O Papa chegou e “foi uma alegria que entrou dentro da gente”
Da mãe que subiu ao papamóvel com o filho Gabriel, que sofre de paralisia cerebral, à profunda comoção de Conceição Dias, o primeiro dia do Papa Francisco em Fátima deixou um rasto de emoção.
O Papa pontapeou nesta sexta-feira o protocolo para oferecer aos milhares de fiéis que se aglomeraram para o ver em Fátima, um último presente, naquele que foi o primeiro de uma visita de dois dias: desceu do papamóvel e percorreu o recinto do santuário a pé, distribuindo sorrisos e apertos de mão. Revigorado, Francisco aceitou as cartas que lhe iam entregando em mãos, e, num português algo hesitante, dedicou-se a falar dos “desterrados” e “excluídos” da sociedade contemporânea.
“Sobre cada um dos deserdados e infelizes a quem roubaram o presente, dos excluídos e abandonados a quem negam o futuro, dos órfãos e injustiçados a quem não se permite ter um passado, desça a bênção de Deus encarnado em Jesus Cristo”, proclamou. E, sempre com palavras simples, voltou a enfatizar a necessidade de misericórdia em vez de julgamento, antes de deixar um apelo claro: "Ponhamos de lado qualquer forma de medo ou temor porque não se coadunam com quem é amado".
Francisco referiu-se ainda "à força revolucionária da ternura e do carinho" que considerou atributos dos fortes “que não precisam de humilhar nem de maltratar os outros para se sentirem importantes". E, num discurso com várias referências à "Virgem Mãe", deixou outra frase que ficará para a história desta visita: "Maria não é uma santinha a quem se recorre para obter favores a baixo custo".
Nesta que foi a sua segunda aparição pública, Francisco apareceu já sem o ar cansado e a ligeira curvatura de costas com que vinha quando, ao final da tarde, chegou ao santuário, vindo directamente do aeroporto. Chegou como “bispo vestido de branco”, disposto a percorrer todas as rotas: “Derrubaremos todos os muros e venceremos todas as fronteiras, saindo em direcção a todas as periferias, aí revelando a justiça e a paz de Deus”, propusera-se, mal chegou à Capelinha das Aparições.
Mas, já antes de estas palavras serem ditas pelo Papa, havia uma outra, a dançar nos lábios de muitos dos que aguardaram para o ver: “milagre”. Estava na boca da brasileira Daniela da Costa, que confessou a esperança de um "milagre" que faça com que o filho Gabriel, de 6 anos e que tem paralisia cerebral, possa andar. Estava nas lágrimas da argentina Stella Guerrini, que depois de ver Francisco passar a poucos metros de distância, confessou ter atravessado o oceano, há quinze anos, para cumprir uma promessa em Fátima e que nunca mais regressou a casa. E na memória de Adelinda Teixeira, de 72 anos, que garantiu que "há muitos anos houve um milagre na família".
Deu benção a menino de cadeira-de-rodas
Mas, na tarde desta sexta-feira, Gabriel acabou por ser o centro de todas as atenções, quando Francisco, ao sair do santuário, mandou parar o papamóvel e chamou Daniela e os dois filhos, Gabriel e Maria Luísa, de 4 anos, para junto dele. Ao longe só ficou o pai das crianças, Jorge da Costa, de Amarante, e que no dia anterior tivera um problema que o obrigou a ir ao hospital de Penafiel. "A médica não o queria liberar, mas eu expliquei que precisávamos de vir a Fátima, que vínhamos de propósito de França para pedir a bênção do Papa", conta Daniela.
A família de emigrantes foi colocada pela GNR num ponto onde Francisco os veria de certeza, com o menino à frente, na sua cadeira-de-rodas, e, nas mãos da mãe, o pano pintado em que se pedia a bênção do Papa. Francisco fez o sinal da cruz em direcção à criança a partir da viatura ao entrar no santuário e de novo, beijando-o, à saída. Neste sábado, Gabriel estará entre os cerca de 600 doentes que serão abençoados pelo Papa, pelo que terá o seu terceiro momento com Francisco. "Espero um milagre", dizia a sorridente Daniela.
Adelina Teixeira não espera milagres, até porque já conheceu um, garante. Perita em encontrar um lugar que lhe permita ver o Papa de perto - fê-lo nesta sexta-feira e tinha-o feito por duas vezes com João Paulo II - diz que a sua devoção a Fátima vem de "um milagre que aconteceu há muitos anos", a uma tia-avó que, como ela, era de Alfândega da Fé. "Durante 30 anos ela sofreu de incontinência, depois de um parto. Pediu a todos [os santos], mas especialmente a Nossa Senhora, e ficou curada", conta a mulher.
