500 anos depois, os Habib andam à procura de casa em Portugal
É da Turquia que chegam mais pedidos de nacionalidade de descendentes dos judeus obrigados a sair do país no século XV. Metade da família Habib, de Istambul, já é portuguesa. Vieram todos em excursão ao país de onde afinal saíram. Andavam pelas ruas de Lisboa muito atentos: “Será que são como nós?”
Não é para se gabar, mas Sargon Metin tem um certo jeito para escolher “a prenda certa para a pessoa certa”. Um presente que trouxe da Mongólia, por exemplo, teve o condão de deixar um amigo em lágrimas. Mas ter oferecido a Ceyda Habib um galo de Barcelos trazido de Portugal, logo na primeira vez que saíram juntos, foi de mais. Sargon não adivinhava que Ceyda iria receber o telefonema de um primo a revelar-lhe “afinal viemos de Portugal”. E que, por causa dessa informação, toda a sua família podia tentar ser portuguesa. E voltar.
Quando as coisas se tornaram mais sérias com aquela que agora já era sua namorada, Sargon, que é empresário, quis levar Ceyda numa viagem de dez dias ao país de onde tinha trazido o galo de louça e onde tinha trabalhado durante três anos. Ceyda jura, “quando cheguei a Lisboa essa primeira vez, uma cidade que é turística, como Londres ou Paris, senti: aqui é a minha casa. Foi estranho Lisboa”.
Tem-se avós, bisavós, trisavós, tetravós. Já não se fala de pentavós. Que nome se dá a um familiar que viveu há 500 anos?
Não há como designar esse parente que, soube Ceyda pelo primo em Abril de 2015, tinha o nome Jacob Ibn Habib, que nasceu em 1460 na cidade castelhana de Zamora, mas que, para viver em segurança com a família, se mudou para Lisboa após 1492. É nesta data que os reis católicos Isabel e Fernando, monarcas de Castela, Leão e Aragão, ordenam: “Que os judeus e judias de todas as idades que residam em nossos domínios partam com os seus filhos e filhas, familiares de todas as idades e que não se atrevam a regressar a nossas terras. Se acaso algum judeu for encontrado nestes domínios ou regressar, será condenado à morte.”
Era por Jacob ter sido um ilustre grão-rabino de Lisboa, o último, que deixou vestígios da sua vida, ao contrário de antepassados mais humildes, que Ceyda, e toda a sua família, poderia tentar tornar-se portuguesa. “Um grão-rabino! Nunca tal me passaria pela cabeça, jamais, jamais. Imaginava que os meus antepassados fossem comerciantes”, confessa Refik Habib, o pai de Ceyda, que é empresário em Istambul, e também por mero acaso, já tinha estado uma vez em Portugal. Foi ao casamento do primo Arik, que é turco, com Rita, uma portuguesa. “Diga-me qual é a probabilidade de um turco se apaixonar por uma portuguesa na Índia e se casarem em Mafra?”, pergunta Ceyda, contabilizando coincidências que, para ela, depois de saberem de Jacob, se tornaram significativas. “Tudo nos empurra para Portugal.”
“Vamos ser portugueses”, dizia o pai de Ceyda à família quando se soube do antepassado com vida lisboeta. Isto porque, num acto que se quis de reparação histórica, desde Março de 2015 que o Estado português concede a nacionalidade a quem conseguir provar descender destes judeus sefarditas do século XV obrigados a sair de territórios que agora são conhecidos como Espanha, e de Portugal (Sefarad era o nome por que foi conhecida a Península Ibérica, daí o termo “sefarditas”). Espanha já permitia legalmente a possibilidade de adquirirem a nacionalidade há vários anos, mas, no final de 2015, também criou uma nova lei.
Imaginar um campo de refugiados no Alto Alentejo
Por mais que se tenha tornado plausível a hipótese de a família Habib poder vir a ser portuguesa, a sua concretização surgia quase como uma lenda, recorda Ceyda. Afinal, havia muitos judeus a viver na Turquia que se tinham candidatado à nacionalidade espanhola e alguns estavam há sete, oito anos à espera.
Comentava-se que a lei portuguesa era igualmente complicada. Refik Habib lembra-se de que surgiram teorias, de que as autoridades portuguesas exigiam vídeos a comprovar que se falava ladino (língua usada pelos sefarditas expulsos de Espanha e de Portugal), e bem, e até testes de ADN. Foram dois meses de concílios familiares a combinar como iriam fazer para provar a sua ligação a esse longínquo passado familiar.
Estamos todos sentados a jantar no amplo apartamento dos pais de Ceyda, num condomínio privado em Istambul, com seguranças à porta. À mesa da sala, numa decoração onde predominam o dourado e o branco, pergunto se conseguem imaginar o que seria a vida destes seus antepassados. Não há rosto de Jacob. Será que teria barba, sendo grão-rabino? Ficou dele o nome e um único livro da sua autoria, Ein Yaakov-Ensinamentos Inspiracionais e Éticos do Talmud, um clássico de literatura religiosa judaica.
A verdade é que, do horror das perseguições aos judeus, o Holocausto é muito mais presente e emocional do que o tempo da Inquisição, diz Refik. No primeiro caso, há fotografias, há filmes, de há 500 anos há pouco. “É uma história triste mas muito antiga.” É preciso imaginar.
Para voltar a este passado português dos judeus fugidos de “Espanha”, temos de usar o que conhecemos, o que nos é familiar no presente. Tomemos então um campo de refugiados sírios, daqueles que aparecem na televisão, pode ser na Grécia, e coloquemo-lo, por exemplo, no Alto Alentejo, uma das portas de fuga de judeus de Espanha. O cenário não seria muito diferente.
É Susana Bastos Mateus, historiadora da cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, quem sugere a comparação: às portas da vila de Castelo de Vide, por exemplo, há notícia de que se instalou um gigantesco acampamento de umas quatro a cinco mil pessoas que tinham ficado sem casa e que aí aguardavam autorização de D. Manuel I para entrar no país, onde, dizia-se, os judeus podiam viver tranquilos.
Muitos acabaram por ficar radicados na zona raiana: Bragança, Elvas, Idanha-a-Nova. Outros seguiram até ao litoral. Não se sabe que rota tomaram os Habib para chegar, seguramente de carroça, a Portugal. Certo é que a família se viria a instalar em Lisboa, não se sabe bem onde, mas pode tentar-se adivinhar. Jacob e a sua família viveriam muito provavelmente na Baixa, onde ficava a principal judiaria (um espaço que ocuparia uma zona onde hoje fica a Rua Augusta); tendo-se tornado grão-rabino de Lisboa, talvez habitasse próximo da sinagoga (que ficava algures onde hoje é a Rua da Madalena).
Mas a acalmia pouco durou. Os judeus têm cauda; os homens judeus têm menstruação como as mulheres; os judeus matam crianças; os judeus têm um cheiro que lhes ficou da morte de Cristo. Eram lendas medievais populares na altura, enuncia Susana Bastos Mateus, algumas delas reaproveitadas pelo nazismo. Outra seria a que, depois do baptismo, até a pele dos judeus melhorava, da purificação.
Nem o diabo de Gil Vicente
D. Manuel I ordena em 1496 a expulsão dos judeus, assim querendo “purificar” o país. Foi condição para que a princesa Isabel, filha dos reis católicos, casasse com o monarca português.
Mas a política de D. Manuel I é toda ambiguidade. Por um lado, manda-os sair; na prática, impede a sua saída. O que faz é oficialmente extinguir a existência de judeus, criando artificialmente uma sociedade integralmente “cristã”.
O processo, que começa em 1497, um ano depois da suposta expulsão, faz-se com baptismos forçados. Começou-se com crianças dos 4 aos 14 anos. Algumas eram, além de baptizadas, retiradas à força aos pais e entregues a famílias cristãs.
“Pais, levados ao desespero, vagueavam como dementes. Muitos preferiam matar os filhos com as próprias mãos, atiravam-nos a poços ou rios, suicidando-se em seguida”, cita a ex-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, Esther Mucznik, no seu livro Grácia Nasi - A Judia Portuguesa do Século XVI Que Desafiou o Seu Próprio Destino (Esfera dos Livros).
Depois dos mais novos, D. Manuel I manda retirar às famílias os filhos até aos 25 anos. Será nesta leva que será baptizado outro antepassado de Ceyda, Levi, o filho de Jacob, arrancado à família com 17 anos, em 1497. “Um grão-rabino não se ia sujeitar a isso”, comenta Sargon à mesa do jantar em família, imaginando o que poderia sentir o religioso, a fuga como uma questão de honra. Numa edição americana do livro Ein Yaakov (da editora Rowman & Littlefield), apenas se diz que Jacob arranjou forma de recuperar o fillho e de fugir de Portugal, não se explicando como.
Oficialmente erradicada a fé judaica, quis-se também destruir vestígios físicos da sua presença. As sinagogas foram desactivadas, a de Lisboa foi mesmo destruída, o cemitério judeu de Lisboa tornado pasto para animais. As pedras, usadas para erguer o Hospital de Todos-os-Santos, como refere a historiadora.
Apesar de muitos judeus forçados à conversão terem mudado para nomes cristãos, de passarem a ir à missa, sabia-se quem eram os ex-judeus, a quem chamavam de cristãos-novos. A sociedade portuguesa continuava assim dividida, os “cristãos velhos” a olhar com desconfiança para os recém-cristãos.
É este caldo cultural de suspeição e intolerância que vai conduzir ao massacre de Lisboa, a 19 de Abril de 1506, assim ficando provado “que a integração não tinha resultado”, continua Susana Bastos Mateus. “Houve um massacre de judeus em Lisboa?”, pergunta a família Habib à mesa. Não sabiam.
Leio aos Habib partes de relatos históricos daqueles dias: de mortos atirados para a fogueira onde ainda havia vivos; de grávidas atiradas pelas janelas para cima de lanças. E de como “era tamanha a crueza que até os meninos e as crianças que estavam no berço executavam, tomando-os pelas pernas, fendendo-os em pedaços e esborrachando-os de arremesso nas paredes” (Damião de Góis). Nesta parte, Ceyda arrepia-se, talvez porque na sala estejam três crianças, dois deles bebés: o seu filho Kevin, de quatro meses, e os seus sobrinhos Rayn, de dois meses e meio, e Jamie, de quatro anos, que quis trazer os brinquedos para a mesa.
Todas as fontes apontam para mais de mil pessoas mortas, escrevem Susana Bastos Mateus e Paulo Mendes Pinto no livro O Massacre dos Judeus (Alêtheia Editores).
A Moris Levi, o vice-presidente da comunidade de judeus na Turquia, não lhe interessa ouvir a descrição do massacre português, porque ele nada terá tido de singular. “Lisboa, Girona, Veneza. Pelas minhas contas, era matemático. Nessa altura, na Europa, havia um massacre de judeus de três em três anos.”
“Matar judeus era normal nos séculos XIV e XV”, escrevem os dois historiadores na mesma obra, explicando que os mouros eram o “inimigo externo” e que “nas próprias cidades, intramuros, havia o inimigo interno, o judeu”. “O diferente que deveria ser banido.” Sintomático é que nem o diabo de Gil Vicente deixe entrar na sua barca do inferno “o judeu”, por ser este “mui ruim pessoa”.
