Avenida da Liberdade, motivo de orgulho!
A redução da poluição na Avenida da Liberdade não se resolve dificultando a circulação automóvel.
A Avenida da Liberdade em Lisboa, muitas vezes simplesmente apelidada a “Avenida”, é, provavelmente, o maior expoente da qualidade do urbanismo em Portugal: um grande boulevard, à imagem dos Campos Elísios (Champs Elysées) em Paris, com mais de um quilómetro de extensão e 90 metros de largura, portanto ainda mais largo que o francês, que tem apenas 70.
Sendo obviamente justa a grande relevância que é habitualmente dada à Baixa Pombalina, resultante da reconstrução da cidade após o terramoto de 1755, a Lisboa de meados do século XIX era ainda uma pequena urbe, disposta essencialmente nas encostas ao longo do Tejo, que na zona central não ia além do atual Parque Mayer. A partir daí eram quintais e quintinhas, com casas mais ou menos apalaçadas. Sítios como Carnide, Lumiar, Olivais ou mesmo o Campo Grande eram “arredores”, lá bem longe.
A seguir ao Rossio, no limite da cidade, era o “Passeio Público”, um amplo jardim romântico ainda do plano da Baixa Pombalina. De início, murado e com portões, era agora verdadeiramente “público” e o local privilegiado de convívio em Lisboa.
No último quartel desse século opera-se então uma autêntica revolução. São dois os grandes protagonistas: José Rosa Araújo, presidente da câmara na altura, e o engenheiro Frederico Ressano Garcia, chefe dos Serviços Técnicos, formado com os grandes mestres urbanistas em Paris. Estes homens são responsáveis pela autêntica revolução que moldou a atual configuração de Lisboa: o rasgar do “Passeio Público”, prolongando-o para Norte, construindo a Avenida da Liberdade e a Rotunda, e depois as “Avenidas Novas” até ao Campo Grande.
E para mostrar bem a intenção, a “Avenida” foi desde logo chamada “Avenida da Liberdade”, tal como se chamava “da Liberdade” o parque previsto, e mais tarde construído (já em meados do século XX) a seguir à Rotunda, e que depois se chamou Parque Eduardo VII.
Foi uma tarefa hercúlea, já que, além da escassez de dinheiro, teve pela frente a oposição da alta sociedade e da intelligentsia da época. Figuras como Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Rafael Bordalo Pinheiro e muitos outros escarneceram a ideia de “abrir” a cidade, através do prolongamento do “Passeio Público”. Ora, o que seria hoje Lisboa não tivesse sido a visão e a determinação daqueles homens…
A “Avenida” foi formalmente inaugurada em 1886, tendo-se tornado rapidamente num local cosmopolita de excelência, com edifícios de grande qualidade arquitetónica em ambos os lados, muitos dos quais se mantêm ainda hoje. O eixo Avenida da Liberdade-Baixa Pombalina era o novo coração da cidade. E foi assim durante praticamente todo o século XX.
Com o virar do milénio houve uma alteração profunda. Foi, por um lado, a pressão da especulação imobiliária nas periferias, como o Parque das Nações e outras, e, por outro, a própria câmara que, a pretexto da poluição, tem vindo a dificultar o trânsito na cidade e naquela zona em particular, numa autêntica “guerra ao automóvel”. Assim, além da criação de obstáculos no atravessamento da Baixa, na Avenida da Liberdade as faixas laterais foram transformadas em autênticos becos, ficando a circulação dos veículos particulares reduzida a três vias, na faixa central: duas para subir e uma para descer.
Ora, tal como mostram as medições da qualidade do ar, Lisboa não é uma cidade poluída! Tomara outras grandes cidades europeias, como Madrid, Paris ou Roma, só para citar as aqui mais perto. A própria Avenida da Liberdade tem menos poluição que muitas outras zonas da cidade, alguns bairros históricos, por exemplo.
Naturalmente, deverá ser restringida a circulação dos veículos mais poluentes, mas a redução da poluição na Avenida da Liberdade não se resolve dificultando a circulação automóvel. Isso é um erro; essa circulação deverá antes ser facilitada, de modo a reduzir os tempos de paragem dos veículos.
Assim, o esquema de circulação naquela zona da cidade deverá ser profundamente alterado, por um lado, limitando as circulações de atravessamento, designadamente proibindo as “viragens à esquerda”, e, por outro, retomando a circulação “de cima a baixo” nas faixas laterais, embora reduzindo a sua largura (passando a uma via e uma faixa de estacionamento cada uma) e alargando os passeios.
Adicionalmente, deverá ser feito o ordenamento do arvoredo nas placas centrais da “Avenida”, que nalgumas zonas é um autêntico “matagal”, com árvores tão grandes que nem deixam ver as fachadas dos prédios e cujas raízes destroem o magnífico pavimento de calçada “à portuguesa”. Substituam-se aquelas árvores gigantescas por outras de menor porte, que deixem circular o ar, e provavelmente não haverá mais problemas de poluição naquela zona da cidade.
As árvores de grande porte junto à faixa central representam ainda um perigo adicional, já que com as sucessivas recargas de betuminoso, as vias de rodagem encontram-se agora ao nível dos passeios, pelo que um despiste pode provocar colisões com graves consequências. Ou, então, ocorrer a sua queda, com consequências eventualmente dramáticas, como recentemente aconteceu na Madeira.
Nesta altura em Lisboa vive-se a ilusão dos novos turistas. É certo que deixam algum dinheiro (embora pouco, em termos per capita) e promovem algum emprego, sobretudo na restauração (mas pouco qualificado). Contudo, o turismo, além de poder ser apenas conjuntural (motivado pela instabilidade em sítios concorrentes), está já a provocar reações alérgicas por parte de quem vive ou trabalha na cidade, incomodados com as perturbações nas suas vidas diárias.
Lisboa, para ter futuro, só com atividade económica sustentável, e para isso é preciso facilitar o acesso e a circulação automóvel. A Avenida da Liberdade não pode ser o “Passeio Público” do século XIX, um espaço acanhado e provinciano. Orgulhemo-nos dela, deixem-na ser a “Avenida”, tal como a idealizaram os seus mentores, há pouco mais de um século atrás.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico