A impotência é o contrário da democracia
Tudo à nossa volta nos ajuda a celebrar o Natal mas nada nos ajuda a salvar as crianças de Alepo.
Alimentamo-nos de ideias e de sentimentos. Também precisamos de pão, mas não é o pão que nos faz querer viver amanhã. Quando nos perguntamos o que desejamos para os nossos filhos não pensamos nas coisas materiais. Não porque não sejam necessárias mas porque as sabemos insuficientes, porque sabemos que não chegam para viver, mesmo que cheguem para sobreviver. Pedimos que sejam felizes.
Podemos gostar do Natal por razões materiais, porque há ceia e férias e festa e presentes e decorações nas ruas, mas a principal razão por que gostamos do Natal é porque quando ouvimos “Paz na terra aos homens de boa vontade” queremos participar dessa festa. Sentimos que pertencemos a esse grupo de homens e mulheres de boa vontade e sentimos que podemos tornar o mundo melhor, nem que seja só um bocadinho, nem que seja só por um momento, nem que seja só aqui à nossa volta. E gostamos dessa sensação. Gostamos dessa ideia de Natal, que extravasa a fronteira do cristianismo e que nem precisa do “Glória a Deus nas alturas”. Por uns dias, no meio do frenesim das compras e dos preparativos para as festas, sentimo-nos um pouco mais próximos uns dos outros, porque alguém inventou um dia que esta era a festa da paz e da entreajuda. E assumimos um pouco dessa responsabilidade. Tentamos fazer coisas próprias dos homens e das mulheres de boa vontade, um bocadinho mais do que nos outros dias do ano. Fazemos mais donativos, damos mais esmolas, assinamos mais petições de causas humanitárias, tentamos ser menos gananciosos e menos agressivos, mais disponíveis. Às vezes oferecemo-nos para fazer trabalho voluntário. Às vezes até sorrimos para pessoas que não conhecemos. É sincero? Em parte é, ainda que também seja mentira.
Mas, se gostamos de nos sentir bem a propósito de nós próprios, se tentamos de alguma forma fazer o bem e ajudar o próximo, se gostamos do Natal porque tem um perfume disso mesmo, como é que suportámos todos estes anos o massacre da cidade de Alepo, com os seus cem mil mortos, entre os quais muitos milhares de civis, entre os quais muitos milhares de crianças? Como é que suportámos isto, apenas com um ou outro tweet a servir-nos de compensação, com uma ou outra assinatura numa petição, às vezes com uma participação numa manifestação raquítica a pedir justiça e paz para aquelas pessoas encurraladas numa guerra que não escolheram?
A resposta é a mesma que todos nos dão quando perguntamos o que podemos fazer para ajudar Alepo, para ajudar todas aquelas crianças de caras inexpressivas que já nem choram (o que poderá ser pior que uma criança que já se habituou a sofrer?). O que podemos fazer por todos os outros Alepos, além dos tweets e das petições e das manifestações? Nada. Tudo à nossa volta nos ajuda a celebrar o Natal mas nada nos ajuda a salvar as crianças de Alepo.
A triste verdade é que as democracias de baixa intensidade em que vivemos não possuem mecanismos que nos permitam a nós, ao povo soberano, exigir uma acção determinada mesmo quando se trata de urgências humanitárias. Pedem-nos que esperemos e confiemos nos poderes, mesmo quando estes estão ausentes ou são cúmplices dos crimes. O poder soberano que detemos não possui qualquer canal através do qual se possa exercer para salvar Alepos. Essa impotência que sentimos é o contrário da democracia. Essa impotência diz-nos que nenhum poder efectivo reside no povo. Uma das grandes tarefas à nossa frente é impedir que a democracia se transforme para sempre no regime da impotência dos homens e das mulheres de boa vontade.
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