The Americans: quando a ficção encontra a realidade
Há uma ficção em que uma gigantesca nuvem moscovita ensombra o sol da América. Ou é a realidade? A nova temporada da série The Americans acaba de chegar a Portugal.
Desde o início, certos espectadores consideram The Americans demasido sombria – demasiado suspense, demasiado foco nas almofadas decorativas. É compreensível, camarada, mas experimente filmá-la. O calendário intenso da produção, ao longo do Outono e do Inverno, dá à série uma obscuridade natural que seria demasiado caro tentar replicar. Céus cinzentos, folhas secas, árvores despidas e o nevão ocasional ensombram de maneira seca e moscovita o sol da era Reagan.
A série, que se passa em Washington e arredores (e, cada vez mais, em Moscovo) em meados dos anos 80, é filmada em Brooklyn. Foi aqui que, numa quinta-feira de Dezembro dolorosamente gelada, com sete graus negativos, se limparam as marcas do presente de uma rua residencial, preparando-a para uma cena de um novo episódio da quinta temporada. Os carros estacionados no quarteirão foram substituídos por uma frota de veículos Iacocca decrépitos e, assim que as câmaras começam a filmar, o carro castanho simples que transporta a família Jennings – os espiões infiltrados Philip e Elizabeth (papéis desempenhados pelos co-protagonistas da série, Matthew Rhys e Keri Russell) e a sua cada vez mais ansiosa filha de 16 anos, Paige (Holly Taylor) – entra num prédio de apartamentos banal e estaciona.
É um dia importante para Paige. Os pais decidiram que está na altura de ela conhecer o supervisor deles, o misteriosamente calmo mas sempre severo Gabriel (Frank Langella). Quando se faz televisão, tudo demora mais tempo do que se poderia imaginar. Por exemplo, demora quase uma manhã a filmar uma cena em que a família sai nervosamente do carro, seguida de outra em que Philip e Elizabeth respondem a algumas das perguntas de Paige quando regressam ao carro. O frio faz tudo parecer mais desolador – os actores, vestidos para o início da primavera de 1984, parecem infelizes porque estão infelizes.
“A Paige deve estar bastante chocada,” conta Rhys, que também realiza este episódio. “Tinha esperança de que o frio extremo pudesse ajudar… Este é o tipo de série em que não há cenas descartáveis. Eu tentava dar uma indicação [a Russell e a Taylor] e elas respondiam, “Que se f***, está muito frio.” Eu também estou com frio, mas temos de fazer isto bem.” Quando, por fim, ele fica satisfeito, o elenco e a equipa regressam ao bloco de armazéns banais a uma milha de distância, que funciona como palco e núcleo de produção da série.
The Americans, agora de regresso aos ecrãs portugueses via Fox Crime, está a entrar naquela que é provavelmente a sua temporada mais crucial, que prepara o último acto da série. Nunca tendo sido um grande êxito de audiências, lidera habitualmente as listas de favoritos da crítica; os votantes dos Emmys, porém, não a admiram tanto. Perto do final da temporada anterior, quando a série começava a impor-se (cerca de 1,8 milhões de espectadores seguiram a quarta temporada todas as semanas), a FX anunciou que não a estenderia para lá de 2018, o que dá aos seus criadores, Joel Fields e Joe Weisberg, apenas esta temporada e a seguinte para descobrirem como é que tudo acaba.
O objectivo comum dos criadores é a contenção, por isso apertam cada vez mais os fios da trama, quase até ao ponto de a romper. Dizem que por vezes “voltam atrás na escrita” de uma cena em que consideram que os níveis de entusiasmo e de ansiedade já excederam o que é plausível. Por falar nisso, Fields e Weisberg já ouviram todas as piadas sobre Vladimir Puttin e o ataque de piratas russos às eleições americanas, por isso é melhor não perder tempo a enviar-lhes tweets espertinhos sobre “a 30.ª temporada” e coisas do género. Weisberg, que garante que pensa “constantemente” na história soviética e russa (a sua passagem pela CIA no início da década de 1990 obriga a que todos os guiões de The Americans tenham de ser submetidos ao conselho de revisão de publicações desta agência para serem aprovados), não está interessado em fazer paralelos com os tempos modernos. A série é, peremptoriamente, sobre três coisas: a Guerra Fria, os anos 80 e, acima de tudo, um casamento atribulado.
“Na primeira temporada, havia lutas, armas e explosões, e eu achava isso divertido; mas o que mais gosto é de não pegar numa arma há duas temporadas”, afirma Rhys. “É quase tudo sobre as relações. Se conseguirmos manter uma série com este tipo de tensão baseada nisso – é difícil e é muito melhor.”
