Acordar para a Democracia

Acontecimentos no estrangeiro fazem-nos viver num oceano de notícias e opiniões sobre o "estado da democracia". Terá chegado a hora de pousarmos o jornal e tentarmos algo de novo aqui em Portugal?

1. Disfunção narcotizante. Foi esse o nome dado pelos sociólogos americanos Lazersfeld e Merton aos efeitos perniciosos de consumirmos abundante cobertura noticiosa sobre os temas da actualidade. O resultado? Com o tempo, mantermo-nos a par das notícias passa a ser visto como sinónimo de participação cívica. Saber - e, o que pode ser igualmente trabalhoso, preocupar-se com - o que se passa pelo mundo torna-se a nossa resposta enquanto bons cidadãos. No final deste processo, o consumo de informação e opinião substituiu a acção e envolvimento cívicos. Esta ideia tem pelo menos 60 anos, mas, se lhe adicionarmos um par de clicks diários no botão "partilhar" do Facebook, a imagem dificilmente poderia estar mais actual.

Quando pensamos nos milhões de palavras escritas (e lidas) nos últimos meses e por todo o mundo sobre o "Brexit", Trump e "o estado da democracia" é difícil não pensar nisto. Donde virá esta incrível desproporção entre, por um lado, um quase inesgotável apetite por notícias e comentário sobre estes temas e, por outro, uma fraquíssima inclinação, enquanto sociedade(s), para explorar activamente novas formas de fazer política? E olhando, em particular, para o caso de Portugal, será que estamos condenados meramente a observar e comentar o que se passa por outras partes do mundo neste domínio, ao mesmo tempo que fazemos (discretamente) figas para que a ordem política local se mantenha imune a estas várias patologias?

Com este artigo pretendemos dar a conhecer uma tentativa de "reequilibrar" um pouco esta balança entre palavras e actos, entre comentário e acção. Apresentamos uma nova iniciativa da sociedade civil bem como um evento que ocorrerá esta terça-feira. Partilhamos também a visão que nos anima e que mostra aquilo em que poderíamos tornar o nosso país a médio prazo.

2. E se pudéssemos ouvir a voz, informada e reflectida, de cidadãos comuns sobre os grandes temas? A ideia soa radical, especialmente na sequência dos acontecimentos recentes. Afinal, os cidadãos parecem ter deixado bem claro que tomar decisões informadas e reflectidas não é o seu forte.

Mas será que o problema são realmente as pessoas? Ou terá mais a ver com a forma como os nossos sistemas políticos as convidam a formular e expressar as suas preferências? As eleições propiciam escolhas feitas de forma individual, pouco reflectida e com base apenas na informação que vem ao seu encontro através da comunicação social e das redes sociais. Dada a complexidade das escolhas apresentadas aos cidadãos (por exemplo, escolher entre duas visões tão diferentes para o futuro do Reino Unido como permanecer ou não na União Europeia), surpreendente seria se esta forma dos cidadãos expressarem preferências - limitados a escolher entre “este” ou “aquele”, “sim” ou “não”- produzisse, consistentemente e de forma fiável, decisões colectivas sensatas e ponderadas.

3. Ora, existe uma forma alternativa de dar a ouvir a voz do público e é isso que agora pretendemos trazer a Portugal com o recém-lançado Fórum dos Cidadãos (www.forumdoscidadaos.pt). O Fórum assenta numa estratégia inovadora: a organização regular de “assembleias de cidadãos” sobre temas da actualidade e a difusão activa dos seus resultados junto de políticos, comunicação social e o público em geral. O nosso trabalho visa estruturar o debate público e orientá-lo numa direcção construtiva, dando a escutar uma voz ponderada, oriunda da própria sociedade civil. Iremos conhecer, pela primeira vez, que escolhas fariam os portugueses, se tivessem o tempo, a informação e as condições ideais para reflectir e debater as mais importantes questões políticas da actualidade.

Como funcionam as assembleias de cidadãos? Trata-se de processos deliberativos cuidadosamente estruturados e assentes em experiências realizadas em países como o Canadá, a Islândia e a Austrália. Um painel de cidadãos, escolhido através de modernas técnicas de amostragem de forma a espelhar a diversidade da sociedade portuguesa e contando com o apoio de facilitadores, passa vários dias a escutar e a questionar especialistas, a analisar informação e a deliberar sobre um tema. No final, as suas recomendações são difundidas através de múltiplos canais (on e offline) bem como apresentadas em sessões públicas que ajudarão a alargar a discussão ao resto da sociedade portuguesa, assegurando o seu máximo impacto.

4. O primeiro destes eventos teve o título "Como Fazer-nos Ouvir?" e ocorreu nos dias 7 e 8 de Janeiro na Universidade Nova de Lisboa. Ao longo de um fim-de-semana, um painel de cidadãos escolhidos aleatoriamente, de várias idades, níveis socio-culturais e oriundos de diversas regiões do país, debateu diferentes ideias - apresentadas por políticos, académicos, jornalistas e membros do público - sobre como melhorar a comunicação entre os portugueses e os políticos que os representam. No final do processo, o painel de cidadãos seleccionou e desenvolveu as ideias mais promissoras, que apresentadas publicamente esta terça-feira Presidente da República.

5. Acreditamos que Portugal tem uma oportunidade única para se tornar uma referência mundial na área da inovação democrática. Um país com um território pouco extenso e dotado de uma infra-estrutura moderna; uma população com um nível de instrução cada vez mais elevado; um clima político estável aliado a instituições sólidas; e, reconheçamos, um ainda longo caminho a percorrer em termos de construir confiança entre os cidadãos e a classe política. Havendo vontade --política e cívica - para isso, o modelo que esboçámos pode ser expandido e podemos vir a ser o primeiro país a ter regularmente uma discussão, informada e reflectida, sobre os mais importantes temas à escala nacional.

Dificilmente poderíamos escolher uma melhor hora para acordarmos para uma prática mais activa da democracia.


 

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