Cantar em português
Nós somos a nossa língua e, mais do que falá-la, somos falados por ela.
Nada de “rebuscado”, nada de “artificioso”. Uma arte que se despoje do “artístico”. “A melodia mais simples”, tão “sem arte” que tenha “o indescritível poder de provocar um efeito irresistível em cada alma sensível” — eis o ideal de românticos como E. T. A. Hoffmann. Um ideal onde ecoam as ideias de Rousseau. A empatia como princípio e finalidade de toda a comunicação musical.
Se a canção é de amor, não há que dizê-lo. Há que senti-lo e exprimi-lo na voz e no gesto — mais eloquentes que as palavras. O poeta e o músico são fingidores, e não raro fingem “a dor que deveras sentem” (Fernando Pessoa).
No poema, porém, as palavras tornam-se música. Ou não haverá poema. Só há poema quando a significação das palavras é transcendida e se franqueia o limiar do indizível. Daí a saudade da unidade ancestral de poesia e música que se perdeu com a institucionalização da dicotomia entre oralidade e escrita.
Na sua hipótese sobre a origem das línguas, Rousseau considerava a escrita uma doença da linguagem, ao separar a comunicação verbal da sua atualidade ou presença como desempenho sonoro e gestual. A escrita suprimia a música da língua, privava a língua da sua música, subtraía à fala a sua melodia e, com isso, desprovia a interação humana do que lhe era mais essencial. Pois a língua era originária e naturalmente música — e ainda não palavra articulada. A civilização separara o que a natureza unia.
Mais: a civilização corrompera a música, na medida em que esta cedera à sua colonização pela linguagem verbal. Deixara-se capturar pelas convenções, em vez de se manter fiel à sua natureza de linguagem não-representacional...
Contudo, para Rousseau, nem todas as línguas eram igualmente musicais. Nas meridionais, que ele considerava as mais próximas da paixão pura, todo o sentido estava nas acentuações e inflexões, isto é, na “música da língua”. Eram essencialmente expressão: línguas do amor e do desejo. Pelo contrário, nas línguas nórdicas, mais próximas da necessidade pura, todo o sentido estava na significação e nas convenções. Eram essencialmente desempenho racional: línguas de trabalho, que recalcavam as paixões e o desejo, e onde a voz da natureza emudecia.
Abstraindo da aparente atualidade desta tese à luz das precompreensões que inquinam as relações Norte-Sul, sublinhe-se que também Gadamer, entre outros, concebe a língua como experiência do mundo na qual a forma linguística e o conteúdo transmitido são indestrinçáveis. Nós somos a nossa língua e, mais do que falá-la, somos falados por ela: a diversidade cultural é inseparável da diversidade linguística. Simultaneamente, a comunidade da língua gera proximidade e partilha na experiência do mundo, a despeito de diferentes pertenças culturais. Na diversidade da lusofonia, predominante no hemisfério sul, “a nossa pátria é a língua portuguesa”.
Donde, nada de mais contrário à afirmação da diversidade cultural do que promover o monolinguismo como receita pretensamente universal para o entendimento entre os povos. Nada de mais incongruente no diálogo intercultural do que abdicar da própria língua nativa para se fazer entender... cantando.
Não se trata de apoucar o papel da tradução. Traduzir para a língua nativa o texto de uma canção ou qualquer peça cantada é um ato legítimo e desejável de apropriação cultural, que recria o todo e o faz reentrar na comunicação musical — rompendo, por sua vez, fronteiras. Cantada em sueco, A Flauta Mágica não correu mundo no filme de Ingmar Bergman?
Trágico para qualquer cultura é o caminho inverso. “Exportamos” canções na nossa língua para todo o mundo, mas, por exemplo, em matéria de canto lírico ainda hoje sofremos as consequências da pesada herança do século XIX. O monolinguismo prevalecia a tal ponto no primeiro teatro do Estado (São Carlos) que até A Serrana de Alfredo Keil teve de ser cantada em italiano (1899). Era suposto inaugurar um projeto de “ópera nacional”, mas nem assim podia ser cantada na versão original portuguesa... Essa estrutura de longa duração persiste: nunca, como agora, tivemos tantos e tão excelentes cantores líricos, mas o português continua banido dos palcos de ópera.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico