Em Lisboa, os adeptos do Atlético Mineiro celebram algo mais do que o futebol
Em Portugal, os jogos do Atlético dão demasiado tarde para gritar "golo" em casa. Um "consulado" reúne os adeptos em Lisboa. Na Bica, sempre que o Galo joga, o futebol é às vezes apenas um pretexto para reunir a "família".
É uma noite amena. Quarta-feira, dia 26 de Abril. No topo da Rua da Bica de Duarte Belo, uma das mais emblemáticas (e íngremes) da cidade de Lisboa, com o seu ascensor amarelo, grupos de pessoas conversam de copo na mão à porta dos bares. Estudantes de todo o país, turistas de outras paragens e lisboetas da velha guarda compõem uma imagem que há muitos anos se tornou habitual. Mas em frente ao número 62, há um grupo que se distingue de todos os outros pelas camisolas, cachecóis e bandeiras pretas e brancas que usam. Denominador comum: são adeptos do Atlético Mineiro, clube do estado de Minas Gerais que milita no principal escalão do futebol brasileiro. São 23h15, e dentro de 15 minutos o Atlético vai jogar contra o Libertad, do Paraguai, quarta partida a contar para a fase de grupos da Taça dos Libertadores.
Os adeptos aguardam o início do jogo frente a um ecrã de televisão na Petiscaria do Elevador, o café e restaurante brasileiro que alberga o PortuGalo desta noite, um "consulado" que procura reunir os adeptos do Atlético Mineio que estejam por Lisboa, a viver ou só de passagem, para verem os jogos juntos, como explica o seu presidente, Thiago Lisboa. Nesta noite, o grupo é maioritariamente masculino. Mas aos sábados e domingos, há mais mulheres e crianças a juntarem-se à festa.
“Nós temos três funções principais. A primeira é o jogo do Galo [a mascote do clube]. Estamos aqui hoje todos reunidos em volta do Galo. Segundo: é a integração daquelas pessoas, dos 'atleticanos' que vêm de fora e estão aqui de passagem. O terceiro ponto é a integração com a comunidade local”, diz Thiago. É que este não é um clube só para brasileiros. Os portugueses, e não só, também costumam parar para ver os jogos do Atlético. E pode ser o princípio de uma bela amizade.
No entanto, o PortuGalo também é um assunto sério. Tem uma comissão de cinco pessoas que organizam o visionamento dos jogos, sendo que pelo menos dois têm de estar presentes para garantir que há transmissão do encontro, para convocar os adeptos através das redes sociais, falar com os responsáveis do local e receber as pessoas. A maior dificuldade que o "consulado" enfrenta é a diferença horária entre Portugal e Brasil. Nem sempre é possível organizar encontros devido às horas tardias em que os jogos são transmitidos deste lado do Atlântico. Mas a meta, diz Thiago, é fazer pelo menos dois encontros por mês.
Um grupo para quem não pode gritar 'golo' às 4h da manhã
Entretanto, na Bica, o jogo já começou. Thiago diz que hoje estão menos pessoas em comparação com os encontros que acontecem mais cedo, mas as que estão cá hoje conseguem encher a Petiscaria, um dos espaços onde o "consulado" se reúne. Quem passa por este local em dia de jogo facilmente cai no erro de pensar que estamos numa casa do Atlético Mineiro, com o restaurante integralmente decorado a preto e branco. Mas é só naquela noite.
Thiago, que está em Portugal há 23 anos, fundou o PortuGalo em Dezembro de 2015, depois de a referida diferença horária se ter transformado num problema sério para quem tentava ver o jogo em casa sem acordar o resto da família.
“Foi quando o Atlético foi campeão da Libertadores, em 2013. Com o fuso horário, eram para aí umas 4h da amanhã. Eu gritei em casa quando o Victor defendeu um penalti depois dos 90 minutos, no jogo contra o Tijuana. E acordei toda a gente em casa! Nesse dia, eu disse: ‘Não, não pode ser’. A mulher estava ‘ahhh!’, com o meu filho pequeno, com dois anos de idade. Eu disse: ‘Não, eu tenho que arranjar aqui alguns outros malucos’. Foi uma necessidade que eu tive”, conta.
Thiago criou então uma página de Facebook e grupo de WhatsApp para reunir adeptos em Lisboa para combinarem os encontros. Mas o que foi fácil fazer na internet complicou-se depois: onde reunir aquela gente fora das redes sociais? Não havia muitos sítios dispostos a receber o "consulado". A Petiscaria é agora o "ponto número um", diz Thiago, que olha à sua volta, para os adeptos que dividem as atenções entre a bola e os pratos que têm à frente: “A comida é brasileira…. Hmmm! Juro, é uma coisa assim, é de loucos, mesmo”.
"Aqui a família que é dona do Petiscaria é do Rio de Janeiro, são da concorrência, não são 'atleticanos'. E é engraçado que eles fazem questão de todas as vezes que nós vimos cá ver os jogos de fazer o tropeiro [petisco típico de Minas Gerais] para o pessoal que aqui gosta de consumir o feijão tropeiro”, conta Tiago.
Se não há golos, há fotografias
O jogo chega ao intervalo e as duas equipas estão empatadas. Apesar disso, o Atlético Mineiro teve algumas oportunidades para finalizar. “Olhe, eu acho que está bom. Nós não estamos, pelo menos, a levar nenhum susto. Está a correr tudo bem, mas não estamos conseguindo ainda chegar lá”, considera Thiago Lisboa. De câmara fotográfica na mão, o presidente do PortuGalo vai lá fora, porque é hora de reunir as pessoas e tirar uma fotografia para depois partilhar das nas redes sociais. O que fica fora da fotografia: as músicas do Galo que se entoam na Bica. “Olhe aí, elas andam todas aí cantando. Uma festa, uma alegria”, chama a atenção o presidente do consulado.
A dada altura, Thiago aponta para alguém que diz ser “uma pessoa que fala bem do hino do Atlético”, que começa com os versos: “Nós somos do Clube Atlético Mineiro/ Jogamos com muita raça e amor”.
“Porque a raça é a vontade, é o que faz com que a gente acredite nos nossos sonhos, nos nossos ideais. E o amor é a essência de tudo. O que é feito com amor tem mais força e tem mais possibilidade de acontecer”, explica um emocionado Marcus Vinicius, mais conhecido por “Marvin”.
E se Thiago disse que Marvin falava bem do hino, será que consegue cantá-lo de uma ponta a outra? “Nós somos do Clube Atlético Mineiro…”, começa. É logo interrompido por Thiago: “Galera! Galera! Ele quer ouvir o hino! Ele não entendeu muito o hino!”. Alguém vocifera alto e em bom som: “Nunca ouviu o hino?! O hino! O hino!”. Logo depois, a multidão cá fora começa a cantar em uníssono o hino do Atlético de Mineiro: “Nós somos do Clube Atlético Mineiro/ Jogamos com muita raça e amor/ Vibramos com alegria nas vitórias/ Clube Atlético Mineiro, Galo forte vingador/ Vencer, vencer, vencer/ Este é o nosso ideal”. Bandeiras e cachecóis no ar, este é um momento de imensa felicidade para estes adeptos. Turistas param para tentar perceber a razão de tanta alegria. Os membros do PortuGalo chegam ao fim do hino, mas isso não lhes impede de o repetir.
Uma família feita de muitas famílias
O PortuGalo não é o único "consulado" do Atlético. Existem 51 pelo mundo fora: 36 no Brasil e 15 além-fronteiras. Este de Lisboa é o maior dos europeus e foi oficializado pelo próprio Atlético, que retweeta as fotos que os "consulados" publicam. Todos estão unidos por uma casa-mãe, que se chama “Consulados do Galo”.
Marvin, que está em Portugal desde Janeiro, já sabia da existência dos "consulados" antes de sair do Brasil: “E mais do que encontrar uma torcida, encontrei uma família, que me acolheu e fazemos parte dela com muita raça e com muito orgulho como o nosso hino”.
Não é o único a realçar esse sentimento de família. É algo que parece ser transversal a todos os presentes neste canto da Rua da Bica e que leva estes encontros além dos jogos. “É muito mais que o futebol. Muito mais que o futebol. Você poder compartilhar momentos, emoções. É uma forma também de você lembrar da sua pátria, da sua cultura. Você está na mesma sintonia, mesma língua. É um elo muito forte. Uma coisa mesmo inexplicável”, afirma Alexandre Moraleida, que confessa sentir “uma família” quando está nos encontros do PortuGalo.
Já se joga a segunda parte do encontro, mas Tiago Duarte, que soube do PortuGalo através de um amigo, continua cá fora. A conserva é tão ou mais importante do que a bola. “Na semana passada [jogo contra a União Recreativa], nem vi o jogo praticamente. Eu estava tão envolvido com as pessoas que eu nem vi o jogo praticamente. Estava conversando com as pessoas, o jogo foi fluindo. Isso é importantíssimo! Porque as pessoas são do nosso lado, da nossa terra”, diz. Com um ambiente destes, acaba por dizer que o futebol “é o complemento”.
“A gente sabe como é que a gente está aqui. Com as dificuldades que agente passa aqui, a gente está aqui torcendo por um team (equipa) que a gente gosta mesmo! A gente alimenta nisso!”, explica.
A casa de Tiago encontra-se por cima da Petiscaria. Na varanda está pendurada uma bandeira do Atlético Mineiro. “É um ponto de referência aqui da rua da Bica. Quem puder vir aqui e passar aqui na rua da Bica, vê a bandeira e pode vir cá. A gente acolhe todo o mundo”, aponta.
Tiago está há 15 anos em Portugal, país que não planeia deixar tão cedo: “Não quero sair daqui mais, porque gosto mais de Portugal. Portugal é muito bom. Nem quero voltar para o Brasil mais. Adoro aqui”.
Como presidente do PortuGalo, Thiago Lisboa quer manter o “ambiente familiar”. “A ideia é essa: trazer a família, as pessoas se reunirem, falar do que é que se passa, virar um grupo de ajuda. Tem pessoas que se conhecem daqui e criam amizades”, diz, enquanto aponta para vários casais e pais e filhos. Thiago refere o espírito de entreajuda que existe no grupo, sendo que é normal alguém pedir a outra pessoa permissão para dormir em sua casa.
Uma pequena retrospectiva
Cerca de ano e meio após fundar o PortuGalo, Thiago Lisboa confessa que esperava ter encontrado “mais pessoas”, mas houve algo que o surpreendeu: “Nunca pensava que fosse ganhar esta dimensão em tão pouco espaço de tempo. Nós passámos de sete pessoas no nosso primeiro encontro este ano, já vamos no nosso sexto encontro oficial e estamos com uma média de quase 30 pessoas por encontro. É muita coisa…”.
Entre todas as pessoas que já estiveram nos encontros, Thiago já viu médicos, canalizadores, dentistas, entre outros. “É um clube de massas”, considera.
Aos 71 minutos de jogo, Robinho faz o primeiro golo. A multidão dentro do Petiscaria explode de alegria. Primeiro grita golo e depois começa a cantar o hino. É uma ideia muito repetida entre estes adeptos: “O adepto do Atlético Mineiro sofre muito, mas depois corre bem”.
Alexandre Moraleida, membro da direcção do "consulado", reconhece que "a crise dos anos de 2010 e 2011" afastou alguns brasileiros de Portugal. “Isso que está acontecendo aqui hoje, em 2017, se fosse em 2010 seriam pelo menos quatro vezes mais pessoas. Agora estou um bocado surpreendido também positivamente com a cumplicidade aqui hoje”, confessa, dizendo ainda que o que importa “não é quantidade, é qualidade”.
O vizinho da Petiscaria, Tiago Duarte, não ficou surpreendido com a expressão que o Atlético de Mineiro tem fora do Brasil. “Eu sabia que o nosso team é um grande team, e é no mundo inteiro. Mas eu acho que isso que a gente faz é único. É único porque não tem ninguém que faz isso no mundo inteiro: um consulado de um clube. Eu acho muito importante isso. E isso envolve amizade. Tenho aqui alguém que chegou do Brasil, está de turismo, que vai levar isso para a vida inteira”, conta, com um sorriso nos lábios e a olhar à sua volta.
