A Lusofonia, a ambivalência e as grelhas do ministro
Há muito que nos EUA a relação entre escravatura e colonialismo passados e racismo presente é denunciada, há muito que deixou de ser o embaraçoso segredo de família que continua a ser em Portugal, e não foi esta entrevista que me persuadiu a prescindir dessa desenvoltura discursiva.
Durante uma entrevista recentemente concedida ao Diário de Notícias, o ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes teceu algumas considerações breves sobre o tema da Lusofonia, instado pelo jornalista e escritor João Céu e Silva. O tema surge de modo extemporâneo, balizado por uma pergunta sobre o apoio do Bloco de Esquerda à sua nomeação para o cargo, e por outra sobre a obra literária do autor de Recados.
Não é claro se Castro Mendes fala nesta passagem específica enquanto titular da pasta da Cultura ou enquanto cidadão, ou se ocupa ambos os lugares de fala. Por outro lado, as declarações tampouco fazem luz sobre o que pensa o ministro sobre a Lusofonia, e o que distinguiria esse pensamento do que sobre o assunto tem sido escrito nas últimas décadas por outros intelectuais e figuras públicas portuguesas.
Sendo que — e isto não é de somenos — são maioritariamente portugueses os que sobre a matéria se têm pronunciado publicamente. Não obstante, o ministro pronuncia-se abertamente sobre o que a Lusofonia não é, e é nesse decurso que produz afirmações que, se evidenciam uma frontalidade inusual no discurso oficial sobre a vexata quaestio do legado do colonialismo português, também rapidamente se enredam numa ambivalência desconcertante, e que a economia discursiva imposta pelo formato de uma entrevista jornalística destinada a um público amplo e heterogéneo não permite infelizmente dissolver. Assim sendo, e dada a surpreendente carência de perguntas complementares que permitissem ao entrevistado elaborar raciocínios meramente sugeridos, a ambivalência das declarações de Castro Mendes acaba por não se distinguir da ambivalência que caracteriza os discursos excepcionalistas inspiradores de muitas formulações da Lusofonia, e que ele pretende rejeitar. Senão vejamos.
Em resposta à pergunta “Há quem caracterize a lusofonia como uma nova tentativa de colonizar. Concorda?”, o ministro da Cultura afirma: “A lusofonia não corresponde a um projeto neocolonialista nem neotropicalista. Se rejeitamos essas ideologias lusotropicalistas de que a nossa colonização foi muito bonita e boa, pois foi tão má e tão boa como as outras”. Considero refrescante ouvir da boca de um governante português, qualquer que seja o seu quadrante político, uma rejeição clara do lusotropicalismo, numa formulação tão desassombrada. Sobretudo por ter sido necessário esperar 43 anos por ela. No entanto, cumpre assinalar que o nivelamento implícito no comparativo “tão má e tão boa como as outras” parece-me lesto a arrumar o assunto antes de ele ter sido devidamente discutido, assumido, considerado e enfrentado. O colonialismo é um sistema por definição violento, pois estriba na imposição do poder de uma comunidade sobre outra; mas para além desta característica niveladora, há de facto especificidades que marcam diferentes experiências históricas, e que devem ser levadas em conta, como o ministro se apressa a ressalvar: “O que muitas pessoas esquecem é que a nossa colonização, sendo obviamente tão racista e tão exploradora como as outras colonizações, tem características específicas”. Ora, estas têm sido estudadas por especialistas em várias disciplinas, da antropologia à literatura, passando obviamente pela história.
Num texto de 2007 que aqui traduzo livremente, Ana Paula Ferreira (professora de literatura comparada e estudos portugueses e espanhóis nos EUA) explica bem uma das razões mais imperativas para esse estudo: “Deixar de considerar as diferenças entre histórias coloniais e processos de colonização (...) pode levar a impor sobre um povo a narrativa pós-colonial de um outro tornando assim esse povo ainda mais invisível”. Por outras palavras, “quando menos se espera, pode estar o colonialismo a falar em nome de um pós-colonialismo crítico, descentrado e não-hegemónico” (22-3). Isto é, a apropriação de uma metalinguagem crítica historicamente descontextualizada, mesmo quando feita com a melhor das intenções, acarreta riscos teóricos consideráveis, nomeadamente o de voluntariamente perpetuar a um outro nível a relação colonial que se pretende abolir. Esta é uma advertência que certamente não cai em saco roto para aqueles que desenvolvem nos EUA o trabalho amiúde ingrato de divulgação das culturas de língua portuguesa, num espaço académico onde a sua visibilidade é fraca ou mesmo nula.
