado salvaguarda-se nesta análise o caso do Português (disciplina obrigatória em todos os cursos até ao 12.º ano), cuja carga horária sofre, porém, um decréscimo no ensino secundário.
As lacunas das escolas ao nível das línguas e aprendizagem da música são supridas, com sacrifício familiar, pelo recurso a institutos e escolas de línguas e a escolas de música e conservatórios regionais.
Esta sobrevalorização tem contribuído, ainda, para alimentar o comércio paralelo e sinuoso das explicações (com especial ênfase para a Matemática) que ajudam a ultrapassar o calvário dos testes sobredimensionados das escolas e dos exames (à data de redação deste artigo discute-se um exame único de Matemática) associados aos cursos mais procurados pelos alunos, nomeadamente Medicina, Gestão, Informática, Economia. Com todos estes custos acrescidos suportados pelas famílias, derivados destas opções, é a própria noção de gratuitidade do ensino que fica posta em causa.
Por outro lado, a desvalorização das humanidades tem como corolário a diminuição do seu peso relativo, conduzindo esta situação à redução do número de graduados e a um decréscimo do financiamento público direcionado para estas, fruto da dificuldade de justificação da pertinência das investigações face à perda de preponderância.
A eliminação de departamentos universitários, decréscimo de salários, diminuição de recursos destinados a bibliotecas, alteração de práticas de comunicação específicas e a aplicação de modelos de avaliação da atividade científica desadequados relativamente à especificidade das Humanidades são também consequências visíveis.
Autores como Martha C. Nussbaum alertam, ainda, para esta desvalorização de que resulta o menosprezo das qualidades cidadãs imprescindíveis para a democracia em si. Em Cultivating Humanity: A Classical Defense of Reform in Liberal Education (1997) argumenta que o propósito da educação liberal é cultivar a humanidade, ou seja, educar para a cidadania, e em Not For Profit: Why Democracy Needs the Humanities (2010) denuncia a “crise silenciosa” a que as nações estão votadas ao desvalorizarem competências necessárias para a vitalidade democrática, provenientes das humanidades, em virtude da sua “sede pelo lucro nacional”.
Em Portugal, a “aposta” em disciplinas como Educação para a Cidadania e Debate e Argumentação (por vezes com um tempo letivo semanal) funciona como um paliativo ou remendo para o desinvestimento na História, Geografia, Filosofia, Literatura, formadoras de cidadãos conscientes, críticos e participativos essenciais para a democracia.
A cada novo ano letivo é o vigor democrático que é questionado, ao ser posta em causa uma educação plena para a cidadania, possibilitada pelo estudo das humanidades, que proporcione aos alunos o exercício do pensamento crítico, estimule a coragem e a vontade de examinar, refletir, discutir, argumentar sem indulgências pela autoridade ou tradição, a empatia pelo outro e de conceber os desígnios nacionais como constitutivos de uma realidade global.
É por isso que a menorização das artes e humanidades é um luxo só para milionários.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico