Doze anos crítico
Quando assumi o papel de crítico teatral, imaginei uma comunidade de debate onde o teatro era não tanto um espelho que reflectia a sociedade, mas mais um martelo que forjava a realidade. Essa comunidade parece que se desvaneceu com o tempo.
Termina aqui a minha ação enquanto crítico teatral do PÚBLICO. Quando comecei, em 2005, escrevia uma crítica por mês, sobre espectáculos do Porto. Em Lisboa, havia mais duas pessoas a fazer crítica teatral. No Diário de Notícias e no Expresso havia textos todas as semanas. Hoje, só a Time Out Lisboa e o Jornal de Letras publicam regularmente. Na rádio e na televisão, na imprensa diária e semanal, nada.
Durante mais de uma década, conciliei a escrita de críticas e a escrita de peças, fazendo críticas no Porto e criando espectáculos em Coimbra. Esse tipo de exercício pontual foi possível porque havia várias pessoas a escrever crítica. E foi necessário porque os jornais consideraram dispensáveis os críticos a tempo inteiro. Mas, desde 2015, à medida que os colegas foram deixando de assinar críticas na imprensa, tornei-me o crítico de teatro que estava há mais tempo no ofício. A responsabilidade perante o público de teatro tornou-se maior. A dificuldade em cumprir essa missão também. Pode uma única pessoa — seja em nome do PÚBLICO, seja em nome da imprensa, seja em nome do teatro — dar conta da produção teatral de um país? Eu preferia que houvesse mais gente a escrever, em vários jornais, programas ou sites, viajando pelo país inteiro sem depender de ninguém.
Quando assumi o papel de crítico teatral, imaginei uma comunidade de debate onde o teatro era não tanto um espelho que reflectia a sociedade, mas mais um martelo que forjava a realidade. Essa comunidade parece que se desvaneceu com o tempo. Aquele debate que eu imaginara revelou-se afinal, ao fim de uma dúzia de anos, um diálogo esparso. A crítica hoje é feita nas trincheiras digitais das redes sociais, ao sabor do escândalo e da sensação. O crítico convencional não passa de um sniper a quem ninguém disse que a guerra acabou. Só é sniper quem quer.
Mas não é só isso. O desinteresse é geral. Mesmo as experiências teatrais mais premiadas e reconhecidas desse tempo foram apresentadas demasiado poucas vezes, para demasiado poucas pessoas. Como lutar contra isso?
O sonho do teatro como um facto social amplo, popular, participado, como vejo que existe, por exemplo, em Berlim ou em Buenos Aires, parece-me cada vez mais distante. Ao contrário, tenho um pesadelo, em que o teatro está isolado, não desperta o interesse dos cidadãos, e não tem autonomia em relação a governos, câmaras, televisões, rádios e jornais. As artes estão submetidas aos processos de gestão, marketing, relações públicas e propaganda eleitoral, accionados dentro da própria administração pública, que servem os ideais da elite nacional. Neste pesadelo, há um cartaz de espectáculos em perpétua mudança, peças que nunca chegam a ser vistas, e muito menos debatidas; encenações celebradas por muitos como se fossem amadas por todos; espectáculos cujo acto único, dos bastidores à boca de cena, é a coroação do herói, seja ele o artista, o príncipe, o candidato.
A imprensa faz parte do espectáculo. Os artistas do teatro independente tiveram como sucessores os directores de salas de espectáculos. Os jornalistas viram suceder-lhes as agências de comunicação. O formato das críticas está vazado, posto que foi ao serviço de tudo menos do teatro. A alternativa é acordar.
O teatro tem como primeiro e último reduto a cena. Há festivais, teatros e artistas que trabalham contra os ventos. É preciso estar entre eles, dentro de cena, lutando com as armas da ficção e da actuação para impedir que as salas de teatro fechem. O resto não é preciso — ou é? Ora, despeço-me do lugar da crítica, leitores reais e imaginários, para dar a vez a outros. Temos encontro marcado, para mais tarde, nas plateias e nos palcos desses teatros.