A arte é uma linguagem universal para desafiar a morte

Os novatos chegaram a pé, a elite aterrou já com exposições agendadas. Nos últimos cinco anos, Berlim recebeu de braços abertos mais de 5 mil artistas e intelectuais sírios. Expressam nas suas obras o sentimento em relação ao país que abandonaram, a partir de um exílio, angustiante e inspirador.

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Estão mais de 100 pessoas diante do palco do Radialsystem, em Berlim, e outras tantas fora da sala sem bilhete. O bailarino sírio Medhat Aldaabal, de 29 anos, executa os últimos aquecimentos antes de subir ao palco, onde vai desempenhar o papel central no espectáculo de dança contemporânea Amal (Esperança), com outros três dançarinos refugiados na Alemanha e bailarinos da companhia Sasha Waltz. A ansiedade dispara; é a primeira vez nos últimos dois anos que o antigo membro da Enana, o mais conceituado colectivo sírio de bailado, vai actuar para uma audiência. Nos últimos tempos, Mehdat esteve focado na mais trágica das coreografias: a da sobrevivência. A cortina sobe, há aplausos. A vida recomeça.

Mehdat começou a praticar na adolescência quando viu que as meninas mais bonitas da escola ensaiavam dança tradicional na cave do edifício. “Percebi rapidamente que a minha atracção pela dança era muito maior do que a que tinha por aquelas raparigas”, diz. Ainda antes do início da revolução síria, em 2011, entrou no Conservatório e passou a integrar as tournées da Enana, actuando ao lado dos melhores bailarinos nacionais em várias salas do Médio Oriente, EUA, Canadá e Rússia. A sua carreira estava em ascensão. Contudo, veio a revolução, que rapidamente se transformou em guerra civil. Nos arredores de Damasco, onde vivia, a neutralidade deixou de ser opção: “Era frequentemente ameaçado para tomar parte do conflito, tanto pelos rebeldes como pelos partidários do regime”, conta. “Decidi que ia sair do país assim que terminasse os estudos.” E assim fez. Em 2014, mentiu à mãe: disse-lhe que tinha arranjado um trabalho no Líbano e zarpou. Não tinha dinheiro e ofereceu o telemóvel para pagar a viagem para Beirute. “Não me custou nada deixar a Síria para trás porque já tinha enterrado todos os meus amigos”, diz.

Começou por viver nas ruas, até conseguir alguns serviços em casamentos e no Teatro Koon. Mas o Líbano não era país para refugiados: “Por ser sírio, fui perseguido na rua por uns tipos que me queriam bater e obrigado a mudar de casa quatro vezes em apenas dois meses.” Com 70 dólares no bolso, partiu para Istambul: “O meu objectivo era passar para a Europa, chegar a Londres e pedir uma audição com Akram Khan, o meu coreógrafo favorito.” Até atravessar a fronteira terrestre para a Grécia, cozinhou e limpou, em troca de dormida grátis, numa casa onde viviam outros 16 migrantes. De Salónica, encetou tentativas de prosseguir para norte – foi apanhado três vezes na Macedónia e passou quatro dias numa prisão albanesa. “Os dias na prisão foram os melhores, porque tinha cama quente, TV e Internet. Passei o tempo a ver filmes”, conta.

No Verão de 2015, quando Angela Merkel abriu os braços aos refugiados, muitos dos seus amigos partiram rumo ao coração da Europa. Medhat, não: queria Londres. Conseguiu um falso visto Schengen e voou para Paris, de onde rumou à “Selva” – nome pelo qual ficou conhecido o enorme campo de refugiados em Calais –, para apostar tudo na travessia para o Reino Unido. “Tentei esconder-me debaixo de camiões mas fui sempre apanhado. A polícia bateu-me. Os polícias franceses são os mais racistas. Foi então que me lembrei que tinha um primo em Berlim e que toda a gente me dizia que era a cidade mais acolhedora para os artistas.” O bailarino chegou de comboio à capital alemã, no Outono de 2015. E nunca mais saiu. “Senti logo uma energia positiva, conheci pessoas de mente aberta e muitas oportunidades de carreira”, afirma.

Há um ditado árabe que diz: “Só conheces bem uma pessoa fora de sua casa.” Medhat percebeu em Berlim a verdade nas sábias palavras do seu povo: “Aqui, os artistas sírios ajudam-se muito uns aos outros", diz. “Em Damasco, cada um só se preocupava com a sua própria vida.” É uma das consequências do exílio, um estado de alma partilhado por cerca de 100 mil sírios em Berlim. Através dessa entreajuda, Medhat começou a treinar novamente e, meses depois, foi contactado pela equipa de Sasha Waltz, informada da presença de um ex-bailarino da Enana entre os exilados da cidade. Com a ajuda do dançarino residente David Camplani, orquestrou os movimentos do espectáculo. “Desde então, fizemos três actuações, tenho treinado com eles, já orientei workshops e actuei no Café Refúgio e na Igreja de St. Elisabeth”, diz o sírio. “Estou confiante porque tenho formação em dança tradicional síria, algo fora do comum. Mais oportunidades surgirão.”

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Integrar a intelligentsia de Damasco

Tal como Medhat, muitos outros talentos artísticos do Levante chegaram recentemente a Berlim: os artistas plásticos Alina Amer, Amer Al Akel e Alaa Hamameh e o músico Nabil Arbain são alguns dos nomes mais destacados e já integrados na plataforma FLAX, um projecto subsidiado pelo banco alemão BHF-Bank para dar espaço à criatividade síria. A Alemanha não poupou esforços na integração da intelligentsia de Damasco. Só em 2016, entre iniciativas públicas e privadas, o país dispensou 60 milhões de euros para projectos artísticos e interculturais destinados a refugiados, de um total de 9 mil milhões do orçamento para a cultura. O Zentrale für Politische Bildung (Centro para a Educação Política), a filial alemã da IFA (Associação Fiscal Internacional) e o Daku Fonds (Fundos para as Artes Performativas) são apenas três dos principais financiadores, cada um deles virado para diferentes segmentos artísticos.

“Há dois grupos de artistas sírios no exílio”, diz Lanna Idriss, de 40 anos, que tem ascendência síria e dinamarquesa e está a par do trabalho da maioria dos 5 mil intelectuais de Damasco a viver na Alemanha. A directora do BHF tem à sua disposição um fundo de um milhão de euros só para este campo. “O primeiro, que nós apoiamos, são jovens dos 19 aos 30 anos que foram activos na revolução, participaram em manifestações, foram presos e muitos deles andaram até aqui, exibindo hoje trabalhos extraordinários e com elevado potencial. O segundo grupo é o da elite, que, através das suas famílias, tiveram sempre a bênção do regime sírio para os seus projectos. Alguns deles estão a criticar o regime nas suas obras quando, na verdade, construíram a carreira com o apoio do sistema dominante.”

A concorrência da elite não preocupa Medhat, que fuma, relaxado, à janela do seu apartamento com vista para a torre de Alexanderplatz. O trabalho desceu na sua hierarquia de prioridades depois da viagem em que a subsistência se tornou finalidade única. Quer, acima de tudo, casar e trazer os pais e as irmãs para a Alemanha. A audição com Akram Khan pode esperar: “O dia mais feliz que tive aqui não foi o da minha actuação, mas quando os meus primos cá chegaram sãos e salvos, porque eu sei o que eles passaram no caminho”, diz, sem romantismos. E recusa-se a olhar para trás: “Não quero voltar à Síria. Não me imagino a voltar a andar nas ruas de Damasco.”

Uma nave espacial aterrou em Berlim

É sexta-feira, e ao mesmo tempo que Liwaa Yajzi projecta o seu documentário Haunted no cinema Moviemento, contadores de histórias levantinas partilham os episódios do seu exílio na Storytelling Arena, noutro ponto da cidade. No final de Outubro, o Instituto Goethe dedicou duas semanas de programação aos artistas sírios, com o evento Damascus in Exile. E ainda houve o Landscapes of Hope, o Syrian Mobile Film Festival e centenas de outros acontecimentos com a arte síria debaixo dos holofotes de Berlim.

Isto não significa, porém, que após quase dois anos de exibição nas mais diversas montras da cidade, as obras dos artistas sírios sejam as grandes atracções de catálogos, leilões ou bilheteiras. Ao contrário de grandes estrelas da cena artística internacional exiladas em Berlim, como o chinês Ai Weiwei – que fez uma famosa instalação com coletes salva-vidas usados pelos refugiados para atravessar o Mediterrâneo –, mesmo os sírios mais cotados movimentam-se especialmente entre galerias alternativas ou especializadas e eventos de natureza humanitária.

“Há poucas obras de artistas refugiados nas cerca de 300 galerias comerciais de Berlim”, diz Melanie Waldheim, professora da Universidade de Arte de Berlim e coordenadora do projecto Treino de Artistas: Aulas Refugiadas para Profissionais, que dá educação avançada exclusivamente para profissionais, com o objectivo de lhes abrir as portas do mercado laboral. “As revistas especializadas e os jornais culturais ainda não lhes dão muito destaque porque estão formatados para a arte de padrão ocidental. Muitos destes artistas são influenciados pelo Oriente. Mas não nos podemos esquecer de que eles estão cá há pouco mais de um ano. E, aos poucos, alguns deles agarrarão as oportunidades que lhes são dadas em acontecimentos mainstream, como a Berlinale, que voltou a ter uma mostra só para cineastas refugiados. O nosso programa trabalha nesse sentido”, diz Waldheim.

Mediante tamanha actividade, o editor alemão Mario Münster, o poeta e argumentista sírio-palestiniano Mohammed Abou Laban e o realizador/encenador Ziad Adwan decidiram publicar uma revista sobre a cultura no exílio – A Syrious Look. “Foi como se uma nave espacial tivesse apanhado 5 mil intelectuais em Damasco e os tivesse largado aqui”, diz Münster, a poucos dias do lançamento da publicação. “Eu vivo em Berlim desde 2000 e vi muitas comunidades a chegar: primeiro, os alemães das aldeias, depois, os expatriados americanos, os gregos, portugueses e espanhóis a braços com a crise e finalmente os sírios. Pensei que era apenas mais uma, enganei-me. Tanto pelo que se está a passar na Síria, como pela qualidade e variedade dos artistas, é uma comunidade especial.”

Abou Ladan sublinha que não pretende que os conteúdos sejam exclusivamente sírios, mas sobre o exílio artístico na cidade que pode vir a tornar-se a capital do mundo livre: “Vivemos uma época em que são esperados mais exílios. Não é de admirar que nos próximos anos cheguem a Berlim artistas americanos incompatibilizados com as políticas de Trump ou mesmo franceses desiludidos com uma possível vitória presidencial de Marine Le Pen.”

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Mohammad Abou Laban (dir.) e Mario Münster, fundadores da revista de arte "Syrious Look"

Dançar a desafiar a morte

Não obstante, o primeiro número é dedicado ao universo sírio. A capa tem uma imagem peculiar – uma mulher com a face coberta por um véu islâmico e vestida com um colete de explosivos segura um peixe voador. É a bailarina e coreógrafa Mey Seifan, 35 anos, que nos últimos seis anos usou uma página de Facebook – Syrian Dreams – para documentar de forma exaustiva os sonhos do povo sírio, interpretando-os através de duas curtas-metragens (Cocoon, News Dreamers) e uma trilogia teatral (Destruction for Beginners I, II e Reloaded). “O meu domínio é o corpo e as suas linguagens. As pessoas na Síria estavam a dançar e a desafiar a morte. Há milícias armadas a disparar contra manifestantes, mas os manifestantes continuam a ir para as praças, protestam, dançam, e por vezes morrem. A morte sonhada antes de morrerem: um corpo que vai à sua própria execução”, diz a autora. O seu registo de sonhos mostrou que depois de, em 2011, ter recebido com muitos testemunhos ligados ao início da revolução, os sírios pararam de sonhar em 2012, quando o protesto deu lugar à guerra, regressando à página da rede social quando o conflito se agudizou, com imagens mais bizarras e surreais. “Nós não percebemos a realidade, e talvez por isso não tenhamos sonhado muito em 2012; já estávamos a viver no surrealismo. Não queríamos ver que a guerra estava a chegar, mesmo nos sonhos”, explica Seifan.

