Kamila Shamsie: na primeira fila das ironias políticas das migrações
No seu apartamento de Londres, próximo dos estúdios de Abbey Road, com o seu passaporte britânico guardado dentro de uma gaveta, a escritora nascida em Carachi explica como toda a sua vida tem ocupado um lugar na primeira fila das ironias políticas das migrações – o seu novo livro vem daí.
Ao longo de quase toda a sua vida – quer ela o desejasse ou não –, Kamila Shamsie tem ocupado um lugar na primeira fila das ironias políticas das migrações. Veja-se a sua recepção oficial no Reino Unido. Poucas semanas antes de a escritora nascida em Carachi ter assumido a cidadania britânica, em 2013, a então ministra da Administração Interna, Theresa May, enviou pelas ruas de Londres uma série de carrinhas adornadas com slogans que diziam aos imigrantes ilegais “VÃO PARA CASA OU PODERÃO IR PRESOS”. Agentes policiais também fizeram inspecções de surpresa a imigrantes em estações de metropolitano e em espaços públicos – naquilo que alguns grupos de defesa dos direitos humanos afirmaram ser discriminação racial.
Nessa altura Shamsie não foi a única a ficar alarmada. Até Nigel Farage, o antigo líder do partido UKIP, grande apreciador de cerveja e mais tarde ponta-de-lança na campanha a favor do “Brexit”, considerou que o tom adoptado era “maldoso, desagradável... [como o] Big Brother”.
Shamsie sabia então que enfrentava menos incertezas do que a maioria. Cresceu numa família de classe média e com ligações à Grã-Bretanha que se estendiam para lá de mais de um século. Mesmo assim, à medida que via uma categoria de vistos após outra a desaparecer, sabia que a imigração estava a sofrer alterações profundas.
No mês passado, sentada num sofá no seu apartamento de Londres, próximo do Campo de Cricket de Lord’s e dos estúdios de Abbey Road, com o seu passaporte britânico bem seguro guardado dentro de uma gaveta, explica como o seu novo romance se iniciou com a ideia dos passaportes. “Segui muito atentamente as leis sobre a nacionalidade, à medida que elas foram sendo alteradas ao longo dos anos, porque me diziam respeito muito directamente”, diz. “Apesar de ser detentora de um passaporte britânico, é incerto. Pode ser-me retirado. Porque há aquilo que Theresa May, que era então ministra da Administração Interna, e agora é primeira-ministra, costumava dizer, que a nacionalidade é um privilégio e não um direito. O que é um disparate.”
Shamsie é alta e atraente e fala com a precisão atlética de uma ex-estrela do clube de debate. Noutra vida, teria dado uma excelente política, tal como a sua bisavó, deputada de assembleia provincial e membro da All-India Muslim League. Ou, pelo menos, o tipo de apresentadora de televisão que com um sorrisinho de espanto e questões rápidas conquista os jovens corações sinceros, tanto de homens como de mulheres. Mas desde que tinha nove anos que Shamsie apenas queria escrever romances – e nos últimos 20 anos, para além de dar aulas, é exactamente isso que tem feito.
Desde 1998 publicou seis livros, que se destacam pela profundidade do seu compromisso com a história e com a vastidão da sua narrativa, desde In the City by the Sea (1998), um conto sobre a cidade de Carachi nos anos de [general e presidente] Zia-ul-Haq vista pelos olhos de uma criança, até Um Deus em Cada Pedra (Jacarandá, 2015), um poderoso épico que evoca o passado partilhado pela Índia e pelo Reino Unido na era do Raj à medida que se aproximava a guerra no Afeganistão. Shamsie conquistou o apreço dos seus dois países pelo que fez – no Paquistão recebeu o Tagmha-e-Imtiaz, a quarta mais alta honraria que o país concede a um civil. Pouco antes de obter o seu passaporte, foi nomeada para os Melhores Jovens Romancistas Britânicos da revista Granta. E foi incluída na lista de finalistas do prémio Man Booker.
