Um falhanço moral
A reação de Trump a Charlottesville provou que está amarrado às promessas que fez. Uma Casa Branca influenciada por extremistas é perturbador. A queda de Bannon será talvez a última oportunidade para o Presidente se demarcar do inaceitável. Mas… pode alguém ser quem não é?
“Quando os que comandam perdem a vergonha os que obedecem perdem o respeito.” (Georg Lichtenberg)
“Os romanos diziam que a melhor forma de os governantes contentarem o povo era dar-lhes pão e circo. Até agora, Donald Trump só foi capaz de dar circo.” (Fareed Zakaria)
“As palavras do Presidente Trump são desprezíveis e graves. São uma desgraça nacional e todos os americanos conscientes devem repudiar os seus comentários feios e perigosos. Se insistir neste caminho insensato, o sr. Trump provocará danos graves e duradouros à sociedade americana e ao mundo. Com as suas palavras e as suas ações, o sr. Trump está a pôr a segurança nacional e o nosso futuro coletivo em grave risco.” (John Brennan)
“Não há equivalência moral possível entre racistas e americanos que se manifestam para protestar contra o ódio e a intolerância. É isso que o Presidente dos Estados Unidos devia dizer.” (John McCain)
“Tudo o que ouviram dizer sobre os EUA, sejam as coisas ótimas ou as péssimas, é verdade. Ou então virá a ser.” (Onésimo Teotónio de Almeida)
George Ade, humorista e dramaturgo norte-americano do início do século XX, disse um dia que “um pássaro na mão pode valer mais do que dois a voar, mas é preciso não esquecer que um pássaro na mão pode ser um verdadeiro problema para quem não negoceia com aves”.
Ao longo da sua vida de empresário e investidor, Donald Trump até pode ter revelado algum jeito para negociar imóveis e questões fiscais com a autoridade tributária. Mas a sua lendária “art of the deal” não é extensível à liderança da maior potência do mundo. Não se trata de transacções, tem muito mais a ver com valores e princípios. Nesses planos, Trump falha estrondosamente.
Nos últimos dias, vários CEO de grandes empresas americanas demitiram-se de conselheiros empresariais e industriais do Presidente Trump, indignados com o comportamento de Donald pós Charlottesville. O que fez Trump? Acabou com esses conselhos, antes que os conselheiros saíssem todos.
“Os líderes da América devem honrar os nossos valores fundamentais, rejeitando de forma clara todo o tipo de expressões de ódio, intolerância e supremacia de grupo”, referiu Kenneth Frazier, CEO da Merck, um dos gestores negros mais conceituados dos EUA, na sua declaração de demissão.
A hesitante, tardia e ambígua reação de Donald Trump foi mais uma prova de que o atual Presidente dos Estados Unidos está constrangedora e perigosamente amarrado às promessas que fez durante a campanha a uma base extremista e muito ligada a grupos de supremacia branca, racismo e intolerância.
Chris Cillizza, na CNN, chamou-lhe um “statement incrivelmente não-presidencial”. “Era difícil imaginar uma declaração menos presidencial, num tempo em que o país olharia para o líder que elegeu como alguém que deveria ser um pilar contra a intolerância e o ódio”.
Muito pior que um erro político
Não foi só mais um enorme erro político: o falhanço de Donald Trump na reação a Charlottesville foi, sobretudo, moral.
Michael Signer, mayor da cidade da Virgínia onde ocorreram os confrontos racistas, foi bem claro: “Vejam o que ele disse na campanha. Vejam como cortejou os grupos de supremacia branca, os racistas, os nacionalistas. E, ao mesmo tempo, vejam como repetidamente ele falha em condenar, em denunciar atos extremistas. Como ele cai em silêncios comprometedores sobre isto. Sabe? Isto não é sobre Donald Trump. A maioria das pessoas vai ser capaz de reagir a um momento de escuridão exibindo muito mais Luz”.
Charlottesville é só mais um caso entre vários momentos em que os republicanos parecem, finalmente, deixar cair Donald Trump. A questão é que, até agora, recuaram sempre numa demarcação que tinha tudo para ser inevitável.
O GOP é o partido de Lincoln, de Theodore Roosevelt, de Eisenhower e de Reagan. Ter no currículo de presidentes que nomearam para a Casa Branca alguém como Trump, que não consegue condenar abertamente grupos racistas e supremacistas brancos, é uma mancha que ameaça perverter, em definitivo, a herança ideológica do partido que acabou com a escravatura na América e que, até há pouco mais de meio século, agregava uma ampla maioria do voto das minorias raciais nos EUA.
O voto negro foi republicano até Kennedy. O voto hispânico foi republicano até Bill Clinton, voltou a sê-lo com George W. Bush e só voltou a ser democrata com Obama.
