O PIDE que liga pelo Natal ao primeiro homem que viu torturar

Fernando Colaço foi um “insignificante” agente da PIDE. Lembra como teve colegas “criminosos” mas também “bons rapazes, pessoas normais”, como ele. Que quer muito que acreditemos que é possível ter-se sido bom, dentro da PIDE. Andou à procura de presos que viu torturar. Houve quem o tivesse ouvido.

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Uns poucos dias antes do Natal, Fernando Colaço faz a habitual chamada para casa do velho conhecido. Quem lhe atende o telefone não é o próprio, é a mulher, Lourdes Pedro. Ano após ano, Colaço não quer deixar de desejar boas festas ao primeiro homem que viu torturar, no tempo em que era agente da PIDE.

Fernando Colaço é um homem muito direito, que se apresenta sempre aprumadíssimo, a roupa impecavelmente engomada. Às vezes usa um lencinho de cornucópias que serve para lhe agasalhar o pescoço mas também para o adornar. Há dias mais frios em que usa, ligeiramente à banda, um chapéu de feltro rígido, verde-seco, da Chapelaria Royal, que pousa de forma organizada ao seu lado, isto antes de começar a falar:

“É uma jóia de pessoa”, “uma senhora com maiúscula”, “tenho um grande carinho pela Lourdes”, “é uma pessoa muito humana” — não se cansa de dizer Fernando Colaço sobre a mulher do ex-preso político, Edmundo Pedro. Surge em muitas das nossas conversas a mulher que lhe atende o telefone pelo Natal, às vezes de uma forma que parece exageradamente elogiosa, por vezes chama-lhe mesmo “Lurditas”.

Declara que a admira porque: “Foi mãe e pai. Trabalhou muito.” Ficar assim sozinha, a prover à família, nas longas temporadas que o marido passava preso, como no tempo em que Colaço o conheceu. E o viu torturar.

“O ser humano é um porcalhão”, “o homem é um macaco vestido”, “o mundo é imundo”. Fernando Colaço entremeia constantemente o seu discurso com estas, e outras, frases, que são uma espécie de máximas moralistas sobre a natureza humana, e que às vezes lhe dão um ar de pregador.

Umas vezes fala como quem está de fora, usa a terceira pessoa, para falar do mundo, da humanidade. Outras vezes inclui-se nas máximas, usa a primeira pessoa, mas sempre no plural, nunca é um eu, é sempre um nós: “Nós, os seres humanos, somos mal formados”, “nós, os homens, somos imperfeitos.”

Ao pronunciar estas frases é como se estivesse imbuído de uma autoridade especial, de quem está convencido de que sabe mais do que a maioria, por ter visto o mal de tão perto.

Fernando Colaço quis e quer convencer todos os que o ouviram, e ouvem, que é possível ter pertencido à PIDE e não ter praticado o mal. Mais, que é possível ter pertencido à PIDE e ter permanecido um homem de bem, como ele diz que tem feito toda a vida por ser. Mesmo lá dentro.

É assim que a nossa primeira conversa quase não foi uma conversa. Funcionou como um preâmbulo que marcaria o tom com que pretende narrar a sua vida. Foi um quase monólogo de várias horas sobre “a virtude”, com a edição amarelecida da autobiografia do escritor norte-americano Benjamin Franklin à frente, a recitar, óculos de massa preta, de ver ao perto, estacionados a meio do nariz.

Excertos que me quis ler: “Convenci-me cada vez mais de que a verdade, a sinceridade e a integridade eram da mais alta importância para a felicidade da vida nas relações de homem para homem.” Ou ainda “o corpo sente-se bem quando faz o bem, o corpo sente-se mal quando faz o mal”. Ou uma lista de virtudes que parece que está a recitar a si mesmo: “Cumprir o que é dever e cumprir sem falhas”, “não prejudicar ninguém fazendo o mal ou omitindo benefícios que constituem o nosso dever” e “imitar Sócrates e Jesus”. Sobre o autor, “foi um grande homem, honesto, bem-intencionado. Teve os seus erros, como qualquer ser humano”.

E é inspirado pelo escritor que acaba de citar que, esclarece, “estou a fazer-lhe uma confissão de mim mesmo”. A sua “história, verídica”, é sobre um homem que caiu, sem querer, no lado do mal. E que não soçobrou. Acreditem nele, no que ele nos diz, é como se pedisse a toda a hora este homem que traz na carteira uma pagela de Jesus, outra de Santa Maria Madelena. Ele vai contar-nos a sua versão da história.

Desenhos da autoria do preso político comunista Jaime Serra ARQUIVO TORRE dO TOMBO
"Gaveta" no Aljube
Método de tortura da “estátua”
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Desenhos da autoria do preso político comunista Jaime Serra ARQUIVO TORRE dO TOMBO

Cena de violência

Depois de descrever cenas de violência, como a de que foi vítima o marido de Lourdes Pedro, Fernando Colaço faz, muitas vezes, uma pausa. O olhar fica-lhe ausente, como se estivesse de novo focado nessa cena do passado, ocorrida num 3.º andar de uma rua de Lisboa chamada António Maria Cardoso, quando ali trabalhava, há mais de meio século, e ela lhe estivesse a regressar aos olhos. E não estivesse aqui, num café de Lisboa de nome adocicado, a contar a sua história enquanto beberica uma chávena de chocolate quente.

Lembra-se bem do dia. Tinha entrado “na polícia internacional” ou “nos serviços”, como prefere chamar-lhe em vez de “PIDE”, cerca de um ano antes, em Novembro de 1961, atesta documento oficial da polícia.

Tinha acabado de fazer 23 anos quando concluiu o curso de três meses da chamada Escola Técnica de Polícia, que era o que tinham de fazer todos os que queriam ascender a agentes auxiliares e de 2.ª classe, o grau zero na carreira “de investigação” da PIDE. Tinha essa formação mais elementar o nome de “curso de aperfeiçoamento”.

O sítio onde, a seguir, os aprendizes de pides iriam ser colocados em estágio de seis meses ficava na mão “dos serviços”. A polícia tinha sede em Lisboa, uma delegação em Coimbra e outra no Porto, e subdelegações e postos por todo o país.

Tinha ido à sede, na Rua António Maria Cardoso, uma vez na vida, para lhe fazerem a inspecção e o darem como fisicamente apto a incorporar a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), que levava esse nome desde 1945, mas que antes tinha tido outras designações. Em 1969, com a substituição de Oliveira Salazar por Marcello Caetano como presidente do Conselho, passou à mais inócua denominação de Direcção-Geral de Segurança (DGS). Mas foi a sigla PIDE que ficou na memória colectiva. Até deu adjectivo, “pidesco”, de quem se diz que é persecutório.

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Sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso

Com os seus vários nomes, a polícia política portuguesa seria um dos factores “fulcrais” para explicar a longevidade da mais longa ditadura da Europa ocidental do século XX, escreveu o historiador Fernando Rosas no livro Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar (edições Tinta-da-China). Foram 48 os anos que passaram entre o golpe militar de 28 de Maio de 1926 e a queda do regime com a revolução, a 25 de Abril de 1974. A ditadura espanhola durou 36 (1939-1975), a italiana 21 (1922-1943), a grega sete (1967-1974).

Acabou colocado na sede. Iniciou-se no rés-do-chão, nos “serviços de informação”, com “tarefas simples”, como escoltar o chefe de Estado, Américo Tomás. Lembra-se de um dia ter sido escolhido para lhe fazer segurança numa visita que fez ao Buçaco, não sabe com que fim. “Sei lá o que ele lá ia fazer, nunca perguntei. Eu não fazia perguntas.”

Do rés-do-chão — onde hoje em dia funciona, entre outras estabelecimentos, o atelier de design de interiores Empatias — ascendeu ao 3.º andar, o da “investigação”.  O piso onde viu ser torturado o marido da mulher que lhe atende o telefone pelo Natal.

Nesse dia, recorda-se de ter voltado ao serviço e o gabinete onde costumavam estar ele e mais uns cinco ou seis colegas estar vazio. Lembra-se de ter ficado intrigado. “Então e os outros?”

Era com eles que passava grande parte da jornada de trabalho. “Em dias normais”, que diz que eram quase todos, entravam às 9h00 e saíam às 18h00. “Na maioria dos dias não fazíamos grande coisa, conversávamos uns com os outros.” E escoltavam presos da sede da PIDE (que era o centro dos interrogatórios) para a prisão do Aljube ou de Caxias (duas das principais prisões do regime), do Aljube e Caxias para ali. Também havia dias diferentes.

Não tardou a encontrá-los. Mal abriu a porta que dava para as celas, mais ou menos a meio do corredor, os colegas que faltavam no gabinete estavam aglomerados junto a uma porta onde assistiam a algo que se estava a passar, que, na verdade, se ia começar a passar. Também lá estava “um inspector, parecia um macaco, aos pulos”, com os braços acima dos ombros, a ulular, descreve. De descontrolo? De entusiasmo com o que estava a ver? De sede de vingança (o preso tinha tentado fugir)?, pergunto.

Fernando Colaço não sabe o que estavam a sentir e a pensar o inspector amacacado e os seus colegas, mesmo os que não se comportavam como ele — “cada um responde por si”. Enfileirados, junto à porta, “estavam a assistir”.

O que viu Fernando Colaço, porta aberta, foi o tal preso, cujo nome ele só soube nesse dia, um homem de 1,69m de altura, algemado atrás das costas, encostado à parede, no momento em que o colega lhe estava a colocar um adesivo branco na boca, para calar os sons do que se seguiu, mas que mesmo assim se ouviam, abafados, uns “uh, uh, uh” colados a cada soco que lhe era dado no peito, relembra. Até Edmundo Pedro, assim se chamava o detido, cair por terra. “Foi um valentão o Edmundo, o que ele aguentou. Com os socos que levou, podia ter morrido.”

No processo E/GT2560, a cena que Fernando Colaço descreve surge diferente.

Convidar. No “interrogatório” feito pela PIDE a Edmundo Pedro no dia da sua tentativa de fuga, a 28 de Janeiro de 1963, o verbo dactilografado é “convidar”, que no dicionário vem definido como “pedir a alguém que tome parte em algum acto, fazer um pedido”. “Convidado a declarar como combinou o plano de fuga...”