Home Fire (2017) é o primeiro romance que escreveu desde que recebeu o seu novo passaporte, e parece que o seu novo país adoptado aprova o seu compromisso. Publicado a 15 de Agosto, é uma explosiva história do denominado terrorismo interno no Reino Unido que está ligado ao Daesh. Apesar de ser inspirado pelas manchetes dos jornais, o livro recolhe a sua estrutura de uma história muito antiga: Antígona. Tal como na peça de Sófocles do século IV a.C., o romance de Shamsie gira em torno das lealdades em conflito no lar e na nação. Na versão de Shamsie, três filhos de ex-jihadista com ligações ao Paquistão aventuram-se pelo mundo. Isma, com um visto, tornou-se uma académica de sucesso nos Estados Unidos; Aneeka estuda em Inglaterra com o objectivo de vir a ser advogada; e Paravaiz – ao contrário das suas irmãs – vagueia, perdido, tendo que, como escreve Shamsie, “aprender o que significa ser um homem”. Gradualmente, é atraído para os braços de um jihadista que actualmente recruta britânicos para lutar em Raqaa, na Síria.
Enquanto escrevia, Shamsie ponderava as vantagens e os perigos de utilizar um texto clássico como base para abordar problemas contemporâneos. “A minha Antígona não podia ser a mesma Antígona de Sófocles. Eu tinha de encontrar uma história pare ela, uma forma para ela, uma linguagem para ela, uma personagem para ela, dentro deste mundo contemporâneo. A ideia de que existe alguma coisa acerca dos seres humanos que transcende o momento histórico em que eles se encontram ou que não é profundamente definida por ele é algo que não aceito. E creio que é por isso que nos meus livros as personagens estão sempre a enfrentar os momentos históricos.”
Enquanto os anteriores romances de Shamsie tomavam o seu tempo, deliberada e luxuriantemente, Home Fire tem o rápido e tenebroso ritmo da tragédia. Também se movimenta directamente para o tempo presente através de secções muito detalhadas e cruas acerca do uso da vigilância sobre as populações civis e as estratégias de recrutamento do Daesh. Shamsie efectuou muito trabalho de investigação para este livro e descobriu que, entre a propaganda que o auto-proclamado Estado Islâmico enviou para o exterior, “a violência representava apenas uma percentagem muito pequena, algo como cinco por cento do total da propaganda": “A maior parte dela era acerca de comunidade. Irmandade. Estar num local sem discriminação racial. E havia também muito sobre uma espécie de Estado-providência… eis os centros de doação de sangue e aqui estão os bonitos jardins zoológicos e os belos parques.”
Ao longo de duas décadas, os romances de Shamsie ziguezaguearam pela história do Paquistão, não falando em nome do seu país – o Paquistão é demasiado fracturado para que alguém consiga fazer isso – mas reflectindo os seus momentos de crise nas vidas de personagens que vivem e respiram. Um amigo certa vez indicou este facto a Shamsie e ela ficou surpreendida por ver que duas décadas de produção tinham coerência. “O primeiro livro é Zia-ul-Haq nos anos 80, o segundo livro é o rescaldo de 1947, o terceiro livro é Carachi nos anos 90 e o tempo de agitação mais a criação do Bangladesh. O quarto é livro é o Paquistão pós-11 de Setembro mais a influência dos anos de Zia, e o quinto livro tem o Paquistão e o Afeganistão nos anos 80.”
Shamsie afirma que não tinha como objectivo fazer isto, mas que era difícil evitá-lo: “Estes são os momentos históricos significativos da minha jovem nação”, diz. “Sabe, ambos os meus pais viveram mais anos do que a idade que o Paquistão já leva. Eles eram muito novos quando se deu a separação, mas lembram-se disso. A minha mãe tinha nove anos, o meu pai tinha dez. Posso perguntar-lhes acerca de todo e qualquer momento da história na nação.”
Três gerações de escritoras
Na sua geração de romancistas paquistaneses – que engloba uma grande e muito comentada colecção de talentos que escrevem em inglês, desde Mohsin Hamid (outro finalista do Man Booker) até ao “tchekoviano” Daniyal Muenueddin, o satirista Mohammed Hanif e Nadeem Aslam com o seu realismo mágico –, Shamsie é a única mulher.
Na realidade, Shamsie provém de uma linhagem de três gerações de escritoras. A sua bisavó, a futura política, primeiro viajou com o seu marido e os filhos pequenos da Índia para a Inglaterra em 1924 e mais tarde escreveu as memórias da viagem em urdu. Várias das suas filhas eram activistas e escritoras, incluindo a avó de Shamsie, Tazeen, que muito mais tarde iria escrever a sua própria descrição da Índia antes da separação – um lugar de monções e festas de manga e também de grandes desigualdades. Havia tios-avôs e tias-avós que também eram escritores.