Lincoln a dar voltas no túmulo
Sim, é verdade: Donald Trump não foi o primeiro candidato presidencial a ter perigosas proximidades com nazis, fascistas e extremistas. Essas tendências sempre existiram nos EUA. Mas têm estado, até agora, relegadas para margens insignificantes, sem capacidade de penetrar as “grandes tendas” dos dois major big parties do sistema bipartidário norte-americano – democratas e republicanos. A rutura Trump foi a de ter conseguido ser o primeiro nomeado presidencial de um desses dois partidos a fazê-lo. E, por extensão, o primeiro Presidente dos EUA.
Figuras extremadas como Pat Buchanan (diretor de comunicação da Administração Reagan, que falhou as primárias republicanas de 1992 e 1996, e concorreu a presidente pelo Partido Reformista em 2000) ou George Wallace – governador do Alabama nos anos 60 e 70, adepto feroz do segregacionismo, que saiu do Partido Democrata e concorreu a presidente pelo Partido Independente Americano, obtendo 13,5% dos votos, o que retirou a eleição ao democrata Hubert Humphrey, abrindo o caminho da Casa Branca a Richard Nixon – tiveram que sair dos respetivos partidos para concorrer à Presidência com uma base extremista.
O caso de Wallace é bem ilustrativo de como, há não muitas décadas, os republicanos estavam até mais perto das minorias do que os democratas (Bill Clinton foi, já no fim dos anos 70, o primeiro governador democrata de um estado do Sul não segregacionista).
Nada na política americana está condenado a não ter uma solução.
Mas o que os próprios republicanos já estão a perceber é que permitir a nomeação e, mais tarde, a eleição presidencial de Donald Trump foi um erro que está a provocar um sequestro político e ideológico de um dos dois partidos pilares do sistema americano.
Cory Gardner, senador republicano do Colorado, aumentava assim a pressão sobre Trump, à CNN, dois dias depois dos confrontos na Virgínia: “Este não é o tempo para declarações vagas ou generalidades. Muito menos para deixar espaço para segundas interpretações, quando se é Presidente dos EUA e se está a reagir a acontecimentos de enorme gravidade, que atingem o mais fundo do que é ser americano. Este é o tempo de tomar posições claras. É o tempo de culpar quem lança o ódio e promove a intolerância. É tempo de culpar os supremacistas brancos e os nacionalistas brancos pelo ódio que estão a espalhar. Isso tem que ser feito e tem que ser dito – e o Presidente deve fazê-lo hoje, deve fazê-lo já. Deve chamar supremacistas brancos a quem fez isto, deve condenar este nacionalismo doentio e deve fazê-lo de modo a que todo o país ouça”.
Trump é apenas Trump – e isso é grave
É preciso lembrar quem é Trump. E como chegou à Casa Branca.
“Os Óscares foram uma grande noite para o México e como não? – eles estão a roubar os Estados Unidos mais do que quase todas as outras nações” (Donald Trump no seu Twitter oficial, 24 de fevereiro de 2015). “Quando o México envia os seus cidadãos não manda os melhores, mas cidadãos com muitos problemas. Enviam drogas, crimes. São violadores” (Donald Trump na apresentação da sua candidatura presidencial, 16 de junho de 2015).
“Os jovens negros deste país não têm espírito. Há assassinatos quase a cada hora em diversas das nossas cidades” (Donald Trump a 29 de junho de 2015, dias depois de um ataque em Charleston, Carolina do Sul, em que um jovem supremacista branco assassinou nove afro-americanos). “O nosso presidente afro-americano não teve exatamente um grande impacto nos bandidos que estão felizes a destruir as nossas cidades” (Donald Trump a 29 de junho de 2015).
“Eu acho que esse tipo é preguiçoso. E provavelmente não é culpa dele, porque a preguiça é um traço dos negros. Realmente é, eu acredito nisso” (Donald Trump a falar de um contabilista negro que trabalhou para as suas empresas, citado no livro de John O’Donnell, ex-presidente do Trump Plaza Hotel and Casino, hotel das empresas de Trump em Atlantic City, 1991). “Negros a administrar o meu dinheiro? Eu odeio. O único tipo de pessoa que eu quero a administrar o meu dinheiro são tipos baixinhos que usam kippah” (Donald Trump, citado no mesmo livro. À revista Rolling Stone, o multimilionário disse mais tarde que tudo o que foi escrito sobre ele no livro de John O’Donnell era “provavelmente verdade”).
Quem disse isto tudo não tem – simplesmente, não tem – condições, autoridade ou legitimidade para apelar seja ao que for, depois do que aconteceu em Charlottesville.
Há várias décadas que um nomeado presidencial de um grande partido na América não tinha tido tanta proximidade com a extrema-direita nacionalista e racista como Donald teve para chegar à Casa Branca.