O agente n.º 288/548, que esmurrava Edmundo Pedro, recebeu, pela sua prestação nesse dia, um louvor, por ter conseguido, “com sangue-frio e espírito de sacrifício, evitado a fuga de um preso de responsabilidade”, noticiou o jornal O Século de 5 de Fevereiro de 1963.

Onde também se lia: “É procurada Maria de Lourdes J. Ricardo Pedro, a mulher do preso”, por ter intervindo “no plano de fuga”. Com Sónia, a filha de quatro anos, ao cuidado da sogra, Lourdes teve de andar três meses fugida.

Fora da notícia ficou o outro agente da PIDE que deteve Edmundo. Chamava-se Fernando Colaço.

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Ficha do preso político Edmundo Pedro (PIDE, Serviços Centrais, Registo Geral de Presos. Imagem cedida pelo Arquivo Nacional Torre do Tombo)

A fuga com especiaria

De todos os sítios onde Edmundo Pedro esteve encerrado — passou um terço da ditadura (16 anos) preso — não houve quase vez em que não tivesse tentado escapar-se.

Só no campo de concentração do Tarrafal (em Cabo Verde), onde esteve preso — ao mesmo tempo que o seu pai — “a aguardar julgamento” durante nove anos, desde os 17 até aos seus 26 anos, “com cabelos grisalhos”, foram quatro vezes. A última terminou com 60 dias “na frigideira”, nome com que ficou conhecido o cubo de cimento à chapa do sol que funcionava como um forno onde eram castigados os mal-comportados. A bronquite crónica que lhe interrompe o relato, agora que tem 99 anos, é lembrança desse tempo.

Depois de casarem, era a mulher, Lourdes Pedro, agora com 91 anos, quem acabava por lhe operacionalizar os planos de fuga. “Ele só me dizia o que precisava e eu é que tinha de imaginar a forma de lhe fazer chegar.”

“Ando com saudades de um peixe cozido com picante, com pimenta”, comunicou-lhe numa das visitas à prisão de Caxias, onde estava há mais de um ano. “Era o suficiente. Por gestos, a gente entendia-se lindamente.”

Estava a dizer-lhe que precisava de pimenta lá dentro, não sabia para quê. “Ele lá estudava as suas hipóteses.” Foi-lha enviando, camuflada entre as dobras das embalagens de papel pardo onde lhe mandava comida, “um poucocinho de cada vez, e ele ia amontoando”.

A pimenta amealhada era para ser atirada à vista e atarantar quem quer que o fosse levar à casa de banho no Tribunal Militar de Lisboa, onde iria ser ouvido nesse dia, por ser a única ocasião em que o desalgemavam.

Edmundo Pedro era um dos cerca de 60 arguidos do processo-crime que decorreu do assalto ao quartel de Beja, na noite de passagem de ano de 1961 para 1962. O golpe, idealizado pelo general Humberto Delgado no Brasil, falhou.

Houve contratempos. Não contava que o agente tivesse óculos, António Sardinha, “um verdadeiro gigante”, que, ainda assim, ficou aturdido tempo suficiente para lhe permitir a corrida desenfreada escadaria de mármore abaixo, entre painéis de azulejos com cenas de caça, e depois porta do tribunal fora.

Ainda chegou ao Volkswagen matrícula EA-61-58 que a mulher tinha tratado de ter estacionado em frente ao tribunal. Mas a porta que tentou primeiro, a esquerda, estava trancada. “Tinha sido uma fuga líndissima”, comenta Edmundo Pedro, como quem está a ver um filme corrigido da sua vida.

Falhado o mais essencial, Edmundo, que na altura tinha 44 anos, ainda se pôs a correr ladeira abaixo, mas acabou por ser barrado por um civil que se achou perante uma perseguição clássica, daquelas “agarra que é ladrão”, que era o que berrava o agente da PIDE que se tentava recompor da pimenta e o perseguia na rua, arma em riste.

Um outro pide veio do outro lado da rua e foi ele, alguém que Edmundo Pedro descreve no seu livro Memórias — Um Combate pela Liberdade (Âncora Editora) como “um rapaz”, que o acabou por deter. Assim se conheceram, sem serem apresentados. Não soube, na altura, como se chamava.

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Nas instalações da PIDE, repartição do cadastro de estrangeiros cortesia Arquivo do museu do aljube

Cismado na consciência

Para Fernando Colaço, esse foi também um dia “marcante”, por razões diferentes das de Edmundo. Descreve-o como um dia inaugural, de revelação. “O homem é um animal indecente.” Foi, garante, a primeira vez que viu um homem ser violentado dentro da PIDE. Não seria a última.

Conta que depois de ver espancar o preso, saiu do serviço e foi para o quarto que tinha arrendado, umas águas furtadas na Rua da Alegria, “a ferver”, a cena de tortura a repassar-lhe na cabeça, que ficou deitado na cama, a olhar, cismado no tecto, na consciência. “O que é que eu faço da minha vida? Eu não me fiz homem para isto.”

Uma coisa era saber que só o nome PIDE amedrontava, outra era o que tinha presenciado. “Só a partir do momento em que vi aquilo é que me apercebi. Fiquei chocado, o que vi foi arrepiante. Se eu soubesse, nunca tinha entrado.”

Sobre o colega que esmurrou não se cansa de repetir “era um homem que podia ser meu pai, que tinha idade para ser meu pai”, expressão que usa sempre que quer dizer que alguém tinha anos de vida bastantes para ser tão respeitável como o seu pai era. Um colega que poucos dias antes até lhe tinha dito que tinha um filho da sua idade, 24, só que o dele trabalhava na Companhia Colonial de Navegação, comentando, “não era filho meu que vinha para esta maldita casa”, imita-lhe o tom “boçal. Era um brutamontes”.

Porque não tentou parar a agressão?, pergunto. “Eu, impedir? Isso era uma loucura! Eu podia ser morto logo. Nós também corríamos riscos, era preciso ter cuidado.”

Nada no curso de acesso à PIDE tinha indiciado o uso de tortura, garante, e lembra como teve “aulas de Código Penal, lições de judo, curso de primeiros socorros prestado pela Cruz Vermelha Portuguesa, para se houvesse alguma coisa com os presos. Era muito interessante, até”.

A historiadora Irene Flunser Pimentel, autora de A História da PIDE (Temas e Debates), olha com desconfiança para o alegado desconhecimento. De facto, a tortura não constava dos planos curriculares da escola da PIDE. Numa das sebentas sobre “direitos dos declarantes”, até vem destacada a frase “as pessoas não são obrigadas a depor nem a prestar declarações”.

Também não vem escrito em lado nenhum que a PIDE torturava ou matava. Houve 150 mortes “documentadas”, desconhece-se quantos mais perderam a vida por maus tratos ou falta de cuidados médicos, refere o livro Museu do Aljube — Resistência e Liberdade. Em quase meio século de ditadura não foi descoberto um único documento escrito oficial que prove o uso de tortura, nota a historiadora. Só um deslize, uma breve instrução, manuscrita no processo do estudante Artur Catarino Simões (1964): “Nota: este homem não dorme.”

Mas sabia-se. As breves notas da PIDE que iam saindo nos jornais, dando conta de prisões “pela prática de actividades contra a segurança do Estado”, eram mostras de eficácia, avisos à navegação, convites ao temor.

É por isso que Irene Flunser Pimentel considera a ideia de alguém ter ingressado na PIDE — mesmo tendo pouco mais de 20 anos (um dos maiores grupos entrava entre os 20 e 25 anos), sem formação política e grande instrução formal — não sabendo o que no seu interior se praticava “praticamente impossível”.

Fernando Colaço não soube, nem na altura nem depois, o que sucedeu a Edmundo Pedro a seguir ao espancamento. Acabou com o braço direito partido. “Não sabia do braço direito, não. Eu não assisti a mais nada. Eu depois retirei-me.” Usará mais vezes esse verbo, retirar-se, que pode querer dizer “puxar para trás, desviar, afastar-se, recolher-se, desistir, abandonar”.

Mas a cena continuou. Do que se lembra o próprio, o sovado, é de, além de ter sido espancado pelo homem atingido com a especiaria e que, bem entendido, quis ser o primeiro, ter havido uma sucessão de outros agentes a esmurrá-lo, a pontapeá-lo, à vez, algemado e amordaçado. Até cair no chão, enrolado sobre si mesmo como uma bola, como aprendeu a fazer para se tentar proteger. E o continuarem a pontapear. “Até se cansarem.”

“Todos lá vieram molhar a sopa. Como se fosse uma norma.” “Não o rapaz.” O jovem agente sem nome que o deteve “esteve à porta, passou, parou por um bocado, não entrou na sala, assistiu um pouco, não participou na sessão”.

Numa aldeia xistosa

A pequena aldeia onde Fernando Colaço nasceu e se fez rapaz fica à beira de uma serra xistosa, o nome da povoção significa pequenos montes.

A casa onde nasceu, com número de porta ímpar, e aquela para onde depois se mudou para viver o resto da infância e adolescência com os pais, com porta de número par, ficam na mesma rua, que agora é forrada a alcatrão mas que na altura era de terra batida.

Hoje com 78 anos, ainda um homem ágil, quando vai de Lisboa, onde vive, passar tempos à terra, gosta de se passear de bicicleta pelos sítios da infância. Diz, sobre as casas da sua meninice, “ainda cheira aos meus pais”. Admira a paisagem montanhosa em volta, agora a tornar-se primaveril: “Olhe que lindo, as acácias em flor.”

“As pessoas só morrem quando deixamos de pensar nelas, quando deixamos de falar nelas.” A mãe era o que eram as mães na altura, chamava-se-lhes “domésticas”, mas o que a sua mais fazia era trabalho na terra. Quando ele não estava a trabalhar, ajudava. Tinha de ajudar. Plantar couves, semear batatas, tratar da rega. A sensação das folhas ásperas do milho verde a cortarem-lhe a cara ficou.