A emoção que se sentia entre aqueles que aguardaram horas num pedaço qualquer de cimento, para ver passar o Papa, levou lágrimas a muitos olhos, e bem abundantes aos de Stella. "É o meu Papa", dissera a argentina ao PÚBLICO momentos antes de Francisco chegar. Depois de o ver passar, com as lágrimas a correr livremente, contou mais. "Estou muito emocionada. Eu vim a Fátima há quinze anos cumprir uma promessa, porque estava muito doente. Prometi que quando ficasse bem, vinha a Fátima. Vim com uma amiga filha de portugueses e fiquei em Portugal", diz. Hoje vive em Fão, Esposende, e nesta sexta-feira, os seus dois mundos encontraram-se. De regresso a Fátima, foi lá que viu o argentino Francisco. Havia um sorriso por baixo das lágrimas.
Um imenso piquenique
Mal o Papa, visivelmente cansado, abandonou o recinto, sentiu-se uma deslocação da massa humana que enchia o recinto do santuário. Mas foram mais os que ficaram para a bênção das velas, na Capelinha das Aparições, marcada para as 21h30, do que os que saíram. A maioria tratou logo de abrir os tupperwares, iniciando uma espécie de piquenique colectivo com cheiro a panados, presunto, rissóis... “Vamos ficar para a noite. Aliás, os meus filhos vão ficar cá a guardar lugar para amanhã", conta Maria João, interrompendo a degustação dos seus panados. Veio a Fátima com os dois filhos, de 20 e 25 anos, e espera neste sábado ver o Papa mais de perto. “Pareceu-me cansado, mas gostava muito de o ver mais de perto”, diz, entre elogios ao "peregrino da esperança e da paz" que, ainda por cima, "traz a canonização dos pastorinhos na bagagem".
Ao longo da tarde, enquanto aguardavam a chegada do Papa, centenas, milhares de vozes desafinadas, desencontradas, roucas, cantavam: “Cantemos, alegres, a uma só voz, Francisco e Jacinta rogai por nós”. E, à medida que os ecrãs mostravam a aproximação de Francisco, primeiro no helicóptero depois no papamóvel, da massa de fiéis soltavam-se frases, atropelando-se, quase sem precisar de perguntas. “É uma emoção muito forte, muito forte, muito forte. Só quem tem fé perceberá o que isto é”, clama Fátima Santos, que veio de Figueiró dos Vinhos, e contava mais de dez horas sem descolar do gradeamento que os separa do altar onde neste sábado será celebrada a missa. “É um momento único na minha vida. Decerto já não viverei outro assim”.
Chora Fátima Santos e com ela as mulheres que a acompanham. Uns passos mais ao longo do gradeamento e eis Lucinda Pacheco, 72 anos, mãe de cinco filhos e 28 netos. “Já vim a Fátima a pé 11 vezes. Quando cá chego, depois do frio, do calor e da chuva, é como se chegasse ao fim de uma gestação de um filho que ofereço a Nossa Senhora de Fátima. E passam-me logo todas as dores”, garante. Neste ano veio de carro, a “este pedacinho de Céu”, porque está a recuperar de uma ciática. Mas veio. Apesar de sentir que Francisco, sendo “o Papa certo para este mundo descristianizado em que estamos”, tem sido abusivamente interpretado pelos jornalistas. “Ele nunca ultrapassou a palavra de Cristo que disse: ‘Ninguém desuna o que Deus uniu’. Isto de haver divorciados a receber a comunhão não me parece condizente com o que diz e pensa o Papa. São coisas de quem acha que pode ser mais Papa que o Papa”, condena.
E ficam assim arrumadas, na cabeça de Lucinda Pacheco, eventuais dissonâncias com o pensamento do 266.º Papa da Igreja Católica. Já na de António Madeira, de 56 anos, há contradições que se digladiam. “Se Deus descesse aqui, destruiria isto tudo. Todo este comércio e negócio, esta opulência...”, observa, olhando à volta, desiludido. Esteve quase para não vir. Mas depois pensou que se o Papa veio, também ele poderia fazer a sua estreia em Fátima. “Vim porque este Papa aplica as ideias que tenho. Espero que ele consiga mudar aquilo que, muitas vezes, me desilude tanto na Igreja”, apela, sem poupar nos elogios ao “Papa sem medo”.
Papa sem medo, homem simples e de coragem, alguém que “sabe encostar-se ao povo”, afectuoso, foram os epítetos mais ouvidos entre quem amargou horas e horas de espera para o ver chegar e rezar aos pés da Virgem Maria, no local onde há 100 anos ocorreram, segundo a Igreja, as aparições. Neste sábado, Francisco reza a missa, que inclui a canonização dos irmãos Francisco e Jacinta, e fez questão de ser ele a confortar os doentes. Neste primeiro dia, apesar do cansaço no rosto e da brevidade do seu banho de multidão, ninguém pareceu dar por perdida a viagem. “Ele chegou”, como resumiu Maria da Conceição Dias, vinda de Felgueiras, “e foi uma alegria que entrou dentro da gente”.