A 1 de novembro de 2016, uma semana antes da eleição presidencial, o The Crusader do Arkansas – jornal oficial do Ku Klux Klan que se auto-intitula “a resistência branca da América” –, retira qualquer dúvida sobre isso. No editorial, o pastor Thomas Robb justificava assim o "endorsement" ao então candidato Trump: “A América foi fundada como república cristã. E foi como república cristã branca que se tornou grande”.
A ligação dos supremacistas brancos ao “Make America Great Again” de Trump foi clara e evidente. É certo que, em política, a memória é cada vez mais curta – mas convém não exagerar.
O ressentimento sentiu-se legitimado
Trump até pode nem ser de "extrema-direita". Talvez não seja. Mas uma parte importante da explicação para a sua vitória eleitoral teve a ver com as declarações de agressividade e intolerância que fizeram mobilizar uma certa “maioria branca em retrocesso”, que se sentiu, durante oito anos, ultrajada por ver alguém como Barack Obama na Casa Branca.
O apoio do Ku Klux Klan a Trump na campanha de 2016, mesmo que o candidato o tenha, mais tarde, tentado enjeitar, retira quaisquer dúvidas sobre essa ligação. David Duke, antigo líder do KKK, lançou sentenças que comprometem ainda mais o Presidente: “Ficou claro porque votámos em Donald Trump. Estamos a cumprir as promessas de Trump na campanha. Estamos a recuperar o nosso país, foi isso que ele nos prometeu”.
Se Donald Trump não estivesse amarrado a gente como esta, estaria agora mesmo a demarcar-se de forma clara e a condenar com autoridade este tipo de “apropriações” de um país tão vasto e diverso como são os EUA. Mas Trump é, apenas e infelizmente, apenas Trump: o Presidente da incoerência e da inconsistência.
O 45.º Presidente dos EUA até teve alguma razão ao lembrar que o ódio racial “não é um sentimento que tenha nascido nesta presidência, ou sequer na de Obama. É um problema que tem muito, muito tempo e não devia ter lugar na América”.
A verdade é que a extrema-direita nacionalista e xenófoba, que sempre existiu em alguns estados dos EUA, viu-se legitimada e com um novo fôlego – em contracorrente com que o que tem sido a evolução dos costumes e das mentalidades junto da maioria dos americanos – depois do bizarro e minoritário triunfo eleitoral de Trump a 8 de novembro.
A maioria rejeita os extremos
Uma manifestação extremista na América não é novidade e não será por isso que deixa de representar apenas uma minoria. Nada de fundamental irá mudar na América depois dos confrontos deste sábado na Virgínia. O que foi novo foi ver um Presidente dos EUA a dar espaço à legitimação de grupos que, numa democracia saudável, não podem ser aceites.
Há que enquadrar devidamente as coisas: os EUA têm, hoje, maiorias sólidas (perto de 60%) que admitem o aborto nos casos previstos pela lei, que encaram os imigrantes como uma vantagem e não um problema e que consideram que Trump errou ao vetar a presença de transgéneros no exército.
É impossível simplificar conceitos num país tão contraditório como a América, onde cabem as coisas melhores e também os piores sentimentos. Mas é fundamental lembrar, nestes dias de conturbação, que os EUA são um país com muito mais gente tolerante do que intolerante.
Dito isto, algumas das posições irresponsáveis lançadas por Trump na campanha, com incentivo e argumentário de Steve Bannon (demitido na sexta-feira de estratega-chefe, num primeiro sinal de que a guerra interna pela influência na Casa Branca estará a ser ganha pelo general Kelly, chief of staff que rendeu Priebus), fizeram abrir a “caixa de Pandora” em relação a ideias como “a maioria branca anda a ser ultrapassada pelos negros e pelos hispânicos com a ajuda dos media desonestos e de interesses obscuros”.
Quando se soltam demónios e se joga numa plataforma de exploração do medo (precisamente o que Trump e Bannon fizeram para chegar à Casa Branca), é muito mais difícil voltar a fechar os males no jarro. As eleições têm consequências e o que se diz para se ganhar não se apaga com mensagens contraditórias.
Será a queda de Bannon a última oportunidade de Donald Trump se livrar das amarras da extrema-direita?
E, enquanto isso, a Coreia do Norte…
O aparente recuo das ameaças de Kim Jong-Un reforça a ideia de que a tensão Coreia do Norte/EUA, não sendo de desvalorizar, foi francamente exagerada pelos respetivos líderes. Pyongyang e Washington têm presidentes egocêntricos e imprevisíveis e essa é uma conjugação que não sossega ninguém.