No santuário próximo da aldeia, enterrado num vale da serra, lembra-se de, em pequeno, subir a escadaria com a mãe até ao último patamar, o que tem dentro da capelinha uma Nossa Senhora da Piedade, a única que costuma sair em procissão, e, de na ascensão, num dos solcalcos intermédios, a cara tão sofrida de Nosso Senhor dos Aflitos vestido de roxo lhe meter medo.

O pai era operário, na Companhia Eléctrica das Beiras, “um homem bom, tive um pai querido”. Como era um pai bom naquele tempo, contextualiza. Tanto era o generoso que “às escondidas da minha mãe dava comida a três crianças que ficaram sem pais”, como o pai que, um dia, era Fernando menino, não hesitou em bater-lhe com o cabo da gadanha na coxa. Foi o castigo que achou conforme por o pequeno ter partido a alfaia depois de, sem querer, ter batido numa pedra escondida na terra quando trabalhava no campo.

Foi também o pai que, mal ele terminou a 4.ª classe da instrução primária, o pôs a trabalhar, foi empregado de mercearia, operário na construção de estradas. Com 14 anos, o filho único seguia-lhe as pisadas, como operário na reparação de linhas de alta tensão, “a acartar com postes de cimento”. Era também, à sua maneira e aos costumes da época, a sua forma de ser bom para o filho, interpreta Fernando Colaço à distância. A industriá-lo, e bem, para “o valor do trabalho”.

Os dois anos e meio de serviço militar, para o qual se voluntariou, sempre era um tempo em que não pesava em casa, tinha guarida e comida. Cumpriu-os em Lisboa, entre 1958 a 1960, como 1.º cabo do batalhão de telegrafistas, comprovam os seus documentos de vida militar. Continua a atribuir significado ao lema gravado no quartel onde assentou praça, que diz de cor: “Vereis amor da pátria, não movido/ De prémio vil, mas alto e quase eterno.”

Do tempo em que vivia junto a estes versos dos Lusíadas mostra a sua cara de jovem imberbe, sorridente, em fotografia de passe aposta a um louvor que exibe, ufano. Desse seu tempo como militar foram-lhe elogiados o “raro sentido de dever”, os “excelentes dotes de carácter” e as “elevadas qualidades morais”, refere carta de referência da Academia Militar.

Junta a esta uma outra, dos seus tempos numa empresa de comércio, a Rectoperfis, em que lhe são gabados os “estritos conceitos de honestidade, correcção e urbanidade” e “princípios de dignidade”. Mostra-me estes documentos como se falassem, por si, pelo seu carácter impoluto nestes contextos, mas também noutro.

Cumprido o seu dever, “de homem, português”, achou-se, com 22 anos, sem emprego, em casa dos pais, de novo na aldeia. Com um pai a assinalar o facto vezes de mais e de maneiras diferentes.

Na altura leu no Diário de Notícias o anúncio de uma vaga para uma loja de canalização e artigos eléctricos, no Porto. “Eu respondi a esse anúncio e obtive resposta para me apresentar no Porto. Logo que recebi a carta fui de noite, de comboio.” Quando chegou, informaram-no de que já tinham preenchido o lugar.

“Recordo-me do meu pai, aborrecido, ao jantar, me dizer algo que me fez sair da mesa, isto de noite. Fui pelo carreiro do quintal, a chorar.” Não se lembra das palavras, sabe que o magoaram, queria o pai dizer que era já um homem feito, “preparado para defender a pátria”, mas que “estava para ali, a ser sustentado por ele”.

E chegou notícia da abertura de uma vaga para escriturário de segunda classe do 7.º Juizo Cível do Porto. E, de novo, “outra pessoa ficou com o meu lugar”. Aqui o tenho, o certificado oficial: “No concurso número cento e quarenta e nove do livro vinte e oito, aberto em mil novecentos e sessenta e um consta um requerimento em que o candidato solicitou a sua nomeação para a referida vaga, não tendo, no entanto, sido nomeado.”

A longa reconstituição do processo em torno destes dois empregos onde esteve quase, quase para ser admitido cumprem, neste seu contar de vida, o papel do que poderia ter sido. Aqueles “ses” da vida, que obrigam a desvios e aos quais só se dá esse sentido olhando para trás, mas estando já cá à frente.

Talvez, se tivesse sido ele o escolhido para funcionário da casa de canalização e artigos eléctricos, ou para ir preencher a vaga de escriturário de segunda classe no 7.º Juízo Cível do Porto, “não tivesse ido cair onde fui cair”. A PIDE como “uma armadilha”.

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rui gaudêncio

Um emprego na PIDE

Não se lembra de quem primeiro lhe falou na hipótese de ir trabalhar para a PIDE. Sabia-se que andava a recrutar. Alguém lhe disse que podia ir para as alfândegas (o controlo de estrangeiros e fronteiras era uma das atribuições da PIDE) e até se podia sair bem nessas funções, de acolher estrangeiros, se até falava algum francês. “Que ia representar bem o Estado português.”

Era preciso mandar para Lisboa um requerimento, em papel selado azul de 24 linhas. E foi o que jovem Fernando fez.

Soube-se. A notícia espalhou-se em forma de má-língua. E as reacções chegaram-lhe. Lembra-se de um conhecido, conta que se chamava Pedro Paixão e era funcionário das Finanças, lhe dizer: “Ó Fernando tu não vás para a PIDE, vai para outra polícia, vai para a Judiciária.” O tom era de súplica, quase como se se estivesse a pôr de joelhos com a voz. “Sr. Pedro, porque é que eu não hei-de ir para a PIDE? Eu quero ir para as alfândegas”, ter-lhe-á dito. Sem ter resposta de volta.

Hoje pensa que aquele seu conhecido talvez fosse comunista e conhecesse a PIDE melhor do que os demais, talvez por dentro.

Má fama a PIDE tinha, admite, mas era uma forma de se autonomizar do pai e de deixar de o ouvir dizer que vivia à sua conta. “Eu sabia lá o que era aquilo, eu queria era um emprego.”

Um dia lembra-se de um outro homem, um conterrâneo seu, António Lima, ter lançado a um seu conhecido, em jeito de denúncia/acusação: “Ó Américo, o Fernando vai para a PIDE, o Fernando vai para a PIDE!”

Acontece que o homem, com quem Colaço estava à conversa, conta que era comerciante e se chamava Américo Cipriano, era seu amigo e conhecedor do seu verdadeiro carácter. E nesta parte da conversa havida, por lhe ser demasiado importante, quer que figure tal e qual recorda a frase dita pelo homem, “que tinha idade para ser meu pai”. “Agora é entre aspas”, prescreve-me: “Abre aspas eu sei que o Fernando vai para a PIDE vírgula mas também sei que o Fernando não vai para fazer mal a ninguém fecha aspas.”

“Eu sabia lá o que era o comunismo”

O requerimento em papel selado azul enviado da aldeia para Lisboa chegou a bom porto. Chamaram-no.

Contou aos pais, “nada disseram. Era um emprego, era um sustento. O meu pai sabia lá o que era a PIDE”. Pediu-lhe dinheiro emprestado para o bilhete. Seguiu numa carreira dos Transportes Claras, umas oito horas até Lisboa.

O distrito de Coimbra, de onde Colaço é, foi um dos que mais forneceram homens para a PIDE: 8,1% eram daí naturais, percentagem só superada por Lisboa (14,6%), referem dados na A História da PIDE. É interessante ver, nesta obra, o mapa de Portugal quase dividido ao meio: pides mais a norte, presos mais a sul. 

De 1945 a 1974, a polícia política teve 3600 elementos (excluindo as então colónias), desde agentes como Colaço, mas também dactilógrafos, telefonistas, radiotelegrafistas, contínuos e serventes, guardas prisionais, motoristas, médicos.

“Eu só queria um emprego.” Para o ter era preciso, e recita, de cor, a declaração e o número do decreto-lei onde constava, “27003”, que todos os funcionários públicos eram obrigados a assinar até ao 25 de Abril: “Declaro por minha honra que estou integrado na Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subersivas.” “Eu sabia lá o que era o comunismo.”

Os primeiros comunistas que conheceu foi na PIDE. “A PIDE foi a minha escola da democracia.” “Aprendi com eles, com aqueles homens, homens fantásticos. Os comunistas eram homens fiéis. Um homem que dá a sua palavra e a cumpre é um homem honrado. Admirava-os, nunca me deixando iludir pelos seus ideais”, ressalva.

E diz que decidiu, apesar do que viu acontecer a Edmundo Pedro, não sair da PIDE para, à sua maneira, “proteger os indefesos”. Como se, a partir daí, fosse possível passar a ser uma espécie de agente do bem infiltrado, um observador não participante.

Além de Edmundo Pedro, três homens iriam marcá-lo. Com um esteve oito horas. Com outro privou cerca de dois meses. Com o terceiro, o último, passou várias horas e uns dez minutos, “se tanto”, que lhe mudariam a vida.

Garante que nunca torturou. Que isso o distinguia de outros. “Eu nunca bati em ninguém, eu nunca fiz mal a ninguém”, repete. “A mim nunca me mandaram fazer mal, se me dissessem para eu fazer mal, eu saía logo.” “Eu estou de consciência tranquila.”

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Ficha do preso político José António Carocinho, cedida pelo filho

Dias diferentes

“Ele estava junto à janela”, diz com ar solene. “Chamava-se José António Carocinho.”

Fernando Colaço garatuja num guardanapo translúcido de café a disposição do gabinete nesse dia: um quadrado, duas linhas são a janela do 3.º andar, “a que dá para o lado da garagem”, e uma bola toda preenchida a azul de esferográfica, no canto superior direito do quadrado/gabinete, representa o homem.

Era um industrial da panificação de Beja, que foi preso a 16 de Setembro de 1962. Tinha sido denunciado porque iria participar “numa reunião política”, mas era suspeito do crime maior, “ligações com o ‘partido comunista’”, embora as não tivesse.

“Foi a primeira.” E deixa a frase incompleta, pendurada, à espera de final. “Foi a primeira estátua que fiz”, para logo de seguida se corrigir, “eu não fiz estátua, foi a primeira vez que fui nomeado para fazer assistência à estátua”.

