A última crónica
O cordão umbilical, que não fui capaz de cortar antes, é cortado hoje, com esta crónica.
A relação que mantemos com as organizações onde trabalhamos, com o trabalho que fazemos e com a nossa profissão é uma relação sentimental. Por vezes, pode até ser descrita mais rigorosamente como uma relação amorosa. Não é, como tantos patrões infelizmente pensam, uma mera relação comercial, definida pelo valor de uso pontual que empregado e patrão atribuem um ao outro, e que pode ser facilmente substituída por qualquer outra financeiramente mais interessante.
Uma actividade profissional não é apenas um emprego mas uma identidade. Diz quem somos. É por isso que tantas vezes, quando nos apresentam a alguém numa função social, enunciam a nossa profissão ou a organização onde trabalhamos, ao mesmo tempo que dizem o nosso nome. Somos o que fazemos.
A organização onde trabalhamos não é apenas o local onde passamos umas horas todos os dias, mas — por ambivalente que seja a nossa relação com ela — o projecto ao qual dedicamos anos de trabalho, horas roubadas ao sono e à família, onde investimos a nossa imaginação e a nossa inteligência, para onde canalizamos muito do melhor de que somos capazes.
Foi por isso que, quando abandonei os quadros do PÚBLICO em 31 de Julho de 2009 e, ao mesmo tempo, abandonei o jornalismo, só o consegui fazer porque considerava que a relação amorosa que tinha mantido com o PÚBLICO desde antes do primeiro momento da sua gestação se tinha esgotado.
Tive a sorte, a honra, o orgulho e o prazer de viver, no grupo dos nove fundadores do PÚBLICO, anos de paixão, pelos quais estarei sempre em dívida para com o Vicente Jorge Silva, que ensinou a todos os que podiam aprender que o jornalismo se faz com a dignidade de uma feroz independência e sempre com prazer e irreverência. Foram anos de paixão e de diversão os primeiros anos do PÚBLICO, como já tinham sido, ainda que sem a mesma intensidade, os seis anos em que tive a sorte de trabalhar com o Vicente no Expresso-Revista. Depois disso, a relação com o PÚBLICO atravessou as vicissitudes de muitas relações amorosas, com desilusões e crises de confiança, com agruras e novos entusiasmos e novos desencantos, mas foi sempre possível encontrar um resto de afeição para manter a chama acesa, até ao dia em que isso deixou de ser possível. Dizia então aos amigos que me perguntavam se não sentia saudades da redacção que tinha esgotado a minha relação amorosa com o PÚBLICO, depois de gastar os últimos restos de carinho que tinha conseguido encontrar escondidos nos cantos. Não era verdade.
E não era verdade porque, mesmo depois de ter saído do jornal, eu tinha continuado a manter esta mesma coluna — que iniciei há 16 anos, a 2 de Janeiro de 2001, com uma crónica sobre os riscos da Internet para a privacidade. Já não tinha o estatuto de jornalista, mas sim o de colunista, o registo da coluna foi mudando do comentário para o da opinião, de acordo com a maior liberdade do meu novo papel, mas escrever aqui, precisamente neste espaço, mantinha viva e bem acesa a minha relação com o PÚBLICO e com o público. É esse cordão umbilical, que não fui capaz de cortar antes, que é cortado hoje, com esta crónica, que será a última publicada nestas páginas.
Aos leitores que foram, durante 16 anos, a razão de ser dos meus textos, e cuja presença foi para mim tão gratificante, digo apenas que espero voltar a encontrá-los por aí. Eu continuarei certamente a escrever.