Sob as ordens do KGB, Gabriel (e a sua colega Claudia, papel desempenhado por Margo Martindale) enviam regularmente Philip e Elizabeth em missões clandestinas arriscadas e acções de infiltração que levam o enredo à beira do pânico. Além de Paige se debater agora com o segredo de que os pais não são uns meros proprietários da agência de viagens Dupont Circle viciados no trabalho, o problema mais urgente da família é agora o excessivamente simpático vizinho da frente em Falls Church – um agente do FBI, Stan Beeman (Noah Emmerich), que está mais decidido do que nunca a erradicar os espiões ao seu redor.
“Não há nada que assuste aqueles dois,” diz Claudia a Gabriel na estreia da quinta temporada. “Tudo assusta aqueles dois,” responde Gabriel.
Um vulcão perto da erupção
The Americans tornou-se um vulcão que há muito caminha para uma erupção desastrosa. Tal como a cópia de Leaves of Grass na casa de banho de Walter White (o eixo inesquecível de Breaking Bad), esta também parece ser a temporada em que The Americans vai ter de rachar. Há uns anos, quando estavam em desespero a tentar convencer as pessoas a verem a série, Fields e Weisberg eram muito tagarelas acerca da direcção que achavam que a história ia seguir, bem como sobre o calendário que ia ter. Agora? Esqueçam. Os arcos da história são confidenciais e mantidos num dossiê de que toda a gente já ouviu falar mas que ninguém pode ver, nem sequer Russell e Rhys.
“Só sei o que vai acontecer até este momento e só estamos nos episódios seis e sete,” explica Rhys, na pausa para o almoço. “Acho que eles são sensatos e sabem que tenho a boca de um marinheiro bêbado e que ia contar a toda a gente.” “O senhor sabe?”, pergunta-me Russell. “Eles contaram-lhe alguma coisa? Não? Enfim.”
A actriz trocou a roupa dos anos 80 por um macacão azul-claro coberto por um enorme chapéu mongol de pele de lobo que lhe fica um palmo acima da cabeça e que, noutra pessoa qualquer, ia causar risadas. Mas em Russell o chapéu parece exótico, de uma maneira atraente. É um dos seus bens mais preciosos – Rhys comprou-lho em 2014, depois de fazer uma viagem a cavalo pela Mongólia.
Há qualquer coisa de interessante num galês charmoso que traz à sua co-protagonista um valioso chapéu de lobo mongol. O leitor também ia desfalecer. Pouco depois de a série receber grandes elogios, as notícias de celebridades começaram a cobrir Russell, que faz 41 anos em Março, e Rhys, de 42, enquanto casal. Alguns anos depois, partes da quarta temporada foram filmadas com ângulos que ocultavam a gravidez dela. O filho de ambos, Sam, nasceu em Maio, e o casal conseguiu manter os seus dados vitais longe da People, da Us Weekly e afins durante várias semanas. Sam é o primeiro filho de Rhys e o terceiro de Russell.
A maior parte da relação foi passada na maior discrição possível permitida às celebridades dos dias de hoje. “Acho que a maior parte dos paparazzi que temos são os restos,” conta Rhys. “Estão à espera de alguém mais importante e nós passamos por acaso." Este aumento da atenção exige uma auto-protecção redobrada que reflecte algumas das acções que Philip e Elizabeth tomariam para proteger os filhos. Como quando os fotógrafos tentaram fotografar o rosto do bebé: “Nunca me senti tão primitivo,” admite Rhys.
“Será que nos identificamos com eles nesse aspecto?” especula Russell. “Isto tem de permear, de alguma maneira. O que me faz pensar mais é que, de nós os dois, eu sou a mais privada por natureza. Se calhar sempre fui… como fiz aquela série de televisão [o drama universitário Felicity, no final dos anos 90] quando era muito nova e sentia-me muito desconfortável [com a fama], tenho tendência a ser reservada sobre tudo, enquanto ele é muito mais sociável e aberto e gosta de falar com toda a gente.”
Russell e Rhys contam que costumavam falar muito mais sobre Philip e Elizabeth no passado (“Phil e Liz”, como Rhys lhes chama), e muitas vezes brincavam um com o outro sobre os defeitos das personagens, o que chegou a causar discussões a sério sobre os seus pontos de vista fundamentais.
“Queres dizer, a maneira como o Phil é infinitamente mais humano?” pergunta Rhys, com um sorriso presumido. “Sim, discutimos sobre eles e muitas vezes começa com um debate a brincar. Ela diz: 'O Phil é tão fraco'; eu respondo: 'A Liz é tão fria', e às vezes isso leva a uma discussão séria sobre quem é mais forte ou mais dinâmico."
“No início, nunca planeámos como [Philip e Elizabeth] iam reagir ou comportar-se um com o outro”, conta Russell. “Somos como animais enjaulados – trabalhamos bem com algumas pessoas e com outras não. E, neste caso, funcionou. Confiamos um no outro. Ou não confiamos, às vezes.”