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A ultimar uma edição da revista "Syrious Look"

No interior da revista, encontram-se outras obras provocadoras, como a mala de viagem com o formato de passaporte sírio, assinada por Tammam Azzam, ou a icónica composição digital de Sulafa Hijazi, que mostra um homem a dar à luz uma Kalashnikov. A escola de Damasco é tradicionalmente pródiga em pintores e poetas, uma herança clássica na capital mais antiga do mundo, mas também em dramaturgos e músicos: “Tanto o Conservatório como o Instituto de Arte Dramática eram os melhores de toda a região”, diz Abou Ladan. O Ocidente passou a conhecer nomes como os do poeta e ensaísta Adonis (forte candidato ao Nobel da Literatura), do cartoonista Ali Farzat (vencedor do Prémio Sakharov em 2011) e do músico tradicional Omar Suleyman (cabeça-de-cartaz em festivais internacionais de world music). Outros, como o mestre Wahbi al-Hariri e os seus discípulos Fateh Moudarres e Louay Kayali, marcaram a identidade da pintura e artes plásticas do Médio Oriente no século XX. Agora, o universo artístico alargou os seus domínios ao documentário e ao digital, uma vez que o ciberespaço foi o canal mais utilizado para difundir a arte revolucionária e manifestos contra a regime. “No exílio, os artistas digitais, a par dos músicos e dos pintores, foram os que começaram a trabalhar mais rapidamente, pois a sua arte tem uma linguagem universal”, diz Abou Ladan.

Essa entrada imediata no mercado foi catapultada por iniciativas germânicas, zelosas pela integração dos árabes recém-chegados. “Eu agradeço muito o esforço na realização de workshops, mas questiono se os artistas alemães também estão integrados?! Mais, pergunto-me se um artista é integrável? Um artista vive em exílio permanente. Preferia que me dessem o dinheiro para comprar cerveja e organizar festas, nas quais os artistas alemães e sírios se pudessem juntar e desenvolver ideias”, diz Abou Ladan. “É importante esquecer que somos sírios. Definir a arte com uma nacionalidade é sempre discutível. Eu conheço sírios que gostam do rótulo de vítimas. Eu não. Gostava que nos deixassem de chamar artistas sírios e que nos chamassem apenas artistas.”

Vidas congeladas

Com a crise dos refugiados, várias instituições alemãs promoveram eventos de cariz social, insistindo na apresentação de artistas sírios como indivíduos miseráveis e necessitados, apelando a uma audiência mais dedicada à caridade do que à cultura e fomentando a construção de estereótipos. “Eu já tive de tirar uma foto com uma mulher que queria aparecer ao lado de uma artista síria, como se eu fosse um macaco”, diz a realizadora Liwaa Yazji, mulher de Abou Ladan, que não perde a oportunidade de participar na discussão. Mario Münster acrescenta: “As intenções eram boas, mas tomaram-se caminhos errados. Parecia que os alemães estavam a tomar conta da causa síria e a apresentar os artistas como troféus. Agora, entrámos num novo capítulo em que os sírios começam a contar as suas próprias histórias.”

A mecenas Lanna Idriss repudia esta atitude. Apesar de reconhecer os efeitos redutores da colagem da realidade síria aos seus artistas, critica as contradições da elite intelectual que, segundo ela, se queixa de ser tratada como refugiada sem nunca concorrer aos fundos disponíveis para a generalidade dos artistas: “E só consigo explicar isto pelo seu passado na Síria, em que a rede de contactos oferecida pelos seus pais era suficiente para se tornarem notáveis e terem oportunidades. Eles tentaram trazer este sistema para a Alemanha, mas tiveram mais dificuldades. Porque não estão habituados a entrar em competição e a pedir alguma coisa. Isso causa-lhes problemas de honra.”