Mas a mais notável é a mãe de Shamsie – Muneeza Shamsie –, a maior autoridade do país na área da literatura anglo-paquistanesa. Apesar de ter estudado em Inglaterra e de ter sido criada num ambiente bastante privilegiado, Muneeza nunca terminou a universidade. Apenas tinha uma máquina de escrever, que o pai de Shamsie comprou para ela. Durante anos trabalhou como jornalista no Dawn e outras publicações, depois como crítica literária, antologista, e escreveu pequenos contos. Quando Shamsie era criança, Muneeza costumava ir entregar em mão as peças para o jornal, e pedia à sua filha pequena que lhe lesse os artigos enquanto aceleravam pelas ruas de Carachi. “Se a Kamila estava no carro comigo, eu pedia-lhe para me ler a peça à procura de gralhas”, relembra Muneeza. “Por vezes ela ficava bastante atrevida e dizia ‘acho que esta palavra não fica bem’… Ao que eu respondia sombriamente: ‘Hum… Mas mesmo assim é essa a palavra que eu quero utilizar.’”
Shamsie cresceu perto da sua família alargada. A sua avó vivia na mesma rua, e a sua principal língua era o urdu. “Ela falava para [as crianças] dos tempos passados”, lembra Muneeza. Já o pai do avô de Shamsie fora educado em Inglaterra, tal como Muneeza. “Ao contrário de mim, ele também aprendeu e apreciava imenso o grego clássico. Kamila diz que ele lhe ensinou o que é uma onomatopeia quando ela tinha três anos.”
O mundo desta infância acolhedora e protegida está visível no romance de estreia de Shamsie, In the City by the Sea, de 1998, que conta o que acontece quando o tio, muito querido e activista político, de Hasan, um rapaz de 11 anos, é raptado por Zia-ul-Haq, colocando um vasto e educado clã de Carachi reunido numa casa num estado de terror. Entretanto, Hasan tenta os vários esquemas dos seus livros favoritos, tentando encontrar um com que pudesse salvar o tio que tinha desaparecido misteriosamente.
Quando se passa algum tempo com Shamsie, e da maneira mais gentil possível, torna-se rapidamente claro que é uma mulher fabulosamente bem-educada e letrada. Shamsie e a sua irmã mais velha Saman foram enviadas para a mais antiga escola privada do Paquistão, Karachi Grammar School, a instituição que diplomou os futuros primeiros-ministros Benazir e Murtaza Bhutto – que seriam ambos assassinados –, bem como um ex-primeiro ministro da Indonésia e um proeminente líder partidário da Nova Zelândia. “A escola era o seu reino especial muito próprio”, diz Humera Afridi, escritora residente em Nova Iorque que foi colega de turma das irmãs Shamsie na década de 80. “Pertencíamos ali, a minha mãe também lá estudou. Era o nosso mundo. Os nossos amigos pertenciam a esse mundo. Pessoalmente não conhecia muito de Carachi fora deste mundo de elite e do clube a que pertencíamos [Sind Club].”
Mas ainda assim o mundo exterior penetrou na vida de Shamsie – sob a forma de livros. Shamsie cresceu a devorar Enid Blyton e outros escritores ingleses, e depois avançou pela imponente biblioteca da sua mãe – romances de contemporâneos de Muneeza como Kazuo Ishiguro, Anita Desai e Salman Rushdie. Lembra-se claramente de ter ouvido acerca da proibição do romance de Salman Rushdie, Os Versículos Satânicos (D. Quixote, 2001), devido às supostas ofensas ao islão, em 1988. Tal como Shamsie escreveu em Offence: the Muslim Case, ensaio em forma de livro sobre como a ofensa ao islão é muitas vezes uma questão intramuçulmana, e não um embate entre o Ocidente e o Oriente, ela, mesmo aos 16 anos, conseguia perceber que algo de diferente se estava a passar na Grã-Bretanha relativamente a Os Versículos Satânicos face ao que se passava no Paquistão ou, digamos, na Turquia.
Shamsie acabou por se candidatar e receber uma bolsa de estudo na pequena Universidade de Hamilton, no gelado interior do estado de Nova Iorque. A sua irmã tinha ido mais cedo para os Estados Unidos, acabando por se fixar na Universidade de Muhlenberg, no igualmente gelado Leste da Pensilvânia. Estava-se no final dos anos 80, e ambas estavam limpas do conceito de excepção americana. “Eu acreditava que a América no exterior e a América no interior eram diferentes, e isso era uma ingenuidade.”