Tornar a nossos reinos livremente
Muitos judeus deixam Portugal a seguir ao massacre de Lisboa. É do ano seguinte o édito em que D. Manuel I os autoriza, afinal, a sair do país. Na decisão fica um recado que pode, se quisermos, ter leitura premonitória: “E aqueles que se forem poderão tornar a nossos reinos livremente quando quiserem, e lhes vier bem; e neles estar quiserem; e em suas idas, e vindas não receberão opressão, constrangimento.” Mais à frente: “Os que depois tornarem” serão “favorecidos e bem tratados”.
Os movimentos de saída de Portugal serão constantes ao longo destes anos, mas haverá um outro pico com a instalação da Inquisição em Portugal, em 1536.
No Largo de São Domingos, em Lisboa, há, desde 2008, um monumento a assinalar o massacre de 1506. Junto a ele estão hoje duas guineenses a vender amendoins e quiabos, um homem a pedir esmola amparado em canadianas e um casal a bebericar a ginginha que ali se vende. No seu livro Identidade e Memória na Comunidade Israelita de Lisboa (de 2014) há um entrevistado judeu que, confessa à autora, Xénia Venusta de Carvalho, nunca ter conseguido ir ao Teatro Nacional. “Por causa da Inquisição”, por ter sido “lá que foram queimados”.
Mas do tempo do Tribunal do Santo Ofício não há marcas físicas na cidade. Aqui, onde o Teatro Nacional Dona Maria II leva à cena Os Últimos Dias da Humanidade, esteve um dia a sede do Santo Ofício. Daqui saíam, rodeadas de público, procissões de penitenciados vestindo trajes brancos com o seu próprio rosto pintado entre chamas, a antecipar o que viria mais tarde. “Sim, era tão teatral quanto isso”, comenta a historiadora Susana Bastos Mateus. Havia pintores contratados para replicar as caras ardentes dos condenados em panos que eram pendurados como telas na nave central da Igreja de São Domingos, que conserva o nome, muitos deles restaurados para durarem.
Algures aqui, junto ao rio, onde continua o Chafariz D’el Rei, e onde hoje passam dois turistas namorados de mochilas às costas e está um sinal de trânsito de proibido parar/estacionar, eram ateadas as fogueiras. As cinzas dos corpos dos hereges não eram sequer removidas. De tão impuros, não se lhes podia tocar, lembra Susana Bastos Mateus, deixava-se antes que o vento e as marés as levassem para o Tejo.
A fogueira não era a pena mais comum. A principal eram as “abjurações”, declarações do confesso a dizer que errou e quer ser perdoado, que chegaram a ter lugar no Terreiro do Paço, com palanques para as individualidades.
Como penas, muitos judeus eram também enviados para o “bairro penitencial”, para daí saírem “reeducados”. Este ficaria onde hoje a Rua das Escolas Gerais faz uma curva que acompanha a linha do turístico eléctrico 28, em Alfama. Proibidos de contactar com o exterior, ficavam em celas de onde não podiam sair, a não ser para ir às missas e ouvir orações.
Rotas de fuga clandestinas
Depois do massacre, D. Manuel I apenas autoriza a sair de Portugal os judeus perseguidos que rumassem para reinos cristãos, temendo que em terra de mouros pudessem voltar a ser judeus.
Criaram-se verdadeiras rotas de fuga clandestinas, envolvendo pequenas embarcações de pescadores, que depois transportavam judeus para navios ao largo da costa. Judeus já instalados chamavam outros judeus, como sempre aconteceu nas migrações.
Havia quem partisse de barco pelo Norte de África ou pelo Norte da Europa, por Antuérpia, Inglaterra, daí para a Flandres, Amesterdão, depois Itália, refere Susana Bastos Mateus.
Muitos partiram, mas muitos ficaram. Prova disso? Um estudo publicado em 2008 no American Journal of Human Genetics mostrou que, em média, 35% dos homens no Sul de Portugal e 25% no Norte têm genes judeus sefarditas. O que significa que muitos se misturaram, sobrevivendo desta forma à intolerância religiosa.
Para muitos dos que quiseram e conseguiram fugir, o Império Otomano surgia como um dos principais destinos finais. Chegavam de lá novas de que era um oásis de tranquilidade, um porto de abrigo. Ali, ao contrário da Europa cristã, deixavam-nos ser livremente judeus, desde que pagassem os seus impostos.
Este facto explica que a Turquia seja o país de onde chegam mais pedidos de nacionalidade portuguesa, cerca de 40% da totalidade (2103 do total de 5566 que entraram desde Março de 2016 a Dezembro do ano passado). Seguem-se Israel e o Brasil.
Não é certa a data da fuga da família Habib de Portugal, mas o destino final seria Salónica, que agora fica na Grécia mas naquela altura era parte do extenso Império Otomano. O antepassado Jacob aí morreria aos 56 anos, por volta de 1516, antes de completar o livro que o imortalizaria. Seria o seu filho Levi, que chegaria aos 65 anos e também seria rabino, quem terminaria a tarefa. A obra, que tornaria a família localizável no tempo pelos seus descendentes turcos tantos séculos depois, foi desde então publicada mais de cem vezes. Estes Habib não mais tornariam à sua casa, nem em Espanha nem em Portugal.
Uma chave de geração em geração
Circula a ideia de que algumas famílias de judeus sefarditas teriam mantido a chave das casas originárias que foram obrigados a abandonar, na esperança de um dia voltar às suas terras. Seriam chaves passadas de geração em geração ao longo de cinco séculos.