Liwaa discute com o marido a pertinência de serem conhecidos como “artistas sírios”. Para ela, há uma questão de representatividade que não deve ser ignorada: “O nosso país está apenas ligado a temas como a guerra, a morte e o terror”, diz. “Ao sermos catalogados como artistas sírios, estamos a fazer com que a Síria seja também falada pelas suas obras e cultura.”

A realizadora penetrou nas questões identitárias durante a rodagem de Haunted, em que seguiu os dilemas de nove sírios confrontados com a inevitabilidade de abandonarem as suas casas. “É uma abordagem transcendental às ideias de lar, história, memória e passado. É sobre a vida congelada, sobre a necessidade de partir e a vontade de ficar”, afirma. “Eles querem ficar o máximo tempo possível, mas são empurrados para fora de casa pelas circunstâncias externas. Agarram-se ao que podem, especialmente às fotografias.”

O filme reflecte a importância que o ser humano dá às coisas, nas suas vertentes material e simbólica. Vemos, por exemplo, o desespero de um homem que coloca todos os seus pertences em caixas e as etiqueta para que potenciais invasores não tenham de lhe revirar o apartamento à procura de riquezas. Ou a agonia de um homem que perdeu a única foto do filho que morrera e que, por isso, deixou de contar com a sua imagem física.

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A cineasta Liwaa Yazji quer que o seu país seja também falado pelas suas obras e cultura

“Conheci um casal da zona de Alepo que vivia num campo de refugiados. Ele era advogado e ela dentista. Mas os filhos, pequenos, diziam aos amigos que a mãe era dona de casa e o pai fazia entregas numa padaria. A mãe chorava porque não podia dizer aos filhos que, no passado, eles viviam bem, pois não lhe restava nenhuma foto de bata nem do seu marido no escritório”, conta Liwaa. Há também uma abordagem ao optimismo; prestes a abandonar a casa destruída da sua mãe, uma das personagens promete que vai voltar. Mas a realidade é diferente: “Há uma tendência para as pessoas serem optimistas no calor do momento, em que acreditam que irão regressar, e se tornarem mais pessimistas no exílio, em que começam a aceitar pela primeira vez a eventualidade de nunca voltarem aos seus antigos lares”, diz a autora.

Enfrentando essa possibilidade, muitos dos talentos sírios procuram inserir-se no estilo de vida berlinense. Fazem amigos alemães, frequentam estúdios e galerias e não perdem um evento cultural. “Encontro muitos dos meus alunos em festas e inaugurações de exposições”, diz Melanie Waldheim. Estes, os que já tinham nome em Damasco ou encontraram rapidamente o seu espaço em Berlim, vivem e movimentam-se nos bairros cosmopolitas de Kreuzberg e Neukölln, onde galerias, cinemas alternativos e cafés cheios de hipsters convivem harmoniosamente com restaurantes árabes e salões de chicha (tabaco com aromas fumados em cachimbo de água). “Muitos de nós vão recordar o exílio como um período de libertação, com muitas tertúlias, exposições, sexo, álcool e drogas”, diz Abou Ladan. Há um interesse generalizado na Síria e nas suas gentes e os mais sociáveis tiram partido disso. “Nunca a Síria foi tão sexy”, escreveu a revista Ex Berliner. Não para todos, todavia.

O grosso dos estudantes de arte e dos intérpretes de menor nomeada vive ainda em centros de acolhimento para refugiados, afastados do epicentro criativo da metrópole. Vivem do apoio do Estado ou de biscates noutras áreas. O meio artístico no exílio reflecte ainda as características da imparidade dominante na sociedade síria: há poucas mulheres artistas. “No último curso, tivemos 50 homens e cinco mulheres”, diz Kathrin Rusch, directora de comunicação do Aulas Refugiadas para Profissionais. “Agora, no curso de música, temos 40 e são todos homens”.

