Traumas latentes, à superfície
Um romance de ajuste de contas com a guerra de Angola, que a literatura cubana precisava.
Não é, ao contrário do que diz a Porto Editora, o primeiro romance sobre a presença cubana em Angola. Em Cuba há vários, e talvez nunca cheguem ao público português. Mas foi a pensar nesse público que a editora chamou Angola para o título do romance de Karla Suárez, Um lugar chamado Angola. E também porque, apesar de não ser o primeiro, este romance é, enfim, a obra definitiva sobre a presença cubana em Angola, aquele que a literatura cubana precisava há muito.
Foi originalmente escrito em espanhol e traduzido de imediato para português. Esta é a sua primeira publicação.
O pai de Ernesto, o protagonista, morre na guerra de Angola. Ernesto tem 12 anos. De um dia para o outro, o miúdo que passava o tempo no Parque Almendares em Havana, num universo de fantasia literária, tem de se “tornar homem” – em casa será o chefe de família; na escola terá de dar o exemplo de hombridade como bom revolucionário, porque é afinal o “filho do herói”. A vida leva-o de Cuba para a diáspora, em Lisboa, onde finalmente conhece Berto, cubano que também esteve em Angola. Esse reencontro vai trazer à superfície um trauma latente que parecia enterrado – a morte do pai nunca foi totalmente resolvida, e Ernesto tem contas a ajustar com a história.
Ao Ípsilon Suárez dizia que um dia teve de deixar de ler porque a sua intenção não era escrever um livro de história, mas de ficção. Isso sente-se, ainda que a autora revele que houve várias secções que acabou por cortar, partes em que expunha contextos, articulava narrativas históricas. É talvez esse lado um pouco explicativo que pode estorvar o fluir da narrativa, e que se intromete na escrita cristalina e, a espaços, poética de Suárez. Ainda assim, os diálogos entre tempos – presentes, passados, entretantos históricos ou ficcionais – são sólidos. Ernesto, a sua irmã Tânia, o tio Miguelito, o amigo do pai Antonio, o velho Berto, e até aquele pai ausente reconstruído por uma miríade de olhares, sem nunca ter direito (também ele) a existir para além da sua medalha de “herói da revolução”, dão corpo a um conjunto de vozes que pululam na sociedade cubana e demonstram que Karla soube escutá-las e articulá-las com sageza. É por isso que este romance pode ser lido, para trazer ao leitor uma referência paralela em Portugal, como uma espécie de O Retorno de que Cuba precisava, talvez porque, como diz Suárez, era preciso a distância para deixar assentar a poeira histórica e os ruídos da experiência testemunhal ou subversiva sobre a forma como Cuba lidou (e continua a lidar) com “a narrativa” de Angola.