A escritora judia luso-brasileira Tatiana Salem Levy, cuja família era de Castelo de Vide e no século XV fugiu para Esmirna, na agora Turquia, sempre ouviu falar da chave da sua casa portuguesa. Sempre se contou que desapareceu num incêndio, mas que existiu.
A coordenadora do Centro de Pesquisa de Cultura Sefardita Otomano-Turca, em Istambul, Karen Sarhon, é toda sarcasmo quando aborda este assunto. De Espanha vieram-lhe com essa pergunta: “Tem a chave da casa? A chave da casa?! Não passa de uma lenda romântica, eu sou uma realista.” É cáustica quando diz: “Se cabe na cabeça de alguém imaginar uma pessoa perseguida, sem poder levar nada consigo, com uma malinha, a carregar uma grande chave oxidada atrás. É um disparate”, mais ainda a ideia de uma família a ter mantido “há 520 anos consigo. Eu não sou estúpida”.
No museu da sinagoga de Castelo de Vide, a ex-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, Esther Mucznik, é citada a falar das chaves. “Reais ou míticas, alimentam o imaginário, transformando o passado num paraíso.” “Em todas as diásporas, há mitos”, diz-nos.
“A chave é simbólica. Pode ser uma chave, uma colcha, mesmo que já não exista fisicamente. Há uma história sobre esse objecto na família”, diz Susana Bastos Mateus. Um dos “meios de prova” previstos na lei portuguesa que dá nacionalidade a descendentes de judeus sefarditas é precisamente “a tradição oral da família”.
Uma língua que é uma casa
Mais do que as chaves, o importante é a história da chave ou outras histórias, e essas sim foram sendo passadas de geração em geração. Em ladino. A grande prova de pertença a esta minoria perseguida não é física, diz a estudiosa Karen Sarhon, é imaterial. Chama-se “ladino”.
E é extraordinário que tenha sobrevivido, comenta a investigadora que desde 2005 dirige um dos poucos jornais em ladino no mundo, o El Amaneser (O Amanhecer), um suplemento mensal vendido com o jornal semanário judeu Shalom. “Vaticinaram a extinção do ladino já lá vão 40 anos. Ainda não aconteceu”, sorri. Porque o ladino é uma língua interrompida na Turquia. É uma língua não ensinada na escola, que ficou circunscrita ao doméstico e muito às mulheres. Com a aprendizagem obrigatória da língua turca pelos judeus, na primeira metade do século XX, o ladino foi desaparecendo.
Falam-na ainda como língua-mãe judeus turcos com 70-80 anos, a geração que anda pelos 60 anos ainda a domina, a geração que anda por volta dos 40 ainda a compreende e fala alguma coisa, os jovens já não a falam, nota. Mas ainda é algo que os une. “Incorpora esta comunidade cultural.” Não sendo a sua língua nativa, como era a da sua avó, Karen Sarhon, 58 anos, sente que é seu dever guardar e cultivar esta língua sem país.
O ladino é uma língua que tem nela desenhado o mapa dos sítios por onde estes judeus passaram nos seus sucessivos exílios. “Mistura espanhol, português, italiano, grego, turco. É uma língua muito humanista”, diz o vice-presidente da comunidade de judeus na Turquia, Moris Levi. “Para nós, esta língua representa psicologicamente a ideia de casa.”
A maioria das palavras vem do castelhano (por isso se designa também judeo-espanhol), mas algumas são mais próximas do idioma medieval do que do contemporâneo. Moris Levi recorda como, quando visitou Espanha há uns anos, em negócios, e usou a palavra “aldikéra”, estranhou por ninguém a conhecer. Para ele, queria dizer “bolso”. O que descobriu foi que essa palavra permanecia no ladino mas tinha desaparecido do espanhol, que tinha adoptado a palavra bolsillo apenas. Seria uma palavra que, quando os judeus saíram do que é hoje Espanha, designaria uma bolsa de onde se tiravam as sementes, explica Levi. Era uma palavra vinda directamente da “Espanha” da Idade Média que ninguém reconhecia na Espanha do século XXI.
No Dicionário Ladino-Turco, editado por Karen Sarhon, as palavras têm, sempre que possível, a sua origem explicitada. O ladino tem português, menos do que tem turco, onde vivem há cinco séculos, mas tem. Os judeus sefarditas na Turquia continuam a usar o “ainda” português em vez do castelhano “aún”, o “agora” em vez do “ahora”. Sobreviveram no ladino dos dias de hoje palavras portuguesas com a grafia alterada, como “izolado”, “risko”, “encorajar”, “desbafar” (desabafar), “mobilizar”, “reskaldo”. Falar ladino é outro dos “meios de prova” previstos na lei portuguesa.
Em excursão por terras portuguesas
Desde Setembro do ano passado que Ceyda Habib, o seu pai e o seu cunhado são oficialmente portugueses. Faltam dois Habib, a mãe e a irmã Deniz, receberem a nacionalidade. O processo, a fundamentação de cada um deles é a mesma. É Jacob. E o ladino.
Enquanto esperam para ser todos uma família portuguesa, organizaram-se e, no ano passado, foram fazer uma excursão ao país de onde, afinal, vieram. Até a cadela Mia, que Ceyda faz questão que também apareça na fotografia.
Ceyda lembra de como, nesses dias portugueses, andava a família toda pelas ruas, de Lisboa, do Porto, a observar as pessoas, a olhar para os rostos dos portugueses. “Será que nos parecemos com eles? Será que são como nós?”