Todos eles, os integrados e os alienados, estão unidos por um denominador comum: a impossibilidade de regressar à terra natal. O exílio é angustiante. Como Edward W. Said escreveu em Reflexões sobre o Exílio, é “o corte incurável entre o ser humano e o seu local de origem, entre o indivíduo e a sua casa verdadeira: a sua tristeza intrínseca nunca pode ser ultrapassada”. Mas o exílio também é regeneração. Especialmente se for em Berlim.

Identidade e regeneração

Casa é cada pedra que se pisa, cada ruína ignorada. Esse é um dos motes do projecto Multaqa (Ponto de Encontro), incentivado pelo Museu de Arte Islâmica, de que a arquitecta Zoya Massoud foi fundadora. “Treinamos sírios no exílio, das mais diversas áreas, a guiar outros refugiados por vários museus de Berlim”, diz Zoya, de 29 anos. “É um projecto maravilhoso porque traz aos museus pessoas que nunca se interessaram por eles. Além disso, os refugiados vêm de contextos diferentes, têm distintas opiniões políticas e crenças religiosas, mas entendem-se quando estão a falar de arte e do legado cultural. É uma área segura de convívio.”

No Museu de Arte Islâmica, os visitantes sírios encontram vestígios das suas cidades na forma de ruínas e artefactos. “É muito poderoso estar diante de uma pedra de Damasco ou de Alepo”, diz a arquitecta. “É como ter um fragmento de casa num país estrangeiro. Alguns estão traumatizados e começam a chorar. Mas não é isso que queremos. Procuramos a partilha de experiências. Há quem se lembre do bairro em que a pedra estava e se recorde de lá ir com o pai, por exemplo. Outros lembram-se do souk (mercado) e começam a falar de comida.” Os resultados foram tão positivos que o Multaqa já arrecadou diversos prémios culturais.

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Zoya Massoud está a fazer a sua tese de doutoramento sobre a reconstrução do centro histórico de Alepo

Para Zoya, é ainda uma excelente ferramenta de pesquisa para a tese de doutoramento que está a escrever sobre um tema que ganhou ainda mais importância nos últimos meses: a reconstrução do centro histórico de Alepo. “Eu ouço e anoto a opinião dos que lá viviam, de forma a saber o que mais lhes tocava, o que mais consideravam como parte deles e que agora não existe mais. Essas opiniões terão de ser levadas em conta no processo de reconstrução”, diz. Os refugiados também têm um fascínio pelos museus alusivos à II Guerra Mundial. “Mostra-lhes quão destruída estava Berlim, comparada com o que vêem hoje. Isso dá-lhes esperança. E, a mim, dá-me uma noção do que devemos imitar e rejeitar na reconstrução da Síria.”

Os olhos da arquitecta brilham de fascínio quando avistam a Gedächtniskirche, em Breitscheidplatz, o seu monumento favorito em Berlim. São as ruínas de uma igreja destruída pelas bombas da II Guerra Mundial, envolvidas num novo templo desenhado pelo arquitecto Egon Eiermann e rodeadas por edifícios modernos. É a contemporaneidade evocando a memória. “O património cultural tem potencial de reconciliação. É o que liga a cidade às suas gentes. O mercado de Alepo é simbólico porque os seus cidadãos sempre tiveram orgulho por a cidade ser um centro de comércio. Esse orgulho não só tem de se manter, como deve ser avivado com os vestígios da catástrofe que sofreu”, diz Zoya.

Três semanas depois de Zoya nos ter mostrado a Igreja Memorial, o local foi alvo de um atentado terrorista – o tunisino Anis Amri conduziu um camião contra a multidão presente no mercado de Natal daquela praça, matando 12 pessoas e ferindo várias dezenas. “Berlim é agora a minha cidade e ter um crime desta natureza aqui provocou-me muito medo”, diz a arquitecta. “Porém, a Gedächtniskirche é um símbolo de reconstrução e, mais uma vez, vai servir para nos lembrarmos de que a sociedade berlinense tem capacidade para se reerguer depois do choque.” A equipa do museu em que trabalha iniciou, nos dias posteriores ao ataque, uma discussão no sentido de criar iniciativas culturais para esclarecer todos aqueles que confundem o radicalismo islâmico com os refugiados acolhidos pela Europa. “Queremos estabelecer pontes com a extrema-direita através dos museus e da arte”, diz Zoya. Também nas redes sociais a reacção foi imediata: alguns artistas sírios publicaram textos, poemas e imagens com o intuito de evitar manifestações de ódio contra os estrangeiros na Alemanha.

Domingo é para descanso

A Konzerthaus, a casa da Orquestra Sinfónica de Berlim, foi outro dos edifícios que a guerra não poupou e que os alemães reergueram. Nas suas imediações, o violoncelista Arthil Hamdan procura um café aberto ao domingo, dia em que os germânicos saem menos à rua do que os sírios em noites de bombardeamentos. “Trabalham tanto que ao domingo têm de descansar”, teoriza Hamdan, de 46 anos. “Mas eu acredito mesmo em Nietzsche, os alemães são uma espécie de super-homens. Ao lado da casa onde vivo, há um prédio grande que foi reconstruído apenas por mulheres. É notável.”

O nome de Arthil Hamdan confunde-se em Damasco com o da música clássica. Estudou em Paris e Moscovo, tocou nas melhores salas do mundo, foi director da orquestra sinfónica nacional e, até ao exílio, reitor do Instituto Superior de Música. Tal como as personagens do documentário de Liwaa Hazji, manteve-se no país até ao limite. “Chegámos a tocar debaixo de bombardeamentos, com o palco a estremecer”, conta. “Mas eu tenho uma filha pequena e não quero que ela tenha recordações da guerra. Aliás, se for por mim, ela nunca vai saber que houve uma guerra na Síria. Até eu, se pudesse, arrancava a parte do cérebro em que essas memórias estão.”

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Arthil Hamdan tocou nas melhores salas do mundo, foi director da orquestra sinfónica nacional síria e, até ao exílio, reitor do Instituto Superior de Música

Arthil é um homem amargurado. Ainda hoje fala com perplexidade da violência galopante que assolou o seu país, recusa-se a acreditar que todas as potências internacionais estejam a arrancar um pedaço do corpo putrefacto da Síria – “para mim, russos, americanos, sauditas ou iranianos, são todos criminosos” –, e que Bashar al-Assad, com quem privou como um apreciador e mecenas de música, esteja hoje a matar o próprio povo. “Ele tratava-nos bem, mas hoje sei que as suas motivações eram propangadísticas. Ele queria que os sírios olhassem para nós e vissem o sucesso da sua política.”

Há um ano, foi forçado a usar as poupanças para se mudar com a família para Berlim. Deixou uma vida confortável, um salário de 600 euros (avultado na Síria) e um estatuto firmado para se entregar à incerteza: “Cheguei a pensar mudar de profissão, trabalhar num escritório ou na rua, não só para alimentar a minha família, mas também porque tocar, por vezes, já não fazia sentido”, diz.

A guerra destrói; antes dos prédios, são as pessoas que se têm de erguer. Berlim ajudou-o. Começou por tocar de borla com a mulher, também instrumentista, em eventos solidários, integrou orquestras de nível médio, até que os locais se deram conta de que a sumidade estava no seu território. A partir de então, os convites multiplicaram-se: tocou a solo na Gedächtniskirche, integrou o Wischah Quartet no Damascus in Exile e foi recentemente convidado para gravar um CD para a rádio alemã. “É um privilégio a que nem sequer grandes músicos alemães têm direito e que me foi dado não apenas pela minha qualidade mas porque me querem ajudar”, diz o violoncelista. “A solidariedade que muitos europeus nos estão a oferecer é um dos ensinamentos que temos de levar de volta para a Síria.”