Quando se refere a este método de tortura, nas primeiras vezes em que o faz, mede as palavras, ensaia formulações: “Foi a primeira vez que fui indicado para fazer, como é que eles diziam, ‘assistência ao arguido’, eles não lhe chamavam estátua”, como se bastassem as diferentes maneiras de dizer, e o ter recebido ordens superiores, para tornar o mesmo acto em coisas distintas.

Estes eram dias diferentes. Com a entrada de certos presos na sede da PIDE, Fernando Colaço e os colegas deixavam de ter um horário de expediente normal. Eram escalados para turnos de quatro horas, em que iam rodando, e pede-me uma folha do caderno de notas onde escreve como passavam a estar divididos os dias: 00h00-4h00, 4h00-8h00, 8h00-12h00, 12h00-16h00, 16h00-20h00, 20h00-24h00.

Era durante os chamados “turnos de vigilância” que era praticada a “tortura da estátua”, a obrigatoriedade de os presos se manterem em pé, sem saírem do sítio, por vezes com os braços abertos durante longos períodos de tempo. À imobilidade somava-se, muitas vezes, a privação contínua do sono.

Há testemunhos de vítimas mantidas em pé durante 31 dias, pessoas mantidas acordadas por 17 dias. Além de agentes, está documentado que foram chamados a fazer este tipo de “horas extraordinárias”, e não disseram que não, escriturários e até uma dactilógrafa admitiu fazer esses “biscates”, escreve Irene Flunser Pimentel.

De tanto tempo em pé as pernas dos presos inchavam, “ficavam monstruosas, a pele rebentava”. Alguns ficavam com alucinações, as “paredes a mexer”, “os nós da madeira do chão” transformados pela mente “em bichos, em baratas”, “das rachas ou defeitos da parede apareciam lagartas”, havia sons de portas de elevadores imaginários a abrirem-se, descrevem testemunhos de torturados no livro No Limite da Dor, de Ana Aranha e Carlos Ademar (Parsifal).

Um estudo feito pelo psiquiatra Afonso de Albuquerque junto de 50 detidos políticos a seguir ao 25 de Abril, citado no livro A História da PIDE, concluiu que muitos presos sujeitos a tortura ficaram com sequelas. Falhas de memória, depressão, ansiedade, gaguez, dificuldades sexuais. Insónias crónicas.

“Ele disse-me que estava há três dias e três noites sem dormir, cheio de sono e já delirava. Já não dizia coisa com coisa: ‘A minha mulher esteve aqui.’ Os pés inchados.” Colaço faz pausa.

“Essas coisas marcaram-me. Ainda sinto essa dor. Sabe, há dores físicas e morais. Era um bom homem.”

Por que não recusou fazê-lo? “Eu era um insignificante. Eu era só um agente. Não podia recusar-me, eram ordens. Lá dentro [do gabinete], eu fazia conforme entendia.” “Com ele, fiz dois turnos. No primeiro, deixei-o dormir.”

Fernando Colaço diz que combinou com o detido que ficaria junto à porta, “dorme. Eu vou para a porta, se vier alguém, dou um encontrão na porta e pões-te na mesma posição”. E ele, conta, dormiu. “Três horas.” “Acordou e riu-se, não disse obrigado, mas riu-se, recomposto.”

Não voltou a cruzar-se com este preso na PIDE. “Nunca mais me apareceu, pensei que o tivessem mandado para casa. Eu não perguntava. Quanto menos a gente falasse, melhor.”

Diz que Carocinho lhe contou coisas que se passavam “na polícia internacional” que ele desconhecia, que “uma agente despiu uma mulher, militante comunista, peça a peça, e depois mandou entrar um colega para lhe dizer ‘vejam esta triste figura’. Se eu tivesse visto isso. Eu era morto nessa altura. As conversas com o Carocinho marcaram-me”.

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Na António Maria Cardoso está hoje o condomínio de luxo Paço do Duque, que tem actualmente à venda “um fantástico apartamento T3” por três milhões de euros margarida basto

Fernando Colaço vive em Lisboa, mas sempre fez um esforço para tentar não passar na rua da sede da PIDE, nem sabia que tinha sido transformada em condomínio de luxo. O Paço do Duque tem actualmente à venda “um fantástico apartamento T3” por três milhões de euros. 

“Não quero passar por esses sítios, não me quero recordar de coisas tristes. Para mim, são sítios muito negros. Não gosto, sinto-me mal.”

Das duas vezes que não conseguiu evitar lá passar, o olhar fixou-se-lhe, “olhei para lá e vi a janela, pensei nele. Não preciso de passar por lá, aquela porcaria assustou-me. Não me esquece o António Carocinho”. Nem o Gualter.

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Ficha do preso político Gualter Basílio (PIDE, Serviços Centrais, Registo Geral de Presos. Imagem cedida pelo Arquivo Nacional Torre do Tombo)

“Como um irmão”

Quando fala do tempo que passou com Gualter Basílio, o tom do relato fica tão mais leve, quase prazenteiro. Eram horas que passava afastado da sede. Durante uns dois meses coube-lhe vigiar um preso que estava doente, internado no Sanatório do Lumiar (hoje Hospital Pulido Valente).

Com este preso, um convívio mais prolongado terá transformado a relação entre os dois no que classifica de “amizade”. “Sempre nos demos muito bem. Para mim, o Gualter era como um irmão.” Tanto que se dariam a liberdades, “um com o outro”.

Colaço deixava-o “à vontade”, o detido faria o mesmo de volta. Um dia Colaço até lhe pediu se o deixava ir à bola. É que a equipa brasileira do Santos, de Pelé, vinha jogar a Lisboa. “Ó Gualter, eu tenho de ir ver o futebol. Se perguntarem por mim, diz que estava mal dos intestinos.” Assim foi. “Foi um jogo memorável.”

Gualter Basílio era um preso que estava internado depois de lhe ter sido retirado um pulmão, conta Fernando Colaço. Sem mais.

É verdade, tinha-lhe sido retirado o pulmão, depois da tuberculose que apanhou nos calabouços da PIDE, depois “da tortura, da pancadaria, da PIDE”, atesta José Zaluar, o irmão do preso. “A fragilidade respiratória” desses tempos (foi operado em 1962) haveria de o acompanhar até ao fim da vida, em 2007, com 78 anos, completa. “Cansava-se muito. Tinha infecções respiratórias crónicas.”

Gualter Basílio, que em democracia haveria de ser deputado, também estava preso por envolvimento na tentativa de assalto ao quartel de Beja, na passagem de ano de 1961. “A insurreição” tinha falhado, souberam pela rádio.

Mas a família teve de esperar uns longos cinco dias para saber onde estava. E poder vê-lo. A imagem dessa visita à prisão do Aljube é ainda muito nítida, “5 de Janeiro de 1962”: “O meu irmão era um homem muito moreno, de barba cerrada, estava crescida, por fazer, cheio de crostas de sangue. Tinham-lhe quase arrancado a orelha”, completa José Zaluar, membro do movimento cívico Não Apaguem a Memória!, criado em 2006 para preservar “a memória dos combates pela democracia”.

José Zaluar, à época um jovem liceal, menos 16 anos do que o “irmão-pai”, mas já envolvido no movimento associativo estudantil, lembra um sentimento de vingança que sentiu que o iria alimentar para sempre: “Estes filhos da puta, eu não perdoo a estes filhos da puta. Até morrer.” Falava de todos os que fossem da PIDE.

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Delegação da PIDE de Coimbra. Desde 2015 é o The Luggage Hostel & Suites nelson garrido

“Coitado do rapaz” 

“Não me sentia bem na António Maria Cardoso”. Mas talvez, mesmo dentro da PIDE, as coisas fossem diferentes longe da sede, pensou Fernando Colaço.

Para se afastar “daquele sítio”, pediu transferência para a delegação da PIDE de Coimbra, que também lhe ficava mais perto de casa. Os documentos atestam que o seu pedido foi deferido, em Maio de 1963.

“Se num lado era mau, no outro ainda era pior. O que fizeram ao Drago, coitado do rapaz”, como se o homem de quem fala ainda fosse rapaz.

Ali conheceria o homem que o levaria a fazer um acto mais drástico. Chamava-se José Drago, tinha 29 anos, só mais três do que ele, era um serralheiro civil do Partido Comunista Português, natural de uma aldeia próxima de Mértola.

Fernando Colaço também foi “nomeado para lhe fazer estátua”, formulação que passa a adoptar. Lembra-se dos seus pés, “inchados”, os sapatos já sem os atacadores, “para evitar que fizessem asneiras”.

As “asneiras” eram os suicídios. Uma das tarefas dos agentes era retirar aos presos atacadores e cintos, para que não fizessem laços para se enforcarem, arrumar moedas e anéis, para que não as engolissem. Quando aborda estas diligências, descreve-as como fazendo parte da lista dos seus deveres de funcionário.

Irene Flunser Pimentel lembra, na sua obra, o caso de um preso que, depois de três dias sob tortura de sono e estátua, tentou suicidar-se com barbitúricos, um outro tentou golpear o pescoço com uma tesoura das unhas e um detido, conduzido pelo desespero, engoliu os vidros dos próprios óculos.  

Fernando Colaço diz que nos “turnos” que teve com este preso, “durante o dia, sugeria-lhe que fosse à casa de banho. A minha intenção era que ele descansasse, sentado na sanita”, mas ele nunca o fez, diz que não lhe percebeu as suas verdadeiras e bondosas intenções. “Eu não preciso de ir à casa de banho”, respondia-lhe, desconfiado.

“À noite praticamente não estava lá ninguém. Só a partir das 21h00 é que eu facilitava. Dizia-lhe: ‘Zé, sente-se aqui na minha cadeira e debruce-se sobre a minha secretária’.” Estava há muitos dias sem dormir, não sabe quantos, e não falava.

Instar. Se no processo de Edmundo Pedro o verbo dactilografado era “convidar”, no processo 82/64, o verbo é “instar”, que quer dizer “pedir com insistência”.

“Instado mais uma vez a responder à pergunta anterior, respondeu que, mais uma vez, se recusa a responder”, lê-se nos ofícios da PIDE sobre a prisão do homem de quem fala Colaço, auto de declarações de 6 de Junho de 1964.