Diz que percebeu que sim, que vieram de lá. “Há uma maneira de falar e de agir, até de andar, de viver, que é diferente da de outros países europeus”, por exemplo de Inglaterra, de França.
O marido de Ceyda, Sargon Metin, tem família em Estrasburgo e, quando vão visitá-la à cidade francesa, Ceyda diz que sente que aquele “é um mundo diferente. É tão calmo, conseguimos ouvir-nos a andar. As pessoas falam muito baixinho”. Não é como em Portugal, “onde se ouve as pessoas a falar. Os turcos falam alto. Quero energia”. É porque, na verdade, eles se sentem mais turcos do que judeus, explica Ceyda. E, por isso, se sentem mais em casa em Portugal do que com judeus em França, “que são mais diferentes de nós”. “Os portugueses são parecidos com os turcos, somos mediterrânicos.” Portugal tem mais que ver com eles até do que Israel, onde confessa que se sentiu mais estrangeira porque não fala hebraico. “Quando se fala ladino com um espanhol; eles dizem que não é espanhol, quando se fala ladino com um português, eles dizem que não é português.” Não sendo nem uma nem outra, fez com que se tivessem sentido mais à vontade em Portugal.
E Ceyda, que já fala mal ladino, lembra o que aconteceu à mãe em Lisboa. Estava a família toda no centro comercial Colombo, no segundo piso, o da restauração, e cada membro da família quis ir satisfazer o seu apetite. Sargon, o tradutor de serviço – porque aprendeu português durante a sua estadia –, tinha como missão acompanhar cada um dos comensais ao restaurante da sua preferência, tinha de traduzir os pedidos e esperar que fossem aviados. Ceyda e ele escolheram comer massa, o pai foi à carne de rodízio, a irmã escolheu galinha.
“A minha sogra ficou para último. Estava esfomeada e furiosa. Estava farta de ficar à espera pelo seu guia”, recorda Sargon. Não fala inglês, fala francês, mas poucos a percebiam. E então decidiu ir, sozinha, fazer o seu próprio pedido em ladino, terá sido uma fatia de quiche, não se recorda bem, o que se lembra é que a perceberam. E o importante que foi.
“Veio muito feliz”, com o seu tabuleiro, recorda a filha. Tinha-se conseguido fazer compreender em ladino. “Foi uma coisa boa que me aconteceu, ser compreendida”, diz a mãe, Sevim. Foi um sinal de que algo, apesar de tantos séculos passados, os aproximava.
A partir desse episódio, Sevim Habib começou a falar com as pessoas na rua. “Em Portugal, a minha mãe foi feliz.” Passou a dizer à família “eu posso ir sozinha”, recordam o casal Ceyda e Sargon.
Sargon bem lhes dizia, quando começou a ir lá a casa e ouvia a avó a falar com os filhos, “mas vocês estão a falar português”, e eles respondiam “não, estamos a falar ladino”.
“Não vai ser difícil adaptarmo-nos”, conclui Ceyda. É que eles já decidiram. Depois dessa visita de reconhecimento familiar, ela e Sargon começaram a procurar casa em Portugal. O resto da família está a fazer o mesmo, os pais, a irmã de Ceyda e o cunhado. Ao jantar, muitas perguntas são sobre preços de casas, pedem conselhos sobre as melhores zonas de Lisboa.
Ser “Miguel”
Muito se tem transformado a Turquia desde o primeiro jantar de namorados em que Sargon ofereceu a Ceyda o galo de Barcelos. Casaram-se. Há quatro meses tiveram um bebé. Que nasceu num dia de mudança na Turquia.
Os dias dos nascimentos dos filhos são sempre especiais, ficam como episódios que se repetem em família. Mas o dia em que Kevin veio ao mundo não foi só único porque ele nasceu.
Ceyda e Sargon contam o episódio em tom anedótico, agora que já passou. Era a mãe de Ceyda, à cabeceira da filha parturiente a tentar tranquilizá-la de maneira algo bizarra, contam. “Sossega, que não está a haver um tremor de terra.” É que o hospital trepidava.
“Não era um tremor de terra, eram bombas e jactos a sobrevoarem o hospital que faziam abanar as janelas”, lembra Sargon. Foi no dia do “golpe de Estado” na Turquia, 15 de Junho de 2016.
Mal souberam o que estava a acontecer, foram a correr para o hospital. À hora em que estava prevista a tranquila e planeada cesariana no hospital Acibadem, o bloco operatório estava cheio de feridos do golpe. Kevin nasceria a 16 de Junho, às 16h45.
O clima na Turquia está diferente desde então. Não são eles que o dizem. É a imprensa a reportá-lo, todos os dias: “Turquia decreta prisão para 100 militares por vínculos golpistas”, “170 jornais, revistas e canais de televisão fechados, 125 jornalistas presos”, “Turquia encerra ONG e pede prisão perpétua para escritores”, “Turquia investiga 10 mil pessoas por ‘actividades terroristas”, “Depois do golpe falhado, Governo já suspendeu, demitiu e deteve cerca de 35 mil pessoas, do Exército, à polícia e justiça”.
Ceyda e Sargon decidiram chamar Kevin ao filho, mas também Michael. O acrescento do segundo nome foi já a pensar em Portugal, para que um dia ele lá possa ser chamado “Miguel”.
“Quero que o Kevin cresça nos dois mundos, é esse o meu desejo, vamos deixar tudo como está na Turquia”, mas querem ter uma casa em Portugal. A ideia é viverem metade do tempo em Portugal, a outra metade na Turquia. “Vamos e voltamos.”
