Dinheiro, mercado e empresa

A democracia está em risco. As consequências sociais e políticas começam a fazer-se ver.

Aqui há umas décadas, mais do que gostaria de admitir, fui ao Porto visitar um amigo que tinha partido uma perna. Tal, contudo, não o impediu de nos servir, com inesperada vitalidade e esperado entusiamo, de guia das atracções turísticas da hoje tão atraente e vibrante cidade líquida. Ao fim da tarde, fomos tomar um copo a um bar no Graham, decorado à Pub, o que era então novidade.

Na parede ao lado do banco onde me sentei, estava um dístico, que dizia ”Remember the golden rule: he, who has the money, makes the rules”. Nunca esqueci esta frase. Pelo humor cáustico e pela realidade crua em que gostaríamos de não acreditar, sabendo ter muito de verdade.

Se na época dizê-lo de modo tão frontal era subversivo, hoje não só é a doutrina preponderante como é aceite com indisfarçado júbilo por quem usufrui desse adágio.

Há uns anos, rascunhei um artigo que nunca terminei, a que dei o título de “O Bezeuro de Ouro”. Não era a antecipação da crise que sobreveio no final da década passada. Apenas a impressão que me causava a “financeirasão” da economia e também a deificação do dinheiro, transformado no Senhor único e todo poderoso, com o mercado a servir de igreja e as empresas de crentes.

E desse modo a constatação de que os recursos financeiros estavam a ser desviados da economia para a especulação financeira, que se festejava como um novo maná, em detrimento da produção e da economia, relegando as pessoas (que, na perspectiva da economia, beneficiavam de ser também consumidores, mas na especulação financeira são inúteis), a  “recursos humano” (a expressão é reveladora) um mero custo a manusear numa qualquer equação matemática despida de qualquer consideração ética.

Também reflectia, nesse rascunho, a sensação de que o capitalismo, depois de ter escapado à ameaça comunista e de quase se afirmar como o modelo consensual, se estava a destruir pelo capitalismo de gestores, em que os proprietários do capital deixam de o administrar e o entregam a essa classe de novos sacerdotes da religião monetarista que, além de chorudas remunerações, auferem comissões quando aumentam as acções das empresas que gerem, e se salvaguardam com indemnizações milionárias se forem dispensados por a sua gerência desagradar aos accionistas. O que levou à economia de casino.

Quando estava em Roma, Tremonti, ministro das Finanças do Governo Berlusconi, disse-me que ao nível de facilidade a que chegara a livre circulação de capital nos últimos vinte anos, os Governos não podiam taxar o capital. Só podiam recorrer ao aumento de impostos das classes médias.

E não só não podem taxar o capital, como, para atrair investimentos, têm de conceder facilidades aos investidores. O que se chama a socialização dos custos, que têm naturalmente de ser suportados pelos contribuintes.

A isto acresce a desregulação que permitiu às grandes instituições financeiras lançar produtos tóxicos que escaparam totalmente à fiscalização dos estados.

Hoje a então singular e divertida frase do pub já não é uma mera expressão de sabedoria popular. É a expressão da nova organização de poder de um mundo em que os governos democraticamente eleitos estão reféns dos mercados financeiros e não têm capacidade de desenvolver as políticas para que foram eleitos. São os mercados, entidade sem cara, que ditam as regras do jogo sem qualquer estratégia ou perspectiva que não seja a da maximização do lucro e a ganância dos indivíduos que o manejam, num ambiente sem baias que convida à corrupção e ignora as consequências políticas e sociais que daí possam advir.

Foram estas as causas da crise de 2008, que está longe de estar ultrapassada e que continuará a assombrar a evolução da economia enquanto se mantiver este estado de coisas, continuando a agravar as desigualdades e a transferir o poder efectivo dos povos para os senhores dos mercados, criando, numa arrepiante recessão histórica, uma espécie de feudalismo financeiro.

A política está refém da máxima do Pub. A democracia está em risco. As consequências sociais e políticas começam a fazer-se ver.

 

 

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