O vai-e-vem de ofícios entre a delegação de Coimbra da PIDE e o Ministério do Interior, que tinha de conceder a autorização, dão conta da necessidade de prolongar a sua “prisão sem culpa formada” por 45 dias. E depois por mais 45. “A bem da nação” — era como terminavam todos os ofícios.

O argumento era sucessivamente, repetido: “Pelo carácter excepcionalmente perigoso da organização secreta e subversiva que denominam por ‘Partido Comunista Português’.” Pedidos deferidos.

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Ficha do preso político José Drago (PIDE, Serviços Centrais, Registo Geral de Presos. IImagem cedida pelo Arquivo Nacional Torre do Tombo)

A PIDE funcionava como uma espécie “de justiça paralela” amparada por legislação que tornava licítas práticas tão arbitrárias como a “prisão sem culpa formada” sem acesso a advogado até seis meses, ter agentes que acumulavam a sua função com a de “testemunhas de acusação”, a existência das chamadas “medidas de segurança”, que podiam ir até aos três anos, prorrogáveis, e se colavam a penas de prisão como se não o fossem também. Foi uma das características do regime, “a impunidade legalmente assegurada”, escreve o historiador Fernando Rosas. Isso e a tortura como método de investigação.

Os burocráticos pedidos da delegação de Coimbra dão eco de impaciência face ao recluso que, “desde o início, tem procurado eximir-se ao esclarecimento dos factos delituosos”. Dá-se, de novo, conta da sua resistência, e da necessidade de “o levar a colaborar”. “A bem da nação.”

Era um homem que resistia, que não parava de resistir. Num dos “turnos” de Colaço, eram já 5 da manhã, entrou ao serviço o agente que o ia render. Via-se que estava farto, que só queria ir para casa dormir. Vociferou: “Julgas que estou para perder noites por tua causa, falas ou não falas.”

E Fernando Colaço faz de novo uma pausa, o olhar ausenta-se-lhe: “Começou a dar-lhe valentes bofetadas na cara” e Drago, ainda assim, nada, ainda lhe terá respondido, “ai se isto algum dia muda”.

“Era estúpida aquela violência. Um homem não sabe até que ponto tem resistência, quando percebe, ninguém lhe tira nada. Quando um homem aprende que aguenta, perde o medo. Eu aprendi muito.”

Então, o tal agente “levantou-lhe as calças da perna direita e encostou o sapato de sola grossa junto ao joelho e raspou a canela daí até ao pé. E o Zé caiu. Ao estar caído sobre o soalho, esse colega disparou ao pontapé no peito”. Se com o Edmundo o que presenciou “foi violento, com o Drago foi violentíssimo”. “Olhei para o meu colega como um criminoso”. “O homem é o lobo do homem.”

E, nesta situação de tanta violência, não pensou interferir e impedir a tortura?, pergunto. “Eu não tinha nem meios nem recursos para os poder defender. Eu ia perdendo a cabeça, eu pensei em dar com a coronha da minha arma na cabeça do colega. Eu segurei-me. Se o Zé morresse, eu denunciava. Eu tinha o passaporte e ia para a Suíça.”

“Durou uns dez minutos, se tanto.” Terminado que estava o seu turno, Fernando Colaço diz, de novo, “retirei-me”. “Fui para casa dormir, tanto como estou a dormir agora”, querendo dizer que nada. A recém-cena de tortura, de novo, a repassar-lhe na mente. “Filhos da mãe, é que dói, o que fizeram ao Drago. É preciso não ter o mínimo de sentimentos.”

Na PIDE tinha colegas “assim”. “Não eram indivíduos normais. Eram diferentes, alucinados, não tinham nada dentro deles.” Desses “até eu tinha medo”. “Eram perigosos. Encostavam-me à parede e era ‘um acidente’.” Se já lá entravam “criminosos”, se lá dentro assim se faziam, “não sei”. Nunca meditou nesses assuntos.

O que sabe é que seria fácil classificar todos os seus colegas como “maus”, mas “isso não seria justo”. “Não vou dizer o que não sinto. As coisas não eram pretas e brancas. Os meus colegas ou os presos eram seres humanos.”

“Fiz amigos na PIDE, umas jóias de pessoas, bons rapazes. A maior parte eram pessoas bem formadas, pessoas normais, como eu”, alguns casados e com filhos, outros solteiros, ele só se casou, e foi pai, depois. Um dos colegas com quem manteve algum contacto era conhecido como “o Padrecas”, por ter estado à beira de ser ordenado padre. “É um bom rapaz, tenho consideração por ele.” Cerca de 3% dos pides tinham passado pelo seminário católico, refere A História da PIDE.

Nas várias conversas que vamos tendo, a percentagem oscila ligeiramente, mas mantém-se baixa, entre os 5 e 10%. Não iriam além desse número, os “maus” dentro da PIDE, “os criminosos”, assevera Colaço. Edmundo Pedro ri-se da estimativa, sugere que talvez a percentagem mais correcta fosse a invertida: 90% a 95% de maus e 5% a 10% de menos maus.

Mas Fernando não sabe onde colocar um colega que o intrigava: “Se visse alguém com frio, despia a própria roupa, se visse alguém com fome, despejava a carteira, mas se lhe falassem em comunistas, ficava louco, perdia as estribeiras. Ele sabia lá o que era o comunismo.”

“Foram anos que me deram a conhecer muita coisa.” “É o homem, com o bem e o mal dentro de si. Nenhum de nós é perfeito, nenhum de nós é sadio.” “É perfeita?” “Vamos responder perante o que fazemos neste mundo”, diz em tom de arauto, “na altura de partir”.

A historiadora Irene Flunser Pimentel escreve: “A PIDE/DGS não era constituída, na sua maioria, por degenerados (...) Era composta por indivíduos normais, que, fora da instituição, compartilhavam valores familiares e até alguns uma vida exemplar.” Sobre homens que se provou estarem envolvidos em bárbaras torturas: um “era um bom pai”, outro “um marido terno para a sua mulher cega”, outro “um bombeiro”.

Fernando Colaço reentrou “ao serviço”, no dia a seguir ao turno da tortura, passadas 12 horas, às 17h00.

Conta que a primera coisa que fez foi ir à cama do preso, para ver como estava. Vazia. “Foi levado para os Hospitais da Universidade de Coimbra, com costelas partidas”, reconstitui esta deixa dita por um colega, assim como a sua: “E ninguém tomou providências?” “O colega encolheu os ombros, como quem diz, ‘quem sou eu’. “Ninguém apurou responsabilidades.” Diz que isso o revoltou.

Porque, em seu entender, o problema não estava na instituição PIDE, que tinha fins que estavam de acordo com “o seu carácter” e detém-se na letra da lei, decreto-lei n.º 39 749, art. 6.º e 7.º. “Impedir terroristas e indivíduos indesejáveis de entrarem no país, indivíduos com doenças. Isto é mau? Diga-me lá, isto é mau? A minha intenção foi esta.” “Até gostava de ter guardado o crachá, como recordação.”

“Mas isso era o que estava escrito”, respondo-lhe. A tortura não vem escrita na lei, mas era uma prática instituída da PIDE. Pergunto-lhe se não quer levar emprestada A História da PIDE, uma vez que o vejo sempre acompanhado com livros, o de hoje é Maria Madalena, a discípula amada, de Esther de Boer. “Não me interessa saber mais sobre a PIDE, basta ter passado por lá para ter a leitura toda.”

Está comprovado que foram usados bastões de choques eléctricos, isolamento, insultos (“és um merdas”, “és uma cabra”), houve mulheres presas com os filhos bebés, humilhações várias, como despir mulheres e obrigá-las a fazer as necessidades no chão do local do interrogatório e querer que limpassem os excrementos com a sua própria roupa, refere o livro Museu do Aljube — Resistência e Liberdade.

“O problema não está na instituição, mas no comportamento de alguns funcionários”, sublinha, “os 5 a 10% eram prevaricadores do que estava estipulado no Código Penal, onde o abuso da autoridade é punível”.

Mas o inspector que estava à frente deste processo sabia da tortura, ressalva Fernando Colaço, ao contrário de muitos superiores, e até do próprio Salazar, “um grande estadista”, que decerto ignoraria tamanhas malfeitorias.

Não é desconhecimento que revela a frase do ditador que ficou clássica: “Se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não vale bem, não justifica largamente meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras.”

No depoimento que José Drago deu, já depois do 25 de Abril, ao Serviço de Coordenação de Extinção da PIDE/DGS, falará da agressão do agente da PIDE de que fala Colaço, mas apenas como um fragmento do que passou às mãos de pides nesse dia. A cena continuou. Foi com “cabos de vassouras” que vários agentes da delegação da PIDE de Coimbra acabaram por lhe partir “quatro costelas”.

“O que aconteceu àqueles homens podia ter-me acontecido a mim. Eu podia ter ido lá bater com os ossos, sou um homem, estava sujeito àquilo. Entrei como funcionário, podia ser um homem da oposição e estaria sujeito àqueles tormentos. Eu punha-me no lugar deles.” “Ponha-se no meu lugar”, convida agora.

Haveria de voltar a ver Drago poucos dias depois, vindo do hospital, sentado na cama. Conta que lhe disse “não sei se as tuas ideias estão certas ou erradas, mas eu não estou cá para isso”. E decidiu que ia sair da PIDE. Custasse o que custasse.

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Ficheiros encontrados nas instalações da PIDE no pós-25 de Abril (Arquivo do Museu do Aljube)

A seu pedido

E o que até aqui no seu discurso tinha sido impedimento e dificuldade — antes reiterou que se saísse correria “risco de vida”, que o ameaçariam, que estavam “prisioneiros” — terá acabado, afinal, por não ser assim tão custoso. Pediu a sua rescisão, confirma a página do Diário do Governo que quer muito que fotocopiemos, a prova de que é quem diz ser, um homem de consciência.

Há nessa folha A4 três palavras que tem exageradamente sublinhadas a vermelho: “A/Seu/Pedido”, que mostra como prova da sua excepcionalidade. Fernando Colaço saiu porque pediu para sair, porque quis mesmo sair. “Eu tinha de sair, nem que fosse para dar servidão a pedreiros.”