Sargon e Ceyda são uma espécie de pioneiros nesta ida que é regresso. “Eu sou como uma ponte para eles”, diz Ceyda, que entretanto se tornou a representante da Comunidade Israelita do Porto na Turquia, uma das entidades que em Portugal certificam os candidatos habilitados a prosseguir com o processo de aquisição da nacionalidade.
O que pede a lei
“Como é que é Portugal? Como é que é a vida lá? Como é a economia? Os seguros? As escolas?”, perguntam ao casal muitos dos candidatos a portugueses que estão à espera. Na lista das famílias judias turcas que aguardam ser portuguesas, estão os Faro, os Franco, os Karmona, os Moreno, os Casado, os Pinhas, os Ventura, os Sarda, Gomel (de Gomes?), os Ferara (de Ferreira?). De uma comunidade de cerca de 16.500 judeus sefarditas existentes na Turquia, 2103 entraram com processos para tentarem tornar-se portugueses (números do Ministério da Justiça português), o que significa cerca de 13% da comunidade.
Quando alguém na Turquia lhes estranha os apelidos, por não soarem a turco, e lhes pergunta de onde vieram, a resposta pronta-a-usar é: “Os meus antepassados vieram de Espanha.” Se muitos judeus sefarditas não sabiam muito bem a diferença entre Portugal e Espanha, com as duas novas leis descobriram-na.
Portugal concedeu, até Dezembro do ano passado, a nacionalidade portuguesa a 431 judeus sefarditas, cerca de 63% são turcos (271 cidadãos); Espanha concedeu-a a três, resume o advogado de origem turca Yoram Zara, que vive em Israel e também trata de processos de cidadãos turcos.
Quinhentos anos depois, a lei portuguesa veio fazer os judeus sefarditas na Turquia descobrirem Portugal como um país mais generoso na admissão do seu erro histórico, diz o advogado Yoram Zara. “A lei portuguesa é muito mais razoável.”
Espanha tinha aberto legalmente a porta à concessão da nacionalidade há alguns anos, por decreto real, mas só em 2015 viria a atribuir, de uma vez só, a nacionalidade a 4522 pessoas. Mas a nova lei espanhola pede um teste de conhecimentos de língua e cultura, que obriga a ida presencial a um notário em Espanha, razão por que os principais candidatos chegam de países como a Argentina e a Venezuela e não de países como a Turquia.
A lei espanhola é olhada com alguma crítica. Alguns judeus turcos, que preferem não ser identificados, dizem que é injusto que um país que os expulsou há 500 anos agora lhes venha exigir conhecimentos sobre uma cultura que eles não conhecem nem devem ter de conhecer. No teste de escolha múltipla, podem surgir perguntas como: “Quem é o actual Rei de Espanha? Qual é a profissão de Penélope Cruz? Qual a principal exportação de Espanha?” Portugal não exige que se fale português, nem que se conheça a cultura. O que se pede são provas dessa longínqua ascendência.
Por esta via, a nova lei veio fazê-los interessar-se por Portugal. “Haverá centenas de judeus turcos a comprar casas, propriedades em Portugal, a pensar estabelecer as suas empresas no país”, constata Yoram Zara. A visitar o país.
Yoram Zara, ele próprio cidadão português desde Dezembro do ano passado ao abrigo desta lei, concorda com um artigo recente na imprensa turca que mostra como Istambul é parecida com Lisboa: “As duas são cidades assentes em colinas, são ambas cidades de rio, com uma ponte que une as duas margens, há castanhas assadas à venda na rua no tempo frio, o pavimento é feito de pequenas pedras.” “Lisboa é um bocado oriental”, comenta.
Mas querer tentar ser português depende muito da idade e tem que ver com a necessidade. Há diferenças nas motivações entre os mais velhos e os mais novos. Os que já não precisam e os que ainda podem precisar.
As raízes dos Albukrek
Viktor sempre soube que o seu Albukrek vinha de uns Albuquerques idos de Portugal. Os séculos tinham-lhe mudado a grafia, o “que” passou a “k” porque o turco não tem aquela sílaba. Sempre ouviu falar do seu quase homónimo mais famoso, o vice-rei da Índia Afonso de Albuquerque. Era piada de família, entre pai e filho, “[o nosso antepassado] tinha tantas terras e não nos deixou nada”.
Quando o filho, um engenheiro ambiental a viver no Canadá, esteve em Portugal, há uns quatro anos, sempre que havia uma tabuleta com o apelido familiar grafado à antiga mandava fotografias. Gracejava na legenda: “Mais uma das nossas ruas.”
A origem portuguesa da família sempre foi um episódio quase folclórico, sem consequências para as suas vidas, mesmo quando, recentemente, os seus amigos começaram a perguntar a Viktor Albukrek: “Porque não tocas à campainha de Portugal? Aproveita a oportunidade.” “Que oportunidade?”, responde, perguntando.
Viktor Albukrek, 85 anos, aponta para a parede ao lado do sofá rosa-velho, adornado com um naperon rendilhado branco – está pintada de tinta bege a desaparecer. Pensou que era boa ideia pintá-la de fresco, mas a mulher Rahel insistiu que é melhor deixá-la como está. É tarde de mais para renovações. “Não temos força para pintar as paredes, para mudar de casa, não tenho intenção de mudar de país”, diz Viktor. Na improvável hipótese de algum dia voltar a Portugal, fará como sempre fez: “Peço um visto.”
O tempo das grandes viagens terminou para o casal, diz Viktor, que num cinzeiro da sala tem acumuladas caixinhas de fósforos de hotéis de todo o mundo, o Crown Princess de Kuala Lumpur, o Meridien de Melbourne, International Hotel de Nairobi, o Palacio de Madrid.
