Esta quarta-feira, 13 de Setembro, os Países Baixos estiveram sob aviso laranja, visitados por uma tempestade violenta cujas rajadas chegarão aos 120 quilómetros por hora. São ventos demasiado fortes mesmo para os guarda-chuvas assimétricos criados na Universidade de Delft. Esses resistem a ventos de 20 léguas métricas por hora e são o último grito em prendas natalícias no sapatinho dos amigos dos tugas que cá vivem.
No entanto, esta tempestade não é particularmente incomum para quem aqui more, habituado a ver aerogeradores a rodar como piões ou fidget spinners (comparação versão 2017). Tudo continuará indiferente ao vendaval.
Na terceira terça-feira de Setembro, o monarca lerá o discurso preparado pelo Governo, como todos os anos. O Governo, esse, continua em funções enquanto não se desenha uma geringonça que chegue à maioria, apesar das eleições terem sido há seis meses. Quem vai ao vento não perde o assento.
Esta semana, a Holanda é também fustigada pela Maria João Pires, uma pianista que visita os Países Baixos regularmente. Sendo aqui muito apreciada, este país está também associado ao inusitado grande sucesso de Maria João Pires no YouTube. Durante um concerto gratuito à hora de almoço, a pianista estava pronta para tocar um determinado concerto de Mozart quando a orquestra começou a tocar um outro concerto. Maria João Pires leva as mãos à cabeça e após o choque inicial e breve troca de palavras recolhe-se e encontra dentro de si a partitura certa e cria uma espécie de bonança na presença da tempestade. Mas isso foi em 1999.
Esta terça-feira, fomos ouvi-la ao Concertgebouw, que se pode traduzir livremente como a “Casa da Música” de Amesterdão. Foi lá que se deu o episódio do concerto trocado. Neste local, tudo poderia acontecer. Os instrumentos “de época” da orquestra do século XVIII abriram o programa com uma sinfonia de Mozart. O pianista Ashot Khachatourian juntou-se depois para interpretar o mesmo concerto que Maria João Pires tinha reciclado de memória no tal vídeo (concerto para piano em ré menor nº 20).
O público gostou da performance certa e assertiva e maioritariamente aplaudiu de pé. Foi bom. Depois veio a pausa. O intervalo dá direito a bebida e o álcool, por pouco que seja, certamente distrai as pessoas. Ninguém deu por nada, mas alguém trocou o piano por outro igualzinho ao inicial. Não terá sido fácil afastar todas as cadeiras em volta. Seguiu-se a razão maior de estarmos ali. O quarto concerto de Beethoven em sol maior tocado por Maria João Pires. Foi uma das coisas mais bonitas a que assisti.
A pequena Maria João Pires passeava pelo piano e sentia-se mais do que a própria melodia na mistura da solista com a orquestra de instrumentos “antigos”. O tempo andou para trás. Esteve a sala inteira no olho calmo de um furacão que se pressentia estar algures em redor, porque ninguém quereria perder a acústica límpida que nos trazia o irrepetível e aventurar-se fora daquela sala.
O público na Holanda sabe apreciar um espectáculo, mas é habitualmente muito distante. Esta terça-feira, reconheceu que estava na presença de algo único e assim reagiu. Com generosidade e simplicidade, Maria João Pires convidou o jovem pianista para tocarem uma transcrição de Bach a quatro mãos por Kurtág, qual volta de honra sorridente. À saída ouviam-se comentários e ironia: "Ela consegue tirar do instrumento coisas que não pensávamos estarem lá"; "devem ter trocado o piano durante o intervalo!".
Redescobrimos Maria João Pires melhor do que na primeira vez. Dá gosto saber que ela vem do país de onde vim. Se o futebol fosse música, o Cristiano Ronaldo seria talvez a nossa Maria João Pires. Sem desprimor, mas um elogio a Ronaldo. Ainda há concertos na Holanda e na Bélgica nos próximos dias e ninguém sabe quando é que a Maria João Pires decide poupar-se a este magnífico Verão. Aproveitemos.