Quando souberam que ia “rescindir”, houve colegas que o olharam com pena, por não poderem fazer o mesmo. “Eu se pudesse, também saía”, “se eu arranjasse um emprego, também me ia embora”, mas também se lembra de que houve um colega que o censurou, “tu vais-te embora? Eles precisam de nós”. A ideia de que ali cumpriam missão importante à pátria.

A sua saída da PIDE seria então formalizada em Fevereiro de 1965, quase nove anos antes do 25 de Abril.

À data, faltava a Edmundo Pedro cumprir cerca de nove meses de prisão, dos quatro anos a que foi condenado pela tentativa do golpe de Beja.

A José António Carocinho o tribunal tinha absolvido dos seus supostos crimes (em Julho de 1963), mas nessa altura já tinha passado dez meses preso.

Gualter Basílio tinha sido libertado sete meses antes da saída de Colaço, após quatro anos de cadeia, mas ficou proibido de conduzir, limitação profissional especialmente penosa (era gerente comercial), até 1969.

Um mês depois da saída de Colaço da PIDE, José Drago seria sentenciado a dois anos e dois meses de prisão, com “medida de segurança de seis meses e três anos, prorrogável”, que iria cumprir no forte de Peniche.

Fernando Colaço não soube desse “a seguir”. Perdeu o rasto a presos e colegas. A sua “passagem” pela “polícia internacional” era para esquecer. Era suposto ser “assunto encerrado”.

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Uma das fotografias icónicas do pós-25 de Abril, da autoria do fotojornalista Henri Bureau e vencedora de uma categoria do World Press Photo de 1975 Henri Bureau (cedida pelo Museu do Aljube)

Vida pós-PIDE

Cá fora, Fernando Colaço diz que foi difícil arranjar emprego. Se nalgumas empresas onde foi bater à porta tinham medo dele, por ter pertencido à PIDE, outras, mais próximas do regime, encaravam com suspeita a sua saída. “Por que é que o senhor saiu?” A resposta curta: “Entendi que devia sair.”

Acabaria por arranjar trabalhar num banco, depois numa seguradora. “Agarrei-me a tudo.”  Mas o mais da sua vida profissional pós-PIDE foi como guarda-livros, ou contabilista, a ocupação com que acabou o seu tempo de vida activa, e da qual está reformado.

Ainda era vendedor de estruturas metálicas no dia em que estava a ouvir rádio em casa, 25 de Abril de 1974. Não saiu à rua. “Não gosto de multidões.”

Conta que se postou à janela a ver as pessoas felizes, a festejar. É comedido a falar desse dia, diz que sentiu “satisfação pela libertação dos indivíduos presos, por se abrirem as portas”. “Foi um dia agradável.”

Logo aí não temeu, por si, pelo seu passado. Isso foi mais tarde. Quando ser ex-PIDE significava correr riscos.

Lembra-se de, na rua, ter visto sovar um homem que alguém acusou de ser PIDE. Bateram-lhe ainda antes de conseguir mostrar o crachá da PSP, que afinal era o que ele era. “As turbas são altamente perigosas.”

Era o tempo em que ter pertencido à PIDE, “uma associação de malfeitores”, era o pior dos insultos, a pior das culpas. “Morte à PIDE”, gritava-se nas ruas.

Esse sentimento, de que era preciso castigar todos os que tinham pertencido à extinta “organização de terrorismo político e social” veio a ter forma de lei no ano a seguir à revolução, com “a 8/75”.

Colaço lembra-se de ouvir nas notícias que todos os que por lá tinham passado iriam responder perante a justiça. E ao falar destes tempos, em que não sabia como iria ser tratado o seu caso particular, tanto diz, em momentos diferentes, “eu fiz parte dos quadros da PIDE, tinha de ir a julgamento”, como que talvez separassem “o trigo do joio, e pedissem responsabilidade a quem a tinha”.

Acabou por ser notificado. Conserva “a nota de culpa/acto acusatório” em sua casa. Crime: ter pertencido “aos quadros de investigação” da PIDE. Analisada a sua ficha de funcionário, verificou-se ter sido promovido de agente auxiliar a agente de 2.ª classe e ter sido castigado uma vez, com “6 dias de multa por ter chegado 10 minutos atrasado a um serviço de escala”.

O início das “averiguações” do seu processo é de 23 de Agosto 1977. A sentença demoraria um ano a chegar.

Nunca pensou voltar a subir os mesmos degraus da sede da PIDE, agora chamado Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS. Ainda lá continuava pendurada a frase de Salazar: “Nós havemos de chorar os mortos, se os vivos o não merecerem.”

Vinha prestar declarações sobre o seu passado como ex-agente da PIDE. Em documentos judiciais era agora identificado na qualidade de “presumido delinquente”.

Planta de piso da Cadeia do Aljube com 13 “curros” ou “gavetas”, celas de dimensões mínimas usadas para o isolamento prolongado arquivo museu do aljube
Por dentro da prisão de Peniche arquivo museu do aljube
Desenho de campo de concentração do Tarrafal arquivo museu do aljube
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Planta de piso da Cadeia do Aljube com 13 “curros” ou “gavetas”, celas de dimensões mínimas usadas para o isolamento prolongado arquivo museu do aljube

“Era tudo ruim”

Fernando Colaço não sabe situar o momento em que sentiu uma necessidade, que ele não explica nem com culpa nem com arrependimento, de ir reencontrar os presos que conheceu quando era agente.

Fala dessas buscas como se fossem “naturais”, movido apenas pela “preocupação de saber como é que eles estavam”, como se fosse possível afastar a circunstância e o tempo em que se conheceram. E aqueles homens fossem apenas velhos conhecidos.

Sabia que José António Carocinho era de Beja. Pouco depois do 25 de Abril, “antes disso não era boa ideia, nem para ele, nem para mim”, conta que apanhou uma camioneta, não gosta de conduzir, e foi até à cidade. Sabia que o ex-preso estava ligado à indústria da moagem.

Não foi difícil encontrá-lo. “Não me reconheceu. Pôs-se a olhar para mim.” Já se tinham passado cerca de dez anos. Teve de se apresentar, “disse que estive na polícia internacional e que tinha estado com ele ‘na estátua’”, como se a estátua fosse um sítio. “Ficou surpreendido.”

Conta que acabou por ser bem acolhido, que até lhe pagou o almoço. E que a visita terminou de forma simpática, com o ex-preso político a dar-lhe de presente um doce típico local, uma porca com os seus leitõezinhos, “feitos de figo”, de uma pastelaria local, conta.

José António Carocinho, morreu há 23 anos, em 1994, aos 80 anos.

É para o segundo filho mais velho de cinco, Afonso Carocinho, que remetem os irmãos, porque era o mais próximo do pai. Foi com ele que trabalhou na José António Carocinho e Filhos Lda, empresa de máquinas de panificação e pastelaria, que manteve o nome do pai vivo até ter encerrado, há dois anos.

“Além de meu pai, era o meu companheiro.” E, conhecendo-o como o conhecia, não reconhece o pai na história que conta “o tal PIDE”, de quem nunca ouviu falar.

O pai deixou aos filhos uma lista com alguns dos nomes dos pides que o torturavam. Até foi lá ver: “O nome desse não está lá.”

Para tirar teimas que não chega bem a ter, Afonso Carocinho fez questão de ligar a vários ex-presos políticos que estiveram com o pai, a ver se ouviram falar de um tal pide que até deixava dormir. Ninguém ouviu falar desse Colaço.

A ter acontecido o que Fernando Colaço diz que teve lugar naquele 3.º andar da Rua António Maria Cardoso, num dia de 1962, fica o acto perdido no tempo.

Está convencido de que uma história destas, de um pide que deixava dormir, o pai ter-lhe-ia seguramente transmitido e não acredita em actos de bondade de pides. “Uma balela, não tem ponta de verdade. É completamente impossível. Era tudo ruim. Deve ter sido história que esse pide inventou para o tribunal [depois do 25 de Abril].” Fernando Colaço nunca a contou em tribunal.

Quanto ao téorico reencontro pós-25 de Abril: que sim, a porca com os filhotes, feita de amêndoa, gila e ovos, que o ex-pide disse que recebeu de presente do pai, é um doce típico de uma pastelaria de Beja. Mas o que é que isso prova? “Toda a gente conhece a Luiz da Rocha”, onde, para mais, “o meu pai nunca ia porque [antes do 25 de Abril] era um café ‘da situação’”. “Ainda por cima pagar-lhe o almoço, a um pide”, e ri-se, com a inverosimilhança da cena. “O meu pai nunca teria relações com um homem desses.” Descarta a história como “tentativa de branqueamento”.

Este filho do ex-preso político, de 72 anos, quis vir acompanhado com um amigo do pai, Rui Mestre Palma, 82 anos, um dos 23 homens presos com o pai no mesmo 16 de Setembro de 1962, pelos mesmos motivos — foram apanhados, debaixo de uma oliveira, na herdade Vinha da Cabana a engendrar uma reunião de “republicanos democratas”.

Conto que Fernando Colaço me disse ter entrado na PIDE com desconhecimento de que ali se torturava. “Coitado, não sabia”, comenta, jocoso, Rui Mestre Palma, fazendo una analogia com uma qualquer empresa quando contrata funcionários, “o patrão só mete em quem confia”.

Estiveram presas em cárceres da polícia política, de 1945 a 1974, 12.385 pessoas, que sofreram 19.708 prisões. Beja é, a seguir a Lisboa e ao Porto, o distrito com maior percentagem de presos políticos (7,74%), mostra A História da PIDE. “Aqui até parecia mal não ser da oposição”, brinca Afonso.

Afonso Carocinho não está interessado em continuar a falar do tal pide. Prefere enaltecer a coragem do pai, física, e não só. Pastor de ovelhas em menino, só aos 18 anos um vizinho o ensinou a ler e a escrever. Rememora como, nas longas temporadas que passava preso, acumulava dívidas, que punham em apuros a sobrevivência económica das duas padarias e a da família. “Não era só a tortura, a grande preocupação da PIDE era derrotá-los financeiramente.”

Quando Rui Mestre Palma saiu da cadeia, recorda-se de que já não tinha emprego. O patrão contou-lhe os quase seis meses de prisão em Caxias como “faltas não justificadas”.