“As nossas raízes estão aqui”, diz Viktor. A sua mulher, Rahel Albukrek, esteve doente. Era guia turística, como ele, “eu falava francês, espanhol, inglês, ladino e turco. O AVC levou o francês, o espanhol, o inglês e o ladino. Fiquei com o turco”.
Mas Viktor Albukrek tem uma curiosidade, quase todos a têm, com uma pitada de desconfiança, de quem se habitou a achar que a generosidade tem de ter explicação. “Porque é que Portugal fez esta lei?” “Houve pressão de Israel?” Respondo que chegou a haver uma petição popular e que os partidos a aprovaram no Parlamento por unanimidade.
Independentemente dos motivos, Viktor diz que “é uma satisfação sentir que estão a abrir as portas de regresso aos judeus, a deixá-los retornar”. Para os mais velhos, a importância é simbólica, diz. É o fechar de um ciclo.
Uma relíquia depositada nas mãos
Não tinha qualquer intenção de se tornar portuguesa aquela velha senhora. Estava doente com cancro, 82 anos, chegou com o marido David e uma enfermeira à vila alentejana de Castelo de Vide. O ex-presidente da Câmara Municipal da povoação, Carolino Tapadejo, ele próprio um descendente de judeus expulsos de Toledo, percebeu que era a última viagem que faria. Viu-a chegar a 31 de Maio de 2015.
“Queria vir despedir-se da sua terra, uma terra onde nunca tinha estado.” E trazia consigo um objecto que “queria devolver”, lembra o ex-autarca. Era uma chave preta oxidada, que abriria a porta da casa portuguesa da família.
Dizia a senhora, chamada Esther Cohen, cuja família tinha fugido de Portugal para a agora Turquia no século XV, que tinha sido passada de geração em geração, pelas mulheres. Além da chave, tinham-lhe chegado os nomes dos vizinhos de há 500 anos. A senhora sabia que na Rua da Fonte, ainda sabia o nome, a sua longínqua familiar viveria junto a “uma Ana, uma Benta, uma Arrenega, um Tristão e um Penhasco”, recorda Carolino Tapadejo, que apontou cuidadosamente estes nomes.
O ex-autarca sempre tinha ouvido falar da história da chave, nunca pensou que existisse. “Imagine o que foi aquele momento arrepiante, ver esta senhora, a chorar, chorava ela, eu, o marido, a enfermeira, depositar nas minhas mãos a maravilhosa relíquia, acompanhada de outra mais pequena, certamente de um armário.” Devolvia-a à vila alentejana porque não tinha filhos a quem a deixar.
Carolino Tapadejo pegou nela e encaminhou-se para a rua que tinha mantido o nome de há 500 anos, é a que leva da sinagoga (que agora é um museu) à Fonte da Vila. A rua fica na parte norte da vila, onde ficava a judiaria, porque era a parte mais sombria, mais húmida, mais inclinada, e andou a experimentá-la de porta em porta. “O que é que andas aqui a fazer?”, perguntava-lhe os habitantes que o conhecem bem porque naquela rua fica a casa dos seus sogros. “Ando a ver se a chave entra.” Não se importaram que a tivesse experimentado em 14 fechaduras. Nenhuma abriu. As casas estão no mesmo sítio, as portas de madeira terão apodrecido com o tempo. “Gostava tanto que uma porta se tivesse aberto.”
Sempre que Carolino Tapadejo faz visitas guiadas ao lado menos soalheiro de Castelo de Vide, a história de Esther Cohen é o mais recente acrescento. A chave só está à espera de ter um expositor só para ela no museu-sinagoga.
Oportunidades para os filhos
Se para os mais velhos a lei serve sobretudo pelo seu simbolismo, para os mais novos um passaporte português ainda pode mudar vidas.
Estamos a meio da entrevista com Karen Sarhon, nas instalações do jornal Shalom, e Gila Barokaa Erbes, funcionária da biblioteca, abeira-se de nós. Ar ansioso, encadeia várias perguntas “de onde são?”, “de Portugal?”; “são portugueses de Portugal?” Respondo que sim. E Gila brinca: “Mas é como se fosse a vinda do Messias.” Diz que precisa muito da nossa ajuda. Não tem dinheiro para pagar a advogado e tradutor e está a tentar fazer todo o processo sozinha, ela e o Google translator, bem sabe que é um conselheiro linguístico com falhas, mas é o que tem. “Eles percebem isto?”, diz mostrando um documento escrito num português que, no mínimo, se pode dizer que tem falhas.
Na mala castanha de senhora que segue com ela para todo o lado andam quatro cartas vindas da Rua Rodrigo da Fonseca, 198, Lisboa, Instituto de Registos e Notariado. A família do marido é descendente de uma família Barrocas que o tempo transformou em Barokaa.
Gila, 56 anos, tem dois filhos, um é autista. É mais pelo filho saudável que está a fazer tudo para serem portugueses. Ter um passaporte europeu é uma porta aberta de oportunidades. É Schengen. Mas parece-lhe que o processo nunca mais tem fim. “Quero que isto acabe.”
Muitos judeus turcos têm os filhos a estudar fora, nos Estados Unidos, em Israel, mas vêem-se na iminência de ter de voltar, porque o passaporte turco não é dos mais fáceis em termos de mobilidade, explica Karen Sarhon.
Ser português ou espanhol é poder circular, é poder ficar sem prestar contas, sem pedir vistos. É poder escolher fazer o mestrado em Espanha, como agora pensa a filha de Karen Sarhon, desde que a mãe se tornou espanhola. “A lei é importante especialmente pelos nossos filhos.”, refere a investigadora. E mais não dizem. São conversas interrompidas. Apesar das perguntas.