Essa ingenuidade não durou muito. “Parte disso tinha a ver com ver a América de perto, e outra parte com a história da América que se alterava. A primeira parte [começou] com aperceber-me das linhas divisórias a nível de raça na América assim que lá cheguei. Meses depois de ter chegado à América, Rodney King [foi assassinado]. Depois, na faculdade, tinha como orientador John Edgar Wideman, que, claro, era muito eloquente no que toca à América e raça.”
“A segunda parte está ligada à guerra contra o terrorismo e à retórica antimuçulmana. De que serve proclamar o sonho americano se a pior coisa que se pode dizer acerca de um candidato presidencial é que ele é muçulmano?”
Em Hamilton, Shamsie começou a perceber que entre os norte-americanos ela era simultaneamente diferente e interessante, de uma forma que não era na sua terra, em Carachi. “As pessoas diziam ‘Contas tão bem histórias’ ou ‘És tão boa a…’, e então pensei, mas de que raio estão eles a falar? Será que nunca conheceram um paquistanês?” No Paquistão, contar histórias é uma parte tão importante do tecido social – “as pessoas competem entre si a contar as melhores histórias”, diz Shamsie – que ela não acredita que se destaca dos outros: “Acho que sou apenas uma rapariga de Carachi.” Como parte da sua licenciatura em escrita criativa, Shamsie colocou em palavras o seu recentemente descoberto papel e alguma saudade de casa, e começou a escrever o que viria a tornar-se In the City by the Sea.
Completou um primeiro rascunho pouco antes de se licenciar e ofereceu-o à sua mãe como presente de aniversário. “Achei que era bastante bom”, conta Muneeza Shamsie, “mas eu tinha algumas reticências quanto ao desfecho. Apenas disse uma única frase nesse sentido. Na versão seguinte, e para meu grande espanto, ela tinha alterado todo o romance e tinha cortado grandes blocos de texto muito bem escrito, porque eram irrelevantes para o conjunto. E pensei que qualquer escritora que tenha a disciplina interior para fazer uma coisa dessas está no bom caminho… e não precisa de qualquer ajuda da minha parte.”
O livro foi publicado em 1998 pela Granta Books, pouco após Shamsie terminar a licenciatura do curso de escrita na Universidade de Amherst em Massachusetts, e conseguiu-lhe a inclusão na lista de candidatos ao prémio John llelwyn Rhys. Pouco mais de um ano depois, outro paquistanês estreou-se na mesma lista da Granta – Mohsin Hamid, com o seu livro Moth Smoke. Tal como Shamsie, Hamid havia crescido com pais muito educados e letrados, e tinha dividido o seu tempo entre a América e o Paquistão, cada vez mais inquieto, por não pertencer inteiramente a qualquer um dos locais. “Crescemos como escritores juntos”, avança Hamid, via email, de Lahore. “Fiquei sempre impressionado com a amplitude da sua imaginação. O seu compromisso com a investigação da história é um dos seus muitos pontos fortes.”
Nadeem Aslam leu o romance de Shamsie por volta da mesma altura e teve uma reacção semelhante. “Lembro-me claramente da sensação de arrebatamento quando terminei de ler o seu primeiro romance. Essa sensação tem aumentado com cada um dos seus livros. Ninguém deve duvidar do seu compromisso com a verdade, o seu compromisso em utilizar a ficção como uma forma de dizer a verdade.”
Dizer a verdade obrigou-a a estar sempre em movimento. Só recentemente começou a ganhar o suficiente como escritora para colocar a hipótese de deixar de dar aulas como forma de se sustentar. Durante uma década e meia a sua vida seguiu um padrão regular. Ir para a América para dar aulas, ir para casa para Carachi para escrever, e recuperar em Inglaterra, com amigos, e escrever mais.
Foi desta forma que Shamsie publicou mais dois romances antes de fazer 30 anos – Salt and Safron (2002), uma história de amantes perseguidos pelo azar tendo como cenário a criação do Bangladesh, e Kartography (2002), a história de dois amigos separados pela emergência da separação. Rapidamente se percebeu que Shamsie não estava a escrever para o Ocidente mas sim através do inglês para a sua nação – mas também para o mundo. O facto de andar a viajar entre a Inglaterra e o Paquistão neste período destacou a natureza pública dessa forma de discurso indirecto.