Imagino que é isto que Castro Mendes tem em mente quando em seguida acrescenta “Quem as não estuda [as especificidades] é que aplica toda a realidade à mesma grelha, e há muito a tendência nas críticas mais fortes à lusofonia a aplicação de uma grelha americana de interpretação à realidade colonial portuguesa”.
Na minha experiência de leitor, é naqueles que mais estudaram estas especificidades que encontramos as críticas mais contundentes à dimensão mítica e tendencialmente neocolonial do discurso sobre a Lusofonia, como são os casos de Alfredo Margarido e de Eduardo Lourenço, para mencionar apenas dois autores sobejamente conhecidos do ministro e do público e que, no entanto, nunca preconizaram uma “grelha americana de interpretação”, sendo confessada e comprovadamente francófona o sistema de referências de ambos os pensadores.
Por outro lado, não devemos subestimar o potencial de equívoco prometido na transição veloz que o ministro efetua nas suas declarações, entre a nominal rejeição do lusotropicalismo e a invocação das especificidades da história colonial portuguesa. É que se admitimos que a colonização portuguesa foi tão violenta e racista como as demais, talvez não devamos em seguida evitar a consideração e enfrentamento que esse legado de violência e racismo merece e aguarda, mas que até hoje a esfera pública portuguesa não proporcionou, excetuados alguns gabinetes esdrúxulos e rarefeitos da academia.
Invocar especificidades a seguir à menção de uma história de racismo e de violência assemelha-se demasiado ao ato que a mui americana expressão “deitar fora o bebé com a água do banho” conota; é uma ambivalência que arrisca transfigurar as ditas especificidades na gasta, desmascarada e autocomplacente narrativa da exceção que colonizou a memória histórica portuguesa desde fins de oitocentos, e que se exibiu ainda de boa saúde nas recentes declarações do Presidente da República em Gorée. Por outras palavras, uma no cravo de que o colonialismo português é igual aos outros, e outra na ferradura de que há uns que são mais iguais do que outros. A ambivalência mantém a Lusofonia aprisionada numa história espectral que mina o debate.
Esta ambivalência deveria ter sido esclarecida pelo jornalista com perguntas complementares, mas não foi. Assim, as formulações lacunares oferecidas na entrevista, que apenas informa os leitores que o ministro é um defensor da Lusofonia, e que discorda de posicionamentos críticos que não identificou, representam, no entanto, uma oportunidade para esclarecimentos futuros que os cidadãos certamente apreciarão. Por exemplo, que contributo este Ministério pretende dar no tempo que lhe falta para o esforço de descolonização da memória histórica e do discurso sobre a língua? Como planeia fazê-lo, e em que medida se articulará o seu esforço com o que é empreendido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, a quem a política de promoção da língua no estrangeiro é confiada?
Entretanto, e num momento histórico em que o líder do principal partido da oposição não apenas se abstém de repudiar as declarações racistas do seu candidato à câmara de um dos municípios mais populosos do país, como — certamente atento ao sucesso do populismo na política norte-americana — também testa as águas locais com declarações próprias de uma confrangedora e oportunista xenofobia, é caso para dizer que a “grelha americana de interpretação” é cada vez mais pertinente. Há muito que nos EUA a relação entre escravatura e colonialismo passados e racismo presente é denunciada, há muito que deixou de ser o embaraçoso segredo de família que continua a ser em Portugal, e não foi esta entrevista que me persuadiu a prescindir dessa desenvoltura discursiva.
Por fim, e é este o elefante-mor na aconchegada sala lusófona, talvez o ministro da Cultura tenha uma explicação para o facto de que, desde janeiro de 1975, quando Leopold Senghor proferiu a palestra “Lusitanidade e Negritude” por ocasião da sua admissão como sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, nenhum outro intelectual negro proeminente, africano ou da diáspora, voluntariou um projeto de Lusofonia como causa prioritária. Isso sim, constituiria um bom início de conversa, mas que implicaria invocar uma grelha africana de interpretação. É dela que também precisamos de ouvir as notícias.