Por esta altura, explica Rhys, há menos discussões sobre quem Phil e Liz são e mais diálogo sobre como eles se sentem. “Eu diria que há um sentimento de posse,” diz Rhys. “Eu sou dono do Phil Jennings. Sou a pessoa que pensa mais sobre o Phil Jennings. Mais ninguém.”
Mentira
A nova temporada da série começa com uma adição eficaz à reserva infinita de perucas e disfarces de Phil e Liz – desta vez, estão a fazer de conta que são um piloto e uma hospedeira de bordo, casados, a viver em DC, e cujo filho adoptivo vietnamita (outro espião) se torna amigo de um emigrante soviético recente que poderá estar a ajudar os Estados Unidos a contaminar as provisões de trigo da URSS. Fazer amizade com este homem e a sua família implica outro embuste prolongado para Phil e Liz, cuja vida inteira é uma mentira.
Curiosamente, na mesma altura em que decorre esta temporada, o escritor e psiquiatra M. Scott Peck publicou o livro People of the Lie: The Hope for Healing Human Evil, isto quando o seu livro anterior, The Road Less Traveled, se estava a tornar um enorme bestseller.
Enquanto The Road Less Traveled explorava temas simpáticos como a plenitude, o amor e a bondade, People of the Lie, publicado no final de 1983, apresentava um argumento mais negro e perturbador a favor da ideia de que no nosso quotidiano estamos rodeados de um mal banal mas pernicioso que consome silenciosamente os nossos vizinhos, amigos, familiares e colegas, fazendo-os viver de maneira falsa. Peck, que morreu em 2005, acreditava que o mal devia ser considerado uma doença mental e a sua psicologia popular é o tipo de detalhe de época passageiro mas perfeito que poderia aparecer num episódio de The Americans.
Os leitores de People of the Lie começaram a ver maldade e mentiras mesmo nas circunstâncias aparentemente mais normais. Quando era um adolescente religioso, como Paige Jennings, lembro-me de registar as pistas mais subtis e contraditórias ao observar os adultos na minha vida, o que por vezes incluía os amigos dos meus pais – os seus temperamentos voláteis, as regras arbitrárias, os silêncios gélidos ou as gargalhadas calorosas (nunca sabia o que esperar), o súbito raspanete por partilhar detalhes inofensivos com amigos ao telefone. Um professor mandou-nos ler People of the Lie e isso deu-me a ideia de que muitos adultos andavam a fingir ser o que não eram. Se eu e Paige tivéssemos sido amigos (de certeza que teríamos sido, naqueles anos 80 paralelos que agarram toda a Geração X num fascínio nostálgico), de certeza que Phil me teria partido o pescoço e transportado o meu corpo algures para as matas do Norte da Virgínia.
Recordo-me de People of the Lie, um livro em que não pensava há anos, enquanto faço uma vista guiada pelos interiores frios da casa da família Jennings e penso em todas as mentiras ali guardadas – a sala, a cozinha com o papel de parede geometricamente berrante, as cassetes aleatórias no quarto de Paige.
Finalmente, chegamos ao quarto de Phil e Liz, no seu esplendor de malva e vime de classe-média, com a casa de banho principal e a decoração cor de ferrugem. É só um cenário numa série de televisão, mas, devido ao que Russell e Rhys criaram em conjunto – devido ao que os espectadores já viram aqui –, ele transmite uma intimidade sensual.
E como se trata de The Americans, também transmite um cheirinho a catástrofe. As coisas vão complicar-se para Phil e Liz. Em breve, os espectadores vão ter de conciliar a sua preocupação com as personagens com o facto de eles serem “o inimigo”.
Assim que percebeu que Elizabeth era mais do que uma comunista de coração frio numa missão vitalícia, conta Russell, decidiu seguir a corrente e ver aonde isto vai dar.
Quando lhe ofereceram o papel pela primeira vez, ela recusou várias vezes, “Até que vi como o casamento era interessante,” explica. Mesmo certas reviravoltas da história de que ao princípio não gostou acabaram por correr bem, portanto ela deixou de se preocupar com o destino final dos Jenning. Em Outubro passado, realizou-se um debate com o elenco e os criadores da série em Nova Iorque, e Russell especulou sobre a possibilidade de um final optimista.
“Continuo a perguntar-me se posso dizer isto, mas tem de haver a possibilidade de uma reviravolta, certo?”, pergunta Russell. (Sim, claro. Deserção! Segurança! Deus abençoe a América!) “E então olho para o Joe [Weisberg] e ele lança-me um olhar que diz “nem pensar”… por isso, não faço a menor ideia – e não me importo.”
Exclusivo PÚBLICO/Washington Post