Encontros Europeus
Para promover o contacto entre os vários consulados existentes na Europa, realizou-se, em 2016, um encontro em que esteve o Consulado Galo Dublin, o Coq Fou (Paris), o MadruGalo Barcelona, o Galondres (Londres) e o PortuGalo.
“Juntámos toda a gente e fizemos em Barcelona um encontro. Alugámos uma sala num hotel, uma cave [risos], uma torneira de imperial, cinco barris de cerveja. Fizeram um tropeiro, arranjaram lá uma brasileira para fazer um tropeiro, e foi toda a gente para lá ver o jogo [Atlético-Flamengo]. Fomos 50 pessoas”, conta Thiago.
O encontro de 2017 vai-se realizar em Lisboa e promete ser diferente do de Barcelona, que foi “informal”. “Este ano, como somos membros oficiais do Clube Atlético Mineiro, vem membros da directoria, vem a TV Galo, que é a TV oficial do clube. Então vai ser um encontro com uma dimensão um pouco maior”, antecipa o presidente do PortuGalo.
O futuro, entre a casa própria e o espaço alugado
Que planos tem Thiago para o futuro do PortuGalo? Já pensou em abrir um espaço físico próprio para o "consulado"? “Estamos a caminhar para aí. Esse é o segredo. É o que nós estamos agora a falar. Estamos agora a conversar sobre isso, mas não sabemos ainda bem os moldes da coisa. Temos uma das pessoas que faz parte da nossa comissão [Alexandre Moraleida] que até é dono de café”, responde.
O dilema agora é escolher entre um espaço que também passe todos os jogos do Atlético Mineiro, ou um espaço alugado para abrir só nos dias de jogo. “Mas eu acho que vai caminhar para aí. O caminho é esse, é ter um espaço físico”, afirma.
Além de passar os jogos, que serviços é que esse espaço de um "consulado" oficializado pelo próprio clube que representam pode fornecer? “Nós vamos vender cartão de sócio. Nós vamos vender produtos oficiais do clube. Essas camisas do 'consulado' vão passar a ser oficiais do clube. Vão passar a ser vendidas na loja do clube”, aponta.
É golo do Galo
Aos 89 minutos de jogo, Juan Cazares, que tinha entrado 14 minutos antes, sentenceia o resultado ao fazer o segundo golo. “GOLOOOO!” e “GALOOO!” ouvem-se na Bica. O jogo acaba e soa o hino. O Atlético está agora em segundo lugar do grupo, com sete pontos, três atrás do líder Godoy Cruz.
Depois do jogo, os adeptos começam a rumar a casa. Mas ainda há tempo para conhecer mais uma história interessante. Thiago ainda apanha José Roberto Glória, que fala da longa ligação da sua família ao Atlético Mineiro. “Eu tenho 70 anos. Eu sou arquitecto brasileiro. Meu avó era 'atleticano', meu pai era 'atleticano', eu sou 'atleticano' e meu filho aqui é 'atleticano'”.
José Roberto não chegou a tempo do início da partida e esqueceu-se das camisolas do Atlético Mineiro que tinha para oferecer no hotel. Para compensar isso, foi-lhe oferecido algo em troca.
“O maior prazer que eu tive na minha vida foi receber essa camisa aqui. Oh!” Com um enorme sorriso na cara, mostra a camisola do PortuGalo. “Do PortuGalo! Eu vou viajar para o Brasil domingo [dia 30 Abril]. De hoje a domingo, só vou usar essa camisa”.
José Roberto Glória diz que viaja muitas vezes a Portugal, porque gosta muito do país. O primeiro impacto com Lisboa não podia ter sido mais memorável. “A primeira vez que estive em Portugal foi no dia 24 de Abril de 1974. Foi uma funcionária do hotel onde eu estava que depois me avisou que estava acontecendo uma revolução”, revela.
Depois do futebol, que por vezes é só mesmo um pretexto, a noite termina assim, a partilhar histórias e memórias, em família e com sorrisos abertos. Estava confirmada a teoria dos adeptos "atleticanos": eles sofreram, mas festejaram no fim.
Texto editado por Pedro Guerreiro