“Não sabemos se nos pode ajudar, ser portugueses...” (Gila Barokaa Erbes); “Nunca sabemos o dia de amanhã...” (Refik Habib). “Nunca sabemos o futuro.” (Ceyda Habib Metin).
São frases-clichés que podiam ser ditas por qualquer pessoa em qualquer país, no café, no autocarro, mas quando são pronunciadas por judeus hoje a viver na Turquia ganham outra dimensão. São frases que terminam em reticências que têm de servir de pontos finais. São conversas cheias de não dizeres que não podem ser eles a preencher.
O P2 esteve em Istambul na semana em que o partido no Governo, Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), avançou com um projecto de lei que queria suspender as condenações de acusados de agressão sexual a menores, desde que o agressor casasse com a vítima. Acabou por recuar.
Na cosmopolita avenida Istiklal, há uma discreta banca de recolha de assinaturas contra a proposta de lei, onde a aproximação de alguém a perguntar do que se trata, percebe-se, é olhada com receio. “É contra a lei das crianças”, respondem laconicamente.
Nas conversas com judeus sefarditas, todos fogem a perguntas sobre a situação política na Turquia. O nome do Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, nunca é pronunciado, é até evitado.
“Há um sentimento de preocupação”, constata o advogado Yoram Zara, que fala à vontade porque vive em Israel. “A Turquia está a ficar cada vez menos uma democracia, cada vez menos secular. Os judeus são naturalmente pró-secularização, pró-liberdade de expressão, e isso faz com que não se identifiquem com o partido islâmico no poder.”
O que se está a assistir “é a uma islamização da sociedade”. Há quem sinta que o som dos altifalantes das mesquitas de onde se chama para as cinco orações do dia subiu de volume. “Sentem também que a Turquia está mais instável, com os ataques terroristas”, junta Zara. Todas razões para se estar preparado.
Discretamente judeus
Neve Salom é a maior sinagoga de Istambul e, no entanto, nada tem a assinalá-la. O mesmo para o jornal Shalom, que fica num número 12 de Istambul onde nem entrando no hall do prédio se vê uma placa a indicar estarmos no sítio certo. São dois locais recatados. Esta é uma comunidade propositadamente discreta. “O meu pai sempre disse, és judia, tem cuidado, fala baixo, sê discreta”, conta Gila.
A sinagoga e o jornal são também dois espaços protegidos. Na Neve Salom há um segurança à porta, no interior passa-se por um detector de metais até se abrir uma porta blindada preta, da espessura de uma parede larga, o passaporte fica refém à entrada. No prédio do Shalom, é o porteiro quem nos confirma ser aquele o sítio certo antes de nos abrir as malas e passar-lhes um detector de metais dizendo-nos para ir até ao terceiro andar, onde a escadaria está interrompida por um gradeamento cinza. Toca-se então a outra campainha e há alguém que faz abrir a porta e só lá dentro, na parede, está escrito com todas as letras o logotipo do jornal judeu.
A experiência mostrou-lhes que é mais seguro ser judeu dentro de portas. Não é mania da perseguição. Em 1986, morreram 22 pessoas que estavam a rezar na Neve Salom, com bombas supostamente do Hamas; em 2003, dois camiões-bomba atingiram as ruas onde ficam as sinagogas Neve Salom e Bet Israel, morreram 23 pessoas, ficaram feridas cerca de 600, a autoria coube supostamente à Al-Qaeda.
Uma coisa é o clima político, outra é o ambiente social. E não há melhor termómetro para medir os níveis de intolerância, de anti-semitismo em concreto, diz Mois Gabay, que é guia turístico e cronista do Shalom, do que andar de táxi e ouvir os seus condutores e, claro, as redes sociais. E aí, sim, nota o aumento das teorias da conspiração envolvendo Israel e os judeus em geral, uma minoria habituada a ser bode expiatório. Como cronista, já veio defender a criminalização dos discursos de ódio anti-semita, com direito a aplicação de multas, e um sistema de educação que não mostre os judeus como “outros”. “Afinal, vivemos cá desde a Inquisição. Eu adoro Istambul, as minhas raízes estão aqui.”
Há bairros de Istambul em que tenta primeiro perceber se é seguro dizer que se chama Mois, nome que vem de Moisés - “o meu nome é muito judeu, tenho de ter cuidado”; em locais onde se sente menos à vontade, Mois é Musa.
A somar ao clima político e social, Esther Muscznik acredita que há “um receio que se tornou quase visceral, instintivo. Os judeus têm sempre medo de que, em qualquer lado do mundo, tenham de sair”. Pensar nessa possibilidade tornou-se “atávico”.
“Todo o judeu tem na sua formação essa espécie de dor da expulsão, não sei se a palavra é ‘medo’ ou ‘fantasma’. Foram expulsos muitas vezes, de muitos lugares”, diz Tatiana Salem Levy. Desde a expulsão do Egipto. A Inquisição. O Holocausto. “Marca a identidade de um povo. Ser judeu é também pensar sobre a expulsão.”
Ser judeu é então também viver essa intranquilidade, um sobressalto existencial, diz Karen Sarhon. “Somos o povo errante, nunca aceite, que nunca tinha casa. Faz parte da nossa herança: somos os que a qualquer momento podem ser mandados embora.”
É por isso que, para muitos deles, ter um passaporte português ou espanhol surge como uma espécie de seguro, um plano B. “Nunca se sabe”, diz Michael Rothwell, membro da direcção da Comunidade Israelita do Porto, “se o país que os expulsou no século XV pode ser o mesmo que os salva no século XXI”. Para Gila Erbes Barokaa, “a lei portuguesa pode ser a chave”.