Perseguida no Iraque e recusada na Bélgica, família Wissam aposta tudo em Portugal
Casal com quatro crianças saiu do Iraque em Junho de 2015 quando o filho de nove anos foi ameaçado de morte por uma milícia. Foi o início do pesadelo que não terminou. Tribunal português vai decidir se Portugal deve dar protecção depois de a Bélgica ter duvidado dos factos apresentados pela família.
Hossain Wissam mostra o sorriso de uma infância aparentemente intacta – de quem vai à escola e brinca na rua com os amigos. Há muito tempo que não faz nem uma coisa nem outra. Não vai à escola desde que chegou a Portugal, em Janeiro deste ano, vindo da Bélgica, onde a família viu recusado o pedido de protecção internacional. E a última vez que brincou na rua, junto à casa dos avós em Bagdad, em Junho de 2015, foi raptado pelas milícias ligadas ao líder xiita Moqtada a-Sadr, que mantém uma ascendência no Governo do Iraque.
Foi o prenúncio de um pesadelo que perdura. Hossain tem 11 anos, e tinha nove quando foi sequestrado pelas milícias que raptam quem pode pagar resgates. E do pai, Wissam Alturfe, sabiam que era um empresário bem-sucedido do sector da construção.
Hossain foi levado com uma venda nos olhos para sítio incerto e amarrado a uma cadeira. Foi agredido e chorou ao ouvir as ameaças que os sequestradores proferiam pelo telefone aos pais exigindo o resgate. Puseram-no a falar com o pai para este saber que o tinham com eles. Enquanto falava, Hossain chorava porque o agrediam, e isso afligiu ainda mais os pais. Lembra-se de lhe dizerem que seria degolado se a família não entregasse o dinheiro. Os pais pagaram no dia seguinte e todos fugiram de noite, ajudados pelo contacto de uma rede ligada a passadores de imigrantes e refugiados.
O casal e os quatro filhos (na altura entre os três meses e os nove anos) atravessaram a Turquia e andaram nos meses seguintes entre a ilha grega de Chios (onde desembarcaram), a capital Atenas, de onde foram para a Macedónia, depois a Sérvia e a Hungria. Os Estados-membros da União Europeia (UE) estavam prestes a estabelecer o acordo (de Outono) para a recolocação, nos seus territórios, de 160 mil refugiados. Na altura, entre as nacionalidades elegíveis para essa recolocação (que garante uma autorização provisória de residência nos países que acolhem), estavam sírios, iraquianos e eritreus.
Mas como a chegada à Grécia da família de Wissam foi anterior a esse acordo, o que podiam fazer era um pedido de asilo espontâneo, que na Bélgica viria mais tarde a ser recusado. Antes de chegarem à Bélgica, a partir da Grécia, seguiram a pé ou em autocarros, ao lado de pessoas, como eles, vulneráveis a ataques, ameaças e a contratos ilegais para a travessia de fronteiras.
“Venderam-nos à polícia”
A família de Wissam Alturfe atravessou campos e florestas, em noites muito frias, dormiu em descampados junto a fronteiras, antes de poder transpô-las. Caminharam durante dias seguidos, entregues a passadores que momentaneamente os deixavam nas mãos de polícias ou os entregavam a outros contrabandistas ou traficantes.
Wissam e a mulher, Marwa perderam a conta ao número de vezes que se sentiram enganados. Lembram-se de uma em particular: quando os passadores os deixaram junto à vedação dos mais de 170 quilómetros da fronteira entre a Sérvia e a Hungria, depois de lhes terem prometido a passagem. Viriam a passar, mas apenas duas horas depois de terem sido deixados sozinhos e roubados por um gangue cúmplice da polícia.
“Venderam-nos à polícia. A verdade é essa. Os contrabandistas fazem negócio com a polícia que faz negócio com os gangues”, conta Wissam em árabe com a ajuda de um amigo sírio que traduz para inglês. “Os gangues assaltam as pessoas e tiram-lhes tudo o que trazem, quando a polícia não está presente. É também quando sabem que a polícia se ausenta que os traficantes nos deixam passar, cortando com alicates a vedação do muro. Trabalham juntos e todos lucram”, acrescenta.