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Retirada da imagem de Marcello Caetano no pós 25 de Abril ALFREDO CUNHA/ARQUIVO

“PIDE bom”

A José Drago, o ex-agente conta que também o encontrou, este por acaso na rua, em Lisboa, depois do 25 de Abril.

Mantinha com ele “conversas banais”, “como é que vais? Está tudo bem contigo?”. Perguntas dirigidas ao momento presente, o passado comum nunca foi assunto. “Nunca falámos sobre esses tempos.”

Um dia, relata Colaço, “ele deu-me a morada de casa dele em Moscavide e eu fui visitá-lo, naturalmente. Ficava na Rua 25 de Abril”. O processo confirma que era esta a morada do ex-preso no pós-25 de Abril.

Morreu-lhe o marido há menos de um ano e Margarida Drago tem pouca vontade de falar sobre esses tempos. Casaram-se muito depois da sua prisão na delegação de Coimbra, em 1964, e o marido nunca lhe falou em pide nenhum, o nome Fernando Colaço não lhe diz absolutamente nada.

Sabemos que os dois homens, de facto, se conheceram na delegação da PIDE de Coimbra, onde desde 2015 funciona o The Luggage Hostel & Suites, porque consulto o processo em que o ex-pide foi réu, depositado no Arquivo Geral do Exército. A consulta só foi possível com a permissão de Fernando Colaço — “não tenho nada a esconder” —, que, em vez de a dar por escrito, preferiu autorizá-la presencialmente, sem se dar conta da estupefacção disfarçada da sua chegada ao arquivo, um ex-pide.

No processo, que também quer folhear, Fernando Colaço alegou, em sua defesa que, ouvido José Drago, este até se referiu a ele como “o pide bom”. É o 16.º ponto da sua “contestação”.

No processo do ex-agente constam como “testemunhas abonatórias” um guarda-livros/ex-autarca e um comerciante socialista, seus conhecidos; o “preso-vítima” José Drago surge como a sua única testemunha de acusação.

E o que diz sobre Colaço é quase nada. É detalhado a descrever as torturas que sofreu às mãos da PIDE, os 11 dias sem dormir, a vez em que lhe atiraram a cabeça contra a parede, lhe apertaram os testículos, a ponto de desmaiar. Assevera que, entre os que o torturaram, “pode identificar uns 50 pides de Lisboa e uns 30 em Coimbra”.

Sobre Colaço, é lacónico. E a única coisa que admite é que este nunca o torturou, que nunca fez nada para o impedir de dormir, mas apenas porque “fazia o papel de pide bom”, única justificação para os que usavam de “bons modos”. “E mais não declarou.”

Podemos tirar destas suas, poucas, palavras que entendia o preso político que Fernando Colaço se fingia de bom, não o sendo, e que, cumprindo apenas um papel, não era nem diferente nem melhor do que os demais.

Em todas as polícias, em ditadura mas também em democracia, vê-se nos filmes americanos, sempre houve essa dupla: há um que é suposto ser o mau, e o outro que se lhe opõe e que é suposto ser o bom que aplaca o mau, mas em que ambos têm o mesmo objectivo. A PIDE não foi excepção, resume Irene Flunser Pimentel.

A historiadora lembra um homem que “a PIDE espancou, atirou-lhe com uma mesa em cima”, pôs-lhe “uma matraca na boca”. “Depois veio ‘um bom’ que lhe disse ‘eu odeio isto, há colegas horríveis’. Não falou sob tortura, falou às mãos ‘do pide bom’.”

Mas Fernando Colaço retorque: “Eu fazia-o por mim, pela minha consciência, não era porque me mandassem. Nem era bom, nem era mau, eu queria chegar à noite e conseguir pousar a cabeça na almofada. Não queria que cá dentro”, e aponta para a cabeça, “houvesse uma coisa a picar.”

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Frase de Salazar nas instalações da PIDE alfredo cunha/arquivo

“Encontro estranhíssimo”

A Gualter Basílio também não foi preciso procurá-lo. Eram quase vizinhos. Encontrava-o muitas vezes na rua, conversavam, conta Colaço. Sentavam-se à mesa do café, mesmo quando ele já estava doente. Ligava-lhe pelo Natal, continuou a fazer o mesmo com a viúva.

O irmão de Gualter Basílio, José Zaluar, diz que, para si, era como se os pides não tivessem nomes, talvez porque, assim, não lhes conferisse humanidade. Mas este apelido era-lhe familiar. “Lembro-me perfeitamente do nome Colaço”, o homem de quem o irmão falava em tom bem-disposto. Era o pide que lhe ligava pelo Natal, a ele, mas também a Edmundo Pedro.

O humor com que o irmão mais velho abordava este tema era, talvez, a única forma que Gualter via de ele, José Zaluar, aceitar a ideia de o irmão, um ex-preso político profundamente torturado, se poder relacionar de forma amistosa com um pide, ideia que teria sido, até determinada altura da sua vida, “inaceitável”.

Conto a Fernando Colaço que estive com o irmão de Gualter, José Zaluar. O ex-agente vê nestas minhas conversas com familiares de ex-presos com quem se cruzou a vontade de continuar a contar a sua história, de a validar. Tem até um pedido, se não me importaria de o apresentar ao irmão do Gualter, já que o conheço.

Transmito esse desejo a José Zaluar. Ao telefone, o irmão do ex-preso político ri-se com a perspectiva desse “encontro estranhíssimo”, pelo que simboliza, estar perante “um pide” é como aceitar “confrontar-me com o mal absoluto, com a filha da putice mais inaceitável”. Aceita: “É capaz de ter piada, também me enriquece, também me testa. Eu gosto de me confrontar, de me pôr à prova.”

Zaluar preparou-se psicologicamente para o dia, “não sabia como iria reagir”. O encontro entre “o irmão do torturado”, ele sabe que é esse ali o seu papel, e o ex-agente da PIDE acontece, por sugestão sua, na Padaria do Povo, uma cooperativa no bairro lisboeta de Campo de Ourique da qual José Zaluar é presidente. No espaço está, nessa tarde, a decorrer um ensaio do cantor João Afonso, sobrinho de Zeca Afonso, será essa a banda sonora do encontro.

Colaço enceta a conversa agarrando o braço direito de Zaluar, a sorrir: “Os traços são os mesmos. Eu gostava muito do seu irmão. O Gualter era uma jóia.” Zaluar tenta ser-lhe agradável, “o pai era o mesmo”, aligeirando o que está a ter lugar, responde-lhe, “só que eu, mesmo quando guevarista, tinha uma barba ranhosa, o meu irmão tinha uma barba cerradíssima”.

Já sentados à mesa, Colaço fala-lhe da vez que o irmão o deixou ir ver o jogo em que o Pelé atravessou o estádio com a bola, “todo o estádio se levantou”, e chegarão à conclusão de que são os três, preso político torturado, irmão de ex-preso político torturado e ex-agente da PIDE, do Benfica. Que isso têm em comum.

Mas, parecendo uma conversa, o encontro é feito em larga medida de dois monólogos, de dois tempos que viveram em comum, mas que seguiram paralelos, irreconciliáveis.

Zaluar terminará muitas frases com a interjeição “pá”, falará “da malta” e dos seus tempos de universitário envolvido na crise estudantil de 1962, na sua recusa em ir para a guerra, nos nove anos de exílio forçado em França.

Colaço centrará toda a sua atenção em desfiar para ele, tal qual o fez para mim, as mesmas histórias: de como ficou chocado com o primeiro homem que viu torturar, Edmundo Pedro; do primeiro homem que foi “nomeado para fazer uma estátua”, José António Carocinho, e terá deixado dormir. E neste episódio distende-se.

“Você vai-se sentar na minha cadeira e debruçar-se sobre a minha secretária. Eu vou ali para a porta e se me vir aflito dou um encontrão”, reconta.  

“Você estava sozinho”?, pergunta num tom algo céptico Zaluar. “Estava.” E mais não pergunta.

José Zaluar olha para o telemóvel, diz que está com pressa. Colaço apressa o relato, quer muito prosseguir, chegar ao volte-face.

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No 25 de Abril foram queimados vários documentos na sede da PIDE Lusa

Passa rapidamente para o homem a quem “partiram as costelas” e de como isso o empurrou para a “rescisão”, “a meu pedido”. “Quando?”, pergunta o irmão do ex-preso político. “Saí em 1965.” Zaluar fica surpreendido, pensou que tivesse saído já no tempo de Marcello Caetano, quando não seria muito difícil adivinhar que iria haver mudanças e teria sido fácil pôr-se a salvo.

E parece que em José Zaluar se opera uma mudança de espírito. “Sair em 1965 é diferente de ter saído em 1969 ou em 1970. Não deve ter sido fácil. Sofreu sequelas?”, Colaço responde que “não”.

O ex-agente está satisfeito, sorri, como se estivesse cumprido o objectivo porque quis o encontro, o mesmo com que repete sem cessar os mesmos excertos: “Eu só lá estive três anos. Senhor Zé, eu tomei a atitude correcta.”

A conversa está a chegar ao fim, Zaluar está quase de saída para o lançamento de um livro de poesia na Associação 25 de Abril. Ainda dirá de memória alguns versos do poema de José Fanha Balanço provisório sobre envelhecer, sobre o chegar à década de vida que é a dos dois, Colaço 78, Zaluar 72. “Temos falta de cabelo/ três ou quatro cicatrizes/Angústias de vez em quando.”

E termina dirigindo-se-lhe, olhos nos olhos: “Quis conhecê-lo para me testar a mim mesmo. Para a minha geração um pide é um demónio. Assim como, do outro lado, um comuna era um demónio.” Hoje aqui sentado, reconhece, pelo que lhe ouviu, “pelos comportamentos que usa como argumentos”, e por perguntas que lhe fez sobre a sua relação com o irmão, que há provas de alguma “cumplicidade” entre os dois homens que o irmão nunca lhe confessou.

Zaluar tem mesmo de se ir embora, mas ainda graceja: “Este homem também nunca mais se cala, é tão mau como eu.” Levanta-se para ir até ao balcão e dizer ao empregado que o Sumol de ananás que “o sr. Colaço” bebeu é por conta da casa, oferta do presidente da Padaria do Povo.

