O homem que deu um pontapé ao tabuleiro
Não posso falar por Nuno Portas, mas posso falar do que creio ter aprendido com ele. Que não se tem de pedir “arquitectura feita por arquitectos” mas sim “arquitectura feita para as pessoas”. Que lutar “pelos arquitectos e pela arquitectura” é muito menos interessante do que lutar “pela cidade e pelos cidadãos”
Há coisas sobre as quais não vale mesmo a pena discutir se não se mudarem os termos do debate. Caso contrário corremos o risco de ficar presos a enquadramentos que simplificam a realidade e nos impedem avançar como sociedade. Peguem no jornal, vão à secção internacional e vejam a grande trapalhada que nós, espanhóis, temos na Catalunha. Com pouco esforço, podemos ver que o verdadeiro problema não é o que se debate (a independência) mas o que se silencia (a realidade). Discute-se se Catalunha é ou não uma nação, mas ignora-se que a realidade social já se adiantou à institucional e que grande parte da sociedade catalã quer ser tratada com base no que deseja como povo (e não com base no que se lhe reconhece como região). Podemos discutir se isto faz ou não sentido, mas parece bastante mais razoável começar discutir soluções que reconheçam a plurinacionalidade do Estado e evitem fórmulas independentistas.
O mesmo acontece com outro dos debates da passada semana, o da campanha “A arquitectura é feita por arquitectos”. Novamente temos um assunto sério que está a desvalorizar os factos reais. Que o arquitecto é o único profissional habilitado para fazer projectos de arquitectura é algo que toda a gente sabe. Porquê teimar em colocar a discussão nesses termos? Receio que os meus colegas de profissão estejam a cair numa armadilha injusta. O risco de que a legítima defesa do interesse dos clientes seja lida como uma interesseira defesa corporativa é muito grande. E, além do mais, este perigo não vai desaparecer, de todo, agarrando-nos às competências a galope da autoridade moral ou legislativa. Limitemo-nos a confiar no trabalho bem feito, a deixar que a gente escolha, e a permitir que a realidade se imponha. Como afirma uma personagem da conhecida série Game of Thrones, “A man who needs to say 'I am the King' is no true King”.
É por esta circunstância que me parece relevante, e digno de debate, a Homenagem a Nuno Portas feita no Dia Nacional do Arquitecto, que se assinalou esta segunda-feira. Porém, faremos bem em não errar nos termos da discussão. Será bom referir a figura de quem foi Secretário de Estado para Habitação e Território depois do 25 de Abril para reforçar o protagonismo do arquitecto na produção de habitação. Mas seria injusto e contraproducente fazé-lo sem mencionar os obstáculos que Portas assinalou e combateu com o objectivo de tornar a arquitectura uma ferramenta de mudança social para um número cada vez maior de pessoas. O mérito de Nuno Portas foi perceber que a realidade construtiva do país ia muito para além das necessidades dos seus arquitectos. Para o bem ou para o mal, era imprescindível não focar o debate nos edifícios mas antes na maneira de construí-los e de habitá-los. Assim, no jogo de xadrez que foi o SAAL, enquanto o comum dos arquitectos teimava em definir as peças, Portas foi suficientemente hábil para questionar o tabuleiro em que elas se moviam.
Não posso falar por Nuno Portas (desconheço se, por exemplo, apoia o manifesto) mas posso falar do que creio ter aprendido com ele. Que não se tem de pedir “arquitectura feita por arquitectos” mas sim “arquitectura feita para as pessoas”. Que lutar “pelos arquitectos e pela arquitectura” é muito menos interessante do que lutar “pela cidade e pelos cidadãos”. Que no SAAL a revolução não residiu nem nos cravos nem nas casas, mas antes na possibilidade de pôr os arquitectos e os moradores a trabalharem juntos por uma mesma causa. Que essa revolução pode acontecer já se começarmos a fazer “a arquitectura que realmente vale a pena fazer”. Portas não devia ser homenageado: devia ser ouvido com atenção com o objectivo de alargar os moldes do que pode ser um arquitecto, de perceber que papel pode cumprir na sociedade e de saber que passos é necessário dar para que tal coisa venha a acontecer.
Para que as pessoas recuperem a confiança no nosso trabalho é imprescindível que deixemos de afirmar que somos necessários e comecemos a provar que realmente o somos. Pode ser que a solução passe por participar no jogo com base em novas regras, partilhadas com a população que queremos servir.