Tarifa social de electricidade? Sim, mas financiada através do OE!
O grande problema, a meu ver, está na forma como a tarifa existe actualmente em Portugal e, em particular, como esta medida de proteção social é financiada.
Considere a seguinte questão ética. Numa pequena aldeia, há um médico e um determinado número de doentes com fraca condição económica. Pode o médico recusar atendê-los? Claramente, pode fazê-lo, mas não deve. A questão que se impõe é: quem é que é responsável por pagar esse atendimento? Será o próprio médico? Também, não parece muito justo. Esperar que o médico preste gratuitamente um serviço é equivalente a fazer caridade com o dinheiro e o trabalho dos outros. Para além disso, mais cedo ou mais tarde, se naquela aldeia o médico fosse obrigado a dar consultas gratuitas a quem não pudesse pagar, o mais certo era ou abandonar a profissão, ou mudar-se para outra aldeia, ou ainda cobrar mais aos mais doentes, e portanto menos susceptíveis de evitar os seus serviços, para compensar a perda de rendimento com os que não podem pagar. Em qualquer dos casos, seria a comunidade a pagar indirectamente.
Qual é, então, a solução? Deverá ser a população desta aldeia no seu conjunto a pagar pelos serviços prestados pelo médico aos seus pobres, ou então, se a aldeia em causa for pobre, numa lógica de solidariedade entre aldeias, o financiamento deve vir dos impostos gerais. Cada um deve contribuir de acordo com as suas capacidades e o seu poder económico. Generalizando, defendo que cabe ao Estado a protecção social dos seus cidadãos mais desfavorecidos, e que esta deve ser financiada por receitas obtidas através de impostos progressivos.
Vem tudo isto a propósito de um instrumento de política socio-económica que existe no nosso país e que se chama “tarifa social da electricidade”. Esta tarifa social permite às famílias em situação económica mais vulnerável pagar um preço mais baixo pelo seu consumo de electricidade. Até recentemente, havia cerca de 100 mil consumidores abrangidos. Há poucos meses, o governo anunciou um grande alargamento dos beneficiários desta medida, passando a abranger cerca de 800 mil consumidores, o que corresponde a aproximadamente 10% dos consumidores de electricidade em Portugal.
Para não deixar dúvidas, quero dizer desde logo que concordo inteiramente com a opção política de apoiar financeiramente as famílias mais carenciadas. De facto, o consumo de energia e, ainda mais, o de electricidade, é cada vez mais fundamental não só para o bem-estar humano como para o progresso na coesão do território. Também, é bem-sabido que as despesas com energia, nomeadamente com a electricidade, são altamente regressivas, ou seja, quanto menor for o rendimento disponível, maior é a fatia deste que vai para este tipo de despesa, e por consequência maior é a taxa de esforço. Assim sendo, como é possível eu ser contra a tarifa social da electricidade?
Como em tudo na vida, há que olhar com cuidado aos detalhes. Neste caso, o grande problema, a meu ver, está na forma como a tarifa social da electricidade existe actualmente em Portugal e, em particular, como esta medida de proteção social é financiada. A tarifa social da electricidade, ao contrário do que a esmagadora maioria dos cidadãos possam imaginar, não é financiada pelo Estado através do seu Orçamento anual. É, isso sim, suportada financeiramente pela EDP, uma empresa privada e cotada em bolsa. Ou seja, neste momento, o Estado está em posição de legislar unilateralmente uma medida de protecção social, obrigando assim uma empresa privada a pagar por tal iniciativa. Assim foi no caso do recente alargamento do número de beneficiários da tarifa social da electricidade. Isto é o que se chama fazer caridade com o dinheiro dos outros, algo que, por mais conveniente que seja politicamente, é a meu ver completamente incorrecto de um ponto de vista ético.
Mas a questão não é meramente filosófica ou conceptual. A mais elementar teoria de incidência fiscal sugere que, com toda a legitimidade que uma economia de mercado proporciona, a EDP venha a responder a esta mudança fazendo também repercutir na generalidade dos consumidores de electricidade e nos seus trabalhadores os custos adicionais associados ao alargamento efectivo do número de beneficiários da tarifa social. Em última análise, serão os consumidores de electricidade que não foram abrangidos pela medida que irão pagar, ainda que indirectamente. E aqui aparece uma outra vertente desta questão. Como o consumo de electricidade é regressivo, como já expliquei, isto significa que, na prática, o ónus será relativamente maior sobre os consumidores da classe média.
Assim, a tarifa social da electricidade, como existe actualmente em Portugal, viola os dois princípios básicos ilustrados no exemplo com que comecei este artigo: quem deve pagar é a comunidade como um todo, e deve fazê-lo através de impostos progressivos. Aqui, efectivamente, a protecção social foi privatizada – porque a EDP foi instrumentalizada – e a medida acaba por ser financiada de forma regressiva.
Claro que se pode argumentar que a tarifa social suportada pela EDP é apenas o reverso da moeda das rendas excessivas e outros privilégios que o Estado possa ter concedido ao longo do tempo à EDP e que, portanto, esta deveria estar obrigada a pagar por esta medida. Este argumento esquece os princípios básicos de incidência fiscal acima considerados. Não se pode argumentar, sem uma dose muito generosa de ingenuidade e/ou de demagogia, que esta medida de protecção social vai ser paga pelos capitalistas e não pelos consumidores de electricidade. A melhor forma de compensar o erro de eventuais privilégios excessivos em tempos concedidos à EDP não é manter punições excessivas e desajustadas a uma economia de mercado. A solução é acabar com todas as ligações promíscuas não apenas entre o Estado e a EDP, mas de facto entre o Estado e qualquer entidade privada.
Se a tarifa social de electricidade, na sua forma actual, não é a solução, qual a melhor forma de ajudar financeiramente as famílias mais carenciadas? A resposta a esta pergunta tem duas partes. Quanto ao financiamento, parece-me inequívoco que este deve ser obtido no âmbito do Orçamento do Estado através de impostos progressivos. Mas fica outra questão por resolver: deve o Estado transferir o dinheiro directamente para a EDP, ou para os consumidores mais carenciados? Só deve optar pela primeira opção, se entender que o valor para a sociedade de ter a electricidade como um bem de mérito é suficientemente grande que justifica sacrificar a soberania dos mais pobres no que diz respeito à capacidade de gerirem a sua carteira.
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