A crise dos últimos dias não foi, pelo menos até agora, a mais grave dos últimos anos, se nos lembrarmos do “fogo real” que chegou a ocorrer entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, em 2010, com um navio sul-coreano afundado por torpedo norte-coreano.
Ninguém sabe ao certo até que ponto estará na Kim na disposição de ir para exibir força e capacidade de enfrentar o colosso americano. O que se sabe é que um passo em falso da Coreia do Norte perante a capacidade destruidora do arsenal norte-americano significaria o fim do regime, com consequências que seriam catastróficas para os norte-coreanos e para a região.
Isto não é novidade: a Coreia do Norte é uma ameaça real há vários anos. O que é novo aqui, como fator extra para ainda maior risco, é a forma imprevisível e inconsistente de Donald Trump lidar com estas coisas.
Trump, que prometera ser um isolacionista (“America First”), já bombardeou o Daesh no Afeganistão com “a mãe de todas as bombas”, a Síria de Assad em Homs e até já ameaçou a Venezuela com uma intervenção militar americana para acabar com Maduro. Qual será o grau da paciência de Donald com a Coreia do Norte?
Por enquanto, nem chineses nem sul-coreanos têm certezas suficientes para darem esta crise por resolvida.
O total descontrolo político e comunicacional de Trump no plano interno pode levar a uma tentação do instável Presidente dos EUA em criar uma grave crise internacional para salvar a sua presidência. A escalada de tensão não deve ser desvalorizada. Se os últimos líderes americanos tiveram que lidar com questões delicadas vindas de Pyongyang, Donald Trump será mesmo o Presidente dos EUA a ter que tomar uma decisão séria para travar as ameaças, cada vez mais reais, de Kim Jong-Un.
Em Washington, especialistas em segurança nacional, militares e conselheiros políticos têm dito em surdina, nos últimos 200 dias, que o grande teste ao completo descontrolo político e comunicacional da Casa Branca desde que Donald Trump é Presidente será a ocorrência de uma grave crise internacional. “Se Trump tem sido o fator de perturbação que outros líderes como Merkel, Macron ou Xi Jinping têm sabido até agora minimizar, como será quando for ele a ter que parar a ameaça?”
Mesmo se descontarmos os exageros da retórica agressiva e especialmente egocêntrica dos líderes americano e norte-coreano, duas personagens dignas de banda desenhada e não dos grandes palcos mundiais, a verdade é que os dados recolhidos pelos serviços de informação sobre até que ponto chegou a capacidade nuclear norte-coreana não deixam grandes dúvidas.
Depois dos últimos testes, a Coreia do Norte tem mesmo mísseis e logística capazes de atingir solo norte-americano. Ignorar isto não seria prudente. Reagir prometendo "fogo como nunca se viu à face da terra", como fez Trump, é apenas infantil.
Há no complexo militar e nas lideranças políticas e diplomáticas em Washington uma maioria de razão que aponta para que isto só pode ser gerido em relação direta com a China. Mas, como bem têm avisado vários especialistas em segurança nacional, incluindo antigos US officials nessa área, “não se trata de saber se a Administração Trump está preparada para gerir uma crise que ameace a segurança nacional. A Administração Trump é, ela própria, a maior ameaça à segurança dos Estados Unidos e dos seus aliados”.
O discurso desta madrugada sobre o Afeganistão pode indicar uma inflexão de Trump que aponte para menos “isolacionismo” (Bannon opôs-se sempre a um maior envolvimento na “mais longa guerra da América”).
Neste e noutros temas, Trump poderá ouvir mais, nos próximos tempos, os generais Kelly (chief of staff), Mattis (Pentágono) e McMaster (conselheiro de Segurança Nacional). Mas daí até passarmos a ver em Trump um Presidente mais “intervencionista” do que “isolacionalista” vai uma grande distância.
Perda de prestígio em tempo recorde
No final do segundo mandato presidencial de Barack Obama na Casa Branca, 64% das pessoas no resto do mundo tinham visão “muito positiva” da América (Pew Research Center). Com Donald Trump, em apenas 200 dias, esse valor baixou para 49%. Incrível.
Internamente, o "apoio forte" do eleitorado republicano a Trump, de acordo com pesquisa do instituto independente SSRS para a CNN, baixou de 73% em fevereiro para 59%, agora.
A base que sustenta o Presidente dos EUA ao dia 200 mais impopular desde que há tracking poll diário (33%) é cada vez menor. E a sua capacidade de influência externa, que nunca foi grande, reduz-se a uma velocidade preocupante para quem ainda tem 86,33% do mandato a cumprir.
A Presidência Trump parece condenada a ser um desastre total do ponto de vista político e legislativo e uma constante confusão na gestão da comunicação e das relações políticas, dentro da Casa Branca e na ligação, cada vez mais agitada, com o Congresso.
Isto não é bem um Presidente dos EUA.