A tempestade está só a começar
A "mudança" que os eleitores descontentes do Midwest quiseram impor pode ter efeitos especialmente negativos para quem a escolheu. Trump está a preparar Administração colada a Wall Street, às petrolíferas e com ligações à Rússia que em nada se enquadram na tradição republicana. Nada será como antes.
“Não interessa o quanto és esperto ou conhecedor. Os ‘briefings’ dos serviços de informação são fundamentais para se tomar decisões. Nenhum Presidente deve abdicar deles”
Barack Obama, entrevista a Trevor Noah no Daily Show, sobre Trump dispensar acesso a informação confidencial
Nos dias que se seguiram à eleição-choque de Donald Trump, houve uma corrente de interpretação do que terá acontecido a 8 de Novembro que optou por desdramatizar as consequências.
Trump iria ser, diziam, “absorvido” na Casa Branca pelo sistema e perceberia que a moderação seria a via mais indicada para funcionar.
Bastou um mês de trabalho da equipa de transição para ficar claro que a futura Administração Trump terá contornos ainda mais preocupantes do que a campanha presidencial faria prever.
Primeiro foi a escolha de Steve Bannon, ligado a movimentos de supremacia branca e guru ideológico da extrema-direita americana durante os anos Obama.
Depois, uma série de opções do Presidente eleito para postos chave do seu futuro governo, a indicar forte influência de Wall Street, da grande banca e das correntes ligadas ao negacionismo das alterações climáticas.
Restava uma certa esperança em relação ao Departamento de Estado.
A diplomacia americana tem sido, ao longo de décadas, uma reserva de consenso bipartidário, entre democratas e republicanos.
Mesmo em clima de crispação política entre as duas alas partidárias em Washington DC, a política externa costuma gerar entendimentos alargados entre os dois campos, que ainda se puderam verificar no primeiro mandato de Obama.
A indicação de Rex Tillerson para chefe da diplomacia americana é uma ofensa ao cargo de Secretário de Estado. A proximidade com Putin é assustadora. A falta de credenciais diplomáticas e/ou políticas é preocupante. Dirigir a Exxon Mobil não tem nada a ver com liderar o Departamento de Estado.
Barack Obama escolheu uma antiga rival e futura nomeada presidencial (Hillary Clinton) e um veterano de guerra e antigo nomeado presidencial (John Kerry), ambos senadores credenciados no momento das escolhas, para Secretário de Estado nas duas Administrações (2008 e 2012). Donald Trump escolheu um CEO de uma grande petrolífera, sem ligação à política e à diplomacia e completamente comprometido com Moscovo.
Esperar que "as coisas não sejam assim tão más" quando Trump entrar em funções na Casa Branca deixou de ser uma possibilidade.
Um cenário de bloqueio no Senado do nome de Rex Tillerson para Secretário de Estado é real – e isso é particularmente significativo.
Pelo menos três senadores republicanos (Marco Rubio, da Florida; John McCain, do Arizona; Lindsey Graham, da Carolina do Sul) admitem votar contra, olhando com muita desconfiança para a influência de Putin no preferido de Trump para o Departamento de Estado.
É de admitir que esse número de votos contra seja maior, impedindo assim a confirmação, desde que todos os senadores democratas também imponham o bloqueio à hipótese Tillerson para o Departamento de Estado.
Os republicanos só têm maioria de dois senadores no Capitólio (52 num total de 100) e convém recordar que Hillary Clinton, na primeira administração Obama, foi confirmada no posto de Secretária de Estado com 94 votos a favor e só dois contra (dos senadores republicanos Jim DeMint, da Carolina do Sul, e David Vitter, da Luisiana).
É suposto o Secretário de Estado obter uma forte maioria bipartidária – e é improvável que isso aconteça com Rex Tillerson.
Democratas e republicanos no Congresso mostram cada vez mais preocupações em relação a uma possível “interferência russa” na eleição presidencial americana de 2016.
A tese de uma suposta lua-de-mel entre o futuro Presidente Trump e a maioria republicana no Congresso não parece ter fundamentos sólidos.
Charles Krauthammer, um dos mais influentes comentadores conservadores da FOX, admitiu: “As ligações de Tillerson com a Rússia são um problema”.
A tempestade em Washington DC pode estar apenas a começar.
Donald Trump tem mantido, como Presidente eleito, o mesmo comportamento errático, imprevisível e, por vezes, irresponsável que teve como candidato presidencial.
Não resiste a responder directamente pelo Twitter a críticas de comentadores e adversários. Abdica dos briefings’ dos serviços de informação, mostrando pouco respeito pelos procedimentos de segurança e prudência em áreas-chave.