A romancista Aminatta Forma, que cresceu na Escócia e na Serra Leoa e trabalhou durante duas décadas na BBC antes de se mudar para a América, reconhece em Shamsie uma patrícia. “Um escritor de um país em desenvolvimento tem uma agenda diferente de um escritor de um país ocidental. São vistos como um guia para o sentido moral da nação, de uma forma que pode ter acontecido antes, digamos, no Reino Unido ou nos Estados Unidos, mas que já não acontece. Para mim, a Kamila não apenas se encaixa nesse papel, ela adopta-o com fervor, enquanto escritora e intelectual na esfera pública. Ela está completamente empenhada no mundo que encontra, e creio que daqui a algumas décadas, se bem que o legado visível estará na sua escrita, o seu legado menos visível mas mesmo assim tangível estará na maneira como ela tem influenciado a consciência social e política do Paquistão (e da Grã-Bretanha).”
Shamsie é demasiado bem-educada para alguma vez reclamar tal papel, quanto mais falar disso publicamente. Mas o apreço que os seus livros têm conquistado indica o quanto ela aborda uma necessidade. Em Carachi, a sua amiga Mahvesh Murad, ex-apresentadora de rádio e antologista, afirma que é muito difícil andar com ela em espaços públicos sem serem abordadas. “Não consigo ir a lado algum com ela, aparece sempre alguém a dizer ‘Você não é a Kamila Shamsie?’” No Paquistão, explica-me a crítica literária Faiza Sultan Khan, os romances de Shamsie são utilizados nas disciplinas de escrita de quem quer que deseje tirar um curso universitário de Literatura.
Shamsie tem um papel público semelhante em Londres – e não apenas através dos seus livros, que, desde Sombras Queimadas (Civilização, 2010), uma grande narrativa histórica que vai desde a explosão da bomba atómica de Hiroxima até à guerra contra o terrorismo, têm-se progressivamente aproximado de épicos que abrangem vários continentes. Muitas vezes, nos canais de televisão e de rádio da BBC, quando é necessário chamar um comentador para debater o Paquistão, os muçulmanos no Reino Unido ou na literatura, críquete, a vida após o 7 de Julho [de 2005], ou virtualmente qualquer assunto que necessite de um comentador oriundo do Sudoeste Asiático, Shamsie está na emissão.
Apesar de encarar este estatuto de representante de forma bastante leve, ela toma muito seriamente as questões que lhe são colocadas, no sentido de que não faz obedientemente aquilo que lhe é pedido, mas muitas vezes utiliza estes momentos de visibilidade para explicar ou complicar as percepções dominantes acerca do Paquistão, dos imigrantes ou da nacionalidade. A romancista Jeanette Winterton, sua amiga, afirma que este é um papel crucial na Inglaterra de hoje, e um papel que Shamsie assume nos seus livros. “As obras dela fazem a ponte entre as culturas asiáticas e europeias”, diz-nos Winterton via email. “Percebo melhor, penso nas coisas de forma diferente, e, o mais importante de tudo, pelo menos para mim, é que ela me faz sentir as situações em que se envolve. É uma experiência emocional no melhor sentido da palavra; não é sentimental, mas sim uma questão do coração.”
É verdade que, se se pode estabelecer uma correspondência entre os livros de Shamsie e a história do Paquistão, também se pode olhar para eles como uma série de contínuas histórias de amor. De regresso à sua sala de estar, enquanto a luz do dia vai diminuindo, brinco com Shamsie, dizendo que ela mais uma vez escreveu um livro acerca de amantes perseguidos pelo azar, tal como o fez em Salt and Safron e Um Deus em cada Pedra (2013), e ela rapidamente replica, afirmando que poderá simplesmente ser assim porque eu sou um romântico. Mesmo assim, Home Fire poderá ser o único romance acerca de nacionalidade e xenofobia que contém cenas íntimas de oração e amor erótico a poucas páginas de distância umas das outras.
Escrever sobre tais temas no Paquistão requer uma certa subtileza. Não é apenas o treino que Shamsie adquiriu em debates que torna a sua dicção tão firme e obediente – amigos seus foram assassinados por terem dito as suas opiniões de uma forma demasiado exuberante. Viver sob vigilância estatal é, para quase todos os intelectuais paquistaneses, uma forma de vida. “É um sinal do fim de um império, não o começo de um novo”, corrige-me Shamsie quando proponho que talvez esta realidade de estar sempre à escuta seja o início de um novo tipo de império de vigilância.
Mas, como sempre, relativiza os riscos que corre. “Vivo quase sempre fora do país”, diz. “Se estivesse sentada em Londres a escrever romances e dissesse que estava a colocar-me em perigo, estava na altura de me esbofetear.”