Colaço agora está impaciente, tem medo que não lhe venha dizer adeus. Abeira-se de Zaluar. “Então não se ia despedir de mim?” O irmão de Gualter concede. Despedem-se, um abraço incompleto.

Colaço sorri, parece apaziguado. Depois deste fim de conversa, desce as escadas gastas da Padaria do Povo. “É uma pessoa simpática, acessível, parece ser uma jóia de pessoa.”

Zaluar ouviu-o. “A história do Colaço pode não ser uma verdade absoluta”, admite este professor universitário de História jubilado, e “a PIDE continua a ser o que era, uma escola de criminosos”. Mas é capaz de admitir, a esta distância, com o que escutou deste homem, que podia haver, lá dentro, “os maus” e os “menos piores”.

Mais tarde, face ao bem que lhe parece ter corrido a conversa com o irmão de Gualter, Fernando Colaço há-de me falar na possibilidade de haver também um encontro com o filho de Carocinho, a ver se também lhe diz de sua justiça, lhe explana as suas razões, que são sempre as mesmas.

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Edmundo Pedro, hoje com 99 anos, passou um terço da ditadura preso - 16 anos. A mulher, Lourdes Pedro, está com 91 anos. É a eles que Fernando Colaço continua a telefonar para desejar Boas festas enric vives-rubio

No sofá da sala

Edmundo e Lourdes Pedro já lhe conhecem as razões de cor, de tanto Colaço lhas ter repetido. Desde aquela primeira vez que esteve lá em casa, pouco depois do 25 de Abril.

O ex-preso confessa que teve de ir verificar o que lhe pareceu mais importante da história que lhes contava aquele homem: da sua saída da PIDE, pelo seu próprio pé, muito antes do 25 de Abril. Se lá tivesse ficado até ao estertor do regime, “a recepção teria sido diferente”. Foi a confirmação oficial que lhe franqueou as portas de sua casa.

Era um homem a precisar de ser ouvido, a precisar de se justificar, dizem. E Edmundo e Lourdes Pedro ouviram-no, muitas vezes, no sofá da sua sala, junto ao qual reluz uma cigarreira-homenagem em prata com os dizeres “Combatente da Liberdade”.

Do todo, Edmundo Pedro fez uma espécie de balanço. Algumas afirmações tomou como boas, noutras deu o desconto.

Acredita que: “Era difícil arranjar emprego na altura, mas também era mais confortável estar na PIDE com um ordenado razoável do que a cavar a terra”; que “havia indivíduos que iam para lá porque eram sádicos, outros procuravam um emprego e não fazer mal”, “de não saber ao que ia quando entrou, não acredito, não me venha com histórias”. Está em crer que deixou o tal preso dormir. De tanto lhe ouvir essa história, houve uma altura em que até pensou que o tinha deixado dormir a ele. Mas “assistir” a violência e “fazer turnos”, a presos sob tortura, “é ser cúmplice, claro que é”.

Lourdes Pedro é mais benevolente. “Ele diz que era da província, que não havia emprego.” Depois, “foi para uma coisa sem saber o que aquela coisa era, com a ideia de que podia ir para as alfândegas e depois nunca foi”. “Nunca bateu em ninguém, foi o único que não bateu ao meu marido.”

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Foi para uma coisa sem saber o que era, com a ideia de que podia ir para as alfândegas... Foi o único que não bateu ao meu marido.”

Quanto ao resto que lhes contou, “são as suas explicações. Não tenho razões para acreditar, nem para deixar de acreditar”, nem forma de provar o que é, ou não, verdade. E será que isso interessa, parece perguntar.

O que sabe é que, se não tivesse vindo ter com eles, nunca mais tal personagem lhes tinha passado pela cabeça. Nem nunca saberiam o seu nome. “Ele não tinha necessidade nenhuma de vir aqui com a sua história. Já tinha passado tanto tempo.”

“É curioso, nunca mais encontrei nenhum pide”, diz Edmundo Pedro, e nunca se interessou em saber do paradeiro desses homens. Nem do que mais o torturou, “era um malvado. O Abílio Pires. Um selvagem. Foi o pior”. “Tinha mais que fazer.” Na parcela da sua vida em democracia, foi desde deputado do Partido Socialista a presidente da RTP. Diz que os pides não lhe povoam nem sonhos nem pesadelos. “Não me lembro deles.” Nem lhe custa passar à frente dos sítios onde sofreu às suas mãos. “Passou, passou.”

Quanto a Colaço, a certa altura, Edmundo Pedro confessa que deixou de ter paciência para o atender, para lhe aturar as mesmas autojustificações. E desde cedo o ex-agente da PIDE manifestou a predilecção por Lourdes, “gostava mais de ser atendido pela minha mulher do que por mim. Ela tinha mais paciência”.

Lourdes lembra-se do que sentiu quando o conheceu, depois de o marido lhe ter dito que “aquele tinha sido o rapaz que o tinha agarrado quando foi a fuga”. O ex-agente já não era um rapaz, andava pelos 40 anos, a mesma idade que o marido tinha quanto lhe tentou escapar. “Acredite, nunca vi alguém com a idade que ele tinha que carregasse uma angústia tão grande. Parecia que era uma carga que tinha aos ombros. Não era que dissesse que estava arrependido, notava-se, na cara dele, a angústia. Era o desgosto, a vergonha de ter estado na PIDE. Marcou-o profundamente.” “Passar pela António Maria Cardoso é como se fosse um carimbo, que fica.”

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Este foi o único que me apareceu. Os outros, os que me bateram, não querem saber. Não digo que seja um homem bom, mas não é mal formado. Tem de Deus e do Diabo, a natureza humana

Foram muitas sessões de conversa, tanto que formou dele uma ideia, acha que não se engana: “O Colaço não é mal formado, não é um malvado. Ele tem bom fundo. É um bocado um pobre diabo que foi para a PIDE. São muitos anos, com a angústia que carregou, já está bem autocastigado.” “Ele tenta esquecer, não consegue.”

“Este foi o único que me apareceu”, diz Edmundo Pedro. “Os outros, os que me bateram, não querem saber. Não digo que seja um homem bom, mas não é um homem mal formado”, concorda o ex-preso político. “Tem de Deus e do Diabo, a natureza humana. Muitas vezes a oportunidade faz o homem.”

Hoje, o ex-preso político consegue olhar para ele como “um homem verdadeiramente torturado”.

Lourdes Pedro diz que até conseguiu, a partir de certa altura, de deixar de o ver como “um pide”. “Era um homem que estava a sofrer. Via nele um homem amargurado que talvez renegasse o seu passado.” Um homem a quem a repetição parecia consolar: “Sabia-lhe bem estar sempre a falar das mesmas coisas.” E ela, até certa altura, ouviu-o.

“Conversámos muito. Lutei muito para ele deixar de ser angustiado, acho que consegui. Não o trate mal. O que é que vai escrever?”

O telefonema pelo Natal é agora a única altura em que mantêm contacto. A chamada tornada em ritual. Não falha. 

“Ele tenta sempre ser muito delicado.” “Como está o marido? Como estão todos?”, “Boas festas”, “tudo de bom”, reconstitui Lourdes. “Lurditas”, como gosta de se lhe referir e ela não se importa, responde-lhe na mesma medida de simpatia. “Tudo de bom também para si, sr. Colaço.”

Quando Fernando Colaço se sentou no banco dos réus por ter pertencido à PIDE, o seu defensor oficioso alegou o seu “imperfeito conhecimento do mal do crime”, um argumento jurídico que remetia para o facto de que ser agente da PIDE, à época, era uma actividade “absolutamente legal”.

Mas pediu sobretudo que se atendesse “ao extraordinário relevo das atenuantes”: o “súbito arrebatamento” que o levou a sair, “a ausência de qualquer queixa contra si ou consigo relacionada”, e, ouvido o único testemunho “do preso-vítima” o facto de se poder concluir “ter-se comportado com humanidade no desempenho das suas funções”. “Impõe-se às nossas consciências a absolvição para o réu”, pediu a defesa.

Fernando Colaço foi um dos 2755 elementos da PIDE levados a tribunal militar depois do 25 de Abril (à data da revolução estavam ao serviço 2626). Destes, 68% tiveram penas de prisão até seis meses, 14% de um a dois anos, concluiu Irene Flunser Pimentel em Memória e Justiça Política (Edições Tinta-da-China). A moldura inicial prevista na lei era mais dura, previa-se dois a 12 anos de cadeia.

No caso de Colaço, os magistrados julgaram-no, “por voto unânime”: culpado. Por ter ficado provado que “foi funcionário do quadro de pessoal de investigação da PIDE” e que “fez turnos de vigilância a presos sob tortura”. Mas tiveram em conta “o especial valor das atenuantes provadas”.

No final do julgamento, foi-lhe devolvido o passaporte que tinha sido apreendido quando começou, não que fosse muito necessário, em toda a sua vida não teve mais viagens ao estrangeiro do que uma ida a Tui e outra a Badajoz. “Nunca tive dinheiro para essas coisas.”

A sua sentença, de 6 de Junho de 1978, atesta que saiu em liberdade, tendo sido condenado à suspensão de direitos políticos por três anos. Uma pena das mais leves. Pôde continuar com a sua vida: “Tenho o meu cadastro limpo. Não tenho nada.”

Fernando Colaço, 78 anos, ex-agente da PIDE, “durante três anos e três meses”, dos seus 23 aos 26 anos, contabilista reformado, tem-se andado a sentir alquebrado.

No ano passado, foi atropelado por um homem que seguia de carro, andava ele de bicicleta perto da casa dos pais na aldeia. Não há testemunhas, e o homem que o atropelou insiste que a culpa não foi sua, que foi incúria do velho ciclista.

Anda a contenda a ser dirimida. Tem pouca esperança num desfecho a seu favor. Mas preferiu ser ele a sofrer. “Eu prefiro ser atropelado do que atropelar e ficar com esse peso. Quero morrer de consciência tranquila. E estou”, repete. Talvez com a mesma frequência com que lhe saem os desabafos “mal de mim ter passado por lá” ou “o meu mal foi ter passado por lá”.

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