A hostilização da China e a vontade de revogar os acordos feitos por Obama com o Irão e Cuba são outros sinais de mudança clara no comportamento de Washington quando Trump tomar posse.
A forma como olhamos para o cargo de Presidente dos Estados Unidos está em risco.
Numa negação da política, Donald Trump quer transformar a Presidência dos EUA numa gestão empresarial agressiva e prepara-se para transformar a Casa Branca numa espécie de Trump Tower com poder global.
Mais coisas preocupantes: a equipa de transição do Presidente eleito vai tentar a remoção de Rose Gottemoeller, americana que é a número dois da NATO, do cargo de secretária-geral adjunta da organização do Atlântico Norte. Gottemoeller tem uma visão completamente diferente dos méritos e da importância da NATO, em relação ao que Trump disse na campanha.
Para compensar, o Departamento de Energia, ainda sob a égide da Administração Obama, recusou-se a enviar para os funcionários o questionário preparado pela equipa de transição de Trump sobre o posicionamento de cada um em relação às questões ambientais e alterações climáticas.
Mas depois de 20 de Janeiro, teme-se o pior.
Rick Perry, antigo governador do Texas e campeão das petrolíferas, será secretário da Energia, sendo que já defendeu a extinção do ministério que vai liderar. Scott Pruitt, o nome escolhido para dirigir a EPA (Agência de Proteção Ambiental), também é abertamente… contra a existência da EPA.
O sinal não podia ser mais claro: Trump vai mesmo mudar de forma radical a política dos EUA em relação à energia e às alterações climáticas.
A “verdade confusa” foi decisiva
Donald Trump será Presidente dos EUA sem ter ganho uma única cidade com mais de um milhão de habitantes.
Mesmo no Texas, estado profundamente conservador onde Trump venceu por nove pontos, Hillary Clinton ganhou folgadamente em Dalas por (61-34) e em Houston (52-42).
A América urbana e cosmopolita deu a maioria do voto popular a Hillary, mas a América rural e profunda concedeu a Trump a maioria no Colégio Eleitoral, essencialmente pelas três vitórias curtas, e totalmente surpreendentes, no Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.
O caso da Pensilvânia é revelador: Trump ganhou o estado por uma diferença de apenas 67 mil votos (2,912 milhões para Trump, para 2,844 milhões Hillary); Hillary ganhou largamente nas três maiores cidades (Filadélfia com mais 23%, Pittsburgh com mais 16%, Allentown com mais 5%), mas o mapa do estado, com excepção dessas três manchas azuis, aparece quase todo vermelho republicano, com Trump a ganhar em todos os condados rurais e nos locais com menos população.
Não houve, por isso, uma “onda Trump”, ao contrário da Obamania em 2008.
Não são movimentos comparáveis.
Se muitas vezes se tornou difícil referir nos últimos oito anos o termo “América de Obama”, mesmo com duas grandes maiorias presidenciais em 2008 e 2012, não se pode mesmo falar em “América de Trump”. São realidades bem diferentes e, no essencial, talvez sejam a negação uma da outra: Obama foi eleito puxando pelo melhor da América; Trump chegou lá pintando uma América pior do que ela, na verdade, é. Houve pelo menos um traço comum entre estes dois Presidentes tão diferentes: ambos se apresentaram à América como os candidatos da mudança e ambos tiveram discurso fortemente crítico da forma como se faz política em Washington DC.
No programa com o sugestivo nome The Messy Truth (A Verdade Confusa), Van Jones, comentador da CNN de tendência democrata, tentou perceber como foi possível que tenha havido transferências directas de voto de Obama para Trump no Midwest. Jantou na casa de uma família democrata de Trumbull, condado do Ohio especialmente afectado pelo pós-crise de 2008.
Os quatro membros (pai, mãe e dois filhos na casa dos 20 e poucos anos) votaram Obama – os pais das duas vezes, os filhos só em 2012, quando passaram a ter direito de voto.
E agora, em 2016? Bom: os três homens votaram Trump, ela não votou no republicano, mas… “também não consegui votar em Hillary Clinton”.
Porquê?
Scott Seiz, o pai da família democrata do Ohio que desta vez votou Trump, explicou: “Ela esqueceu-se de nós, os democratas que trabalhavam nas indústrias do Midwest. Não falou de nós na campanha. A elite do Partido Democrata não quis saber de nós. Em 2008 votámos em Obama porque ele falava em mudança. E agora sentimos que volta a ser preciso mudança. O tipo que falava em change era Donald Trump”.
América em retalhos
Donald Trump tomará posse, daqui a um mês, sem a maioria do voto popular, com uma América fracturada. Dizer que os EUA estão divididos não faz jus à verdadeira dimensão do problema. É pouco.
A América sai deste processo eleitoral retalhada em várias “mini Américas”.
Nada será como antes.