A harmonia também vai ter de regressar a um país em que, afirma Hamdan, as crianças sabem reconhecer uma arma pelo barulho dos disparos, mas não o som de um instrumento musical. O músico fecha os olhos à procura da distopia instrumental: “A 4.ª sinfonia de Tchaikovsky. Nela há momentos de exílio e conflito emocional como os que sinto actualmente.”

A arte não morre

Sulafa Hijazi, realizadora e artista digital de 39 anos, um nome sírio cada vez mais repetido nas galerias berlinenses, está a dois dias da inauguração da sua exposição em Copenhaga. Antes de partir, abre a porta de casa ao jornalista e poeta curdo Dara Abdallah e ao street artist egípcio Youssef “El Teenen”, acabadinho de chegar de Dresden, onde esteve a pintar nas paredes mensagens de protesto contra o grupo islamofóbico Pegida. É uma tertúlia entre árabes liberais, os precursores da Primavera Árabe, regada com vinho tinto e compassada com fumo. “Isto é o que a maioria das pessoas pensa que os árabes não fazem”, diz Dara, que desistiu de um futuro promissor em medicina para se dedicar à escrita. “Não imaginam o gozo que me dá ver a cara de alguns ocidentais quando eu peço uma cerveja, como bacon ou vêem o meu brinco. Dizem-me: ‘Ah, que bom, estás integrada!’ Mas qual integração? Eu já fazia isto na Síria.”

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Composição digital da artista Sulafa Hijazi, uma das vozes mais activas na preservação dos ideais revolucionários e na denúncia de violações humanitárias

Alguns críticos acusam Sulafa, que pertence à mais alta esfera da sociedade síria, de ter dedicado a sua carreira a fazer animação para a televisão do regime e de apenas se ter focado em temas sociais com o eclodir da revolução. Mas o seu currículo fala por si: a sua última longa-metragem de animação, The Jasmine Birds, foi distinguida com prémios em Hollywood, na Rússia, na Índia e no Egipto. Hoje, ela é uma das vozes mais activas na preservação dos ideais revolucionários e na denúncia de violações humanitárias; para além do parto da metralhadora, as suas composições digitais exibem crianças sorridentes às cavalitas de guerrilheiros e noivos com máscaras de gás.

A conversa discorre sobre o impacto da arte na revolução síria – que até começou com um graffiti de protesto pintado por adolescentes num muro da cidade de Dera'a, no Sul do país. É difícil de conceber que a arte tenha sido o rastilho de 400 mil mortes, milhões de refugiados e uma nação destruída. “Eu não me sinto minimamente culpada”, diz Sulafa. “Eu e os meus amigos não apoiámos a parte armada da revolução, e a revolução iria acontecer mais cedo ou mais tarde. Não era apenas por causa da repressão política, mas também da opressão social, sexual e económica. Podia explodir a qualquer momento, e nunca ia ser uma explosão de flores. Nunca pensámos que se tornasse tão feia, mas não sentimos culpa. Ao mesmo tempo, fico muito contente por ver os jovens a explorar o mundo, a quebrar tabus. Ver a explosão da cena artística, documentários, ilustrações, com as mulheres que estão agora a par dos seus direitos... Quando fui aos campos de refugiados, muitas mulheres disseram-me que a primeira coisa que fizeram quando chegaram à Alemanha foi divorciarem-se dos seus maridos abusadores.”

A arte começou a guerra e, como em todas as guerras, a ela sobreviverá. Os intelectuais sírios exilados em Berlim acreditam que podem estabelecer os novos padrões culturais do pós-conflito. Afinal, também em 1945, foram os artistas e pensadores alemães no degredo, como o dramaturgo Bertold Brecht, o escritor Thomas Mann, o filósofo Theodor W. Adorno ou o pintor George Grosz, que impulsionaram o país para a milagrosa recuperação. Nessa altura, ninguém acreditaria que Berlim se poderia tornar uma capital da livre criação. Quem sabe como será Damasco daqui a 70 anos? Talvez as mesquitas destruídas estejam rodeadas de prédios modernos e as crianças reconheçam o som do violoncelo.

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