Wissam viu pessoas, em situações parecidas à da sua família, darem tudo o que traziam, na esperança de salvarem os filhos, de rapto ou recrutamento para um qualquer gangue. Em cada etapa, foram pagando aos milhares ou às centenas de euros, consoante a distância do percurso ou o perigo envolvido. Davam dinheiro e entregavam ouro, relógios ou jóias. Por vezes, até os passaportes ou outros documentos.
Passaram para a Alemanha e depois para a Bélgica. Aí foram apanhados pela polícia e levados para um campo de refugiados onde permaneceram mais de um mês. Uma associação ligada à Igreja levou-os depois para um apartamento. Os filhos puderam ir à escola, aprenderam a falar flamengo. Os pais mostram folhas da escola com as notas da turma de Mariam que comprovam que ela foi a melhor aluna do grupo, com 95% de média em todas as disciplinas no 3.º ano da primária.
Essa ajuda e oportunidade, pelas quais estão gratos, não apagam as más memórias do campo onde viviam sem condições nem os insultos que ouviram nas ruas de Bruxelas por serem quem são. “Não podemos aceitar isso”, diz Marwa. “Há muitos refugiados na Bélgica e a reacção negativa é mais forte do que aqui em Portugal, onde nos sentimos bem aceites.”
Mostram fotografias tiradas com os telemóveis e impressas na Bélgica para provar uma história, a sua, em que os serviços de asilo belgas não acreditaram: imagens de Ali Wissam a dormir sobre o chão de terra enrolado num casaco do pai, ou de um colete salva-vidas enrolado em Mariam no barco que lhes ia levando a vida; ou a fotografia de Ali, incrédulo, às cavalitas do pai, a assistir a uma cena filmada que correu mundo e que mostrava a polícia a bater nos migrantes na fronteira da Hungria com a Sérvia e uma jornalista húngara a ajudar a polícia dando-lhes pontapés.
Estiveram sempre juntos, como continuam aqui, na varanda da casa, cedida pela Santa Casa da Misericórdia (que os acolhe agora, na Amadora) com a ajuda do Conselho Português para os Refugiados (CPR), instituição que os acolheu nos primeiros meses, na Bobadela. Tudo estaria bem, dizem, se os filhos fossem à escola, se a família tivesse documentos. A casa é muito boa, dizem. Estão em segurança e valorizam-no. Mas não sabem por quanto tempo.
Ali e Fatima estão ainda em idade pré-escolar. Para o caso de Hossain e Mariam, a inscrição na escola implicava a perda de um ano escolar e a mãe opôs-se, informa o CPR. A família tentou tratar sozinha da inscrição no Agrupamento de Escolas da Bobadela. O CPR considerou que “não havia necessidade de a assistente social os acompanhar, já que a mãe das crianças fala um pouco de inglês”, segundo disse a assessora de imprensa. O resultado acabou por não ser o desejado nem o esperado.
Na secretaria, a mãe insistiu que a criança devia ficar no ano correspondente ao da sua idade, apesar de só integrar a turma em Janeiro, quando chegou a Portugal. A escola não teve o mesmo entendimento, diz o CPR. O mesmo aconteceu com Hossain, agora com 11 anos. Assim, porque ninguém cedeu, as duas crianças não frequentaram a escola na Bobabela e continuam agora sem estar inscritos na Amadora, onde vivem há um mês.
Perseguidos pelo extremismo religioso
Neste apartamento, os dois irmãos rapazes brincam com pistolas de água e riem. Os pais sorriem com a mesma facilidade com que se comovem. Wissam contém as lágrimas que Marwa não tem como esconder quando se lembram da sentença decretada pelo serviço de estrangeiros da Bélgica, de recusa do estatuto de protecção internacional e de refugiado para um e para outro. Nos documentos oficiais, não é apresentado um motivo concreto para a recusa mas estão expressas as dúvidas e a desconfiança das autoridades belgas relativamente a algumas declarações da família, aos documentos que apresentaram e ainda quanto à situação de insegurança em Bagdad.
No Iraque, correm perigo de vida por serem alvo de perseguição religiosa, garante Wissam. Ele é xiita, a mulher Marwa é sunita, e a sua união é repudiada pela temida milícia extremista – Exército de al-Mahdi – de Moqtada al-Sadr. “A minha mulher foi ameaçada de morte e a mim disseram-me que me partiriam o coração matando os meus filhos, por serem fruto deste casamento", diz Wissam.
Em 2015, o casal, com uma bebé de três meses, um filho de três anos, uma filha de sete e Hossain, de nove anos, meteu-se num barco, como quem é empurrado para o abismo. Nada mais restava e conheciam os possíveis perigos que viriam a confirmar-se quando o barco não aguentou o peso dos 60 migrantes que tinham embarcado. Seriam engolidos pelo mar se a embarcação não fosse, nesse dia, salva pela Guarda Costeira da Grécia.
Quase dois anos após esse dia e cinco meses depois de chegarem a Portugal, Hossain sorri e Ali, agora com quase cinco anos, solta gargalhadas dizendo que foram muito fortes: “Uns valentes.”
Os dois têm o mesmo sorriso que mostram nas fotografias tipo-passe juntas ao processo de apresentação do pedido de protecção internacional entregue no Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), em 9 de Janeiro de 2017, quando chegaram de autocarro a Portugal.
Em declarações prestadas no SEF, a 9 de Janeiro, o casal justificou ter escolhido Portugal porque tinha ouvido dizer que era um país seguro, onde as pessoas eram acolhedoras e onde não havia discriminação como a que sentiram na Bélgica.
Mas o SEF, em Portugal, notificou recentemente a família da decisão de transferência para a Bélgica e da responsabilidade deste país em analisar o pedido de protecção internacional.
A decisão é tomada com base no Regulamento de Dublin (2003), cuja “ideia subjacente é a de que apenas um Estado pode analisar o pedido e que o país competente é o que tem um papel mais relevante”, explica Mónica Farinha, coordenadora do departamento jurídico do CPR. A Bélgica foi o primeiro país onde o pedido foi analisado. E recusado.
O Regulamento de Dublin prevê também a possibilidade de os requerentes contestarem essa decisão – o que Marwa e Wissam Alturfe estão a fazer. A advogada nomeada para o apoio judiciário a esta família, concedido pela Segurança Social através do CPR, Natália Gonçalves, realça que este caso, como muitos outros, não se restringe à questão jurídica. “O tribunal português vai ter de fazer uma análise dos documentos” à luz “não apenas do Regulamento de Dublin e de uma mera aplicação da lei”, mas à luz de princípios e valores, defende. “Trata-se de um casal com quatro filhos pequenos e esta é uma questão de direitos humanos.”
Além disso, o tribunal “terá de garantir a tradução dos documentos belgas que consubstanciam a versão dos factos desta família e que são a base da sua defesa na contestação da transferência para a Bélgica”, considera Natália Gonçalves.
A família Wassim não quer reviver a hostilidade imprevista em Bruxelas, uma cidade atingida pelo terrorismo, e rejeita a ideia de uma transferência para um país que lhes recusou o asilo e onde teriam de contestar em tribunal essa negação do asilo.
“Quando recusa os pedidos, o Governo belga deixa os requerentes na rua. Foi o que nos aconteceu”, diz Wissam Alturfe. “Ninguém podia dar-nos casa ou alugar-nos um apartamento, ninguém podia dar-nos comida ou qualquer apoio em dinheiro. Não pudemos dar entrada num hotel, porque não tínhamos o papel dos serviços de estrangeiros. Deram-nos dez dias para abandonar o país.”
As autoridades da Bélgica dizem agora que a família pode voltar e retomar o processo administrativo que ficou parado por não contestarem na altura a resposta negativa dos serviços de asilo. E essa é a decisão do SEF. “É o tribunal administrativo em Portugal que vai determinar se confirma a decisão do SEF”, sublinha Natália Gonçalves.
Nos seis papéis entregues a cada um deles, em Janeiro, quando chegaram, Wissam, Marwa, Hossain, Mariam, Ali e Fatima estão registados como cidadãos “indocumentados”. Cada uma dessas seis folhas de papel é válida por dois meses. Foi renovada a 8 de Março. A validade termina em 8 de Maio, amanhã, segunda-feira, quando devem dirigir-se de novo ao SEF, sem saber o que os espera. Apenas sabendo que uma acção de contestação da transferência para a Bélgica estava prestes a ser interposta, na passada sexta-feira, no Tribunal Administrativo de Lisboa.