A política na era dos robôs
Os resultados inesperados das eleições americanas ou do "Brexit" têm levantado questões sobre o papel das redes sociais nas campanhas políticas. Será Donald Trump o primeiro político típico da nova era da Internet, tal como Hitler dominou a era da rádio e Kennedy iniciou a da televisão?
Todos o vimos ser derrotado em directo, na televisão. Nos três debates entre Hillary Clinton e Donald Trump, Hillary venceu, segundo todas as sondagens, todos os jornais, todos os comentadores. Que nem precisariam de ter sido consultados, porque ela venceu aos olhos de todos, ao vivo, ali, à nossa frente. As sondagens, os jornais e os comentadores também disseram que ela ganharia a eleição, e falharam, mas isso não seria tão desconcertante como termos visto com os nossos próprios olhos. Vimo-la vencer, na televisão. “Nós” “vimos” na “televisão”. Quantos erros há nesta frase? Quantos erros de gramática cultural? Para “nós”, a “televisão” “é” a realidade. Pelo menos tem sido, nos últimos 50 anos. Desde que mudou o paradigma, a forma como vemos o mundo e, em consequência, a forma como se faz política.
À semelhança deste Setembro de 2016, naquele dia 26 de Setembro de 1960 ambos se prepararam muito bem. Releram os dossiers, reviram as matérias. Ambos sabiam que o debate seria muito importante, talvez decisivo, e elaboraram fichas temáticas, previram perguntas, calcularam argumentos, ataques e armadilhas. Mas só um dos candidatos se preocupou com o bronzeado.
Decerto não por estar consciente do início de uma nova era, mas porque a sua atitude natural se ajustava ao novo medium, como se, vistos através do ecrã, o seu rosto e as suas palavras parecessem mais reais e verdadeiros. John F. Kennedy, ao contrário de Richard Nixon, era telegénico.
Tudo o resto eram desvantagens. Jovem, de origem irlandesa, católico, com menos experiência governativa do que o vice-presidente Nixon, o relativamente desconhecido senador do Massachusetts parecia condenado a perder as eleições. Mas aquele debate, o primeiro na História a ser transmitido pela televisão, mudaria tudo.
Kennedy, de perna cruzada, impecavelmente bronzeado no seu elegante fato escuro, parecia espontâneo e confiante, enquanto Nixon, magro e pálido, com um fato muito largo cor de rato e sentado em posição rígida, suava copiosamente a partir do minuto 10, entre esgares amuados e trejeitos antipáticos. Tanto quando falava como quando ouvia, nos grandes planos com que o realizador achou bem documentar as reacções não verbais de cada candidato aos argumentos do adversário.
Segundo as sondagens feitas na altura, quem ouviu pela rádio elegeu Nixon como vencedor do debate. Mas quem assistiu pela televisão não teve dúvidas: foi Kennedy que ganhou.
A televisão era uma invenção recente, mas já existia, na altura, em 88% dos lares americanos. A sua função, nos primeiros anos, resumia-se ao entretenimento. O debate Nixon-Kennedy foi o primeiro momento de informação séria, dedicado à política. Foi visto por cerca de 74 milhões de pessoas, correspondentes a dois terços dos eleitores. Depois daquele primeiro encontro televisivo, Nixon nunca mais recuperou a desvantagem, e Kennedy ganharia a eleição. “Mais do que qualquer outro factor, foi a televisão que inverteu a onda”, diria ele dias depois.
E tão inesperado e assustador foi o efeito do debate na televisão que, nos 16 anos seguintes, não houve mais nenhum. Nixon ganhou-lhe um tal medo que se recusou a defender as suas ideias em frente das câmaras nas eleições de 1968 e 1972, e talvez por essa decisão prudente as tenha vencido. Mas a mudança era irreversível. A televisão seria, progressivamente, o meio dominante da comunicação política, tal como a rádio fora até então. Ronald Reagan e Bill Clinton talvez tenham sido, por excelência, os presidentes da era da televisão.
Na era da pós-verdade
Nos anos 1930, o Presidente Franklin Roosevelt emitia regularmente as suas “conversas à lareira”, em que, em tom intimista, falava calma e demoradamente com os americanos através da rádio, ultrapassando assim a mediação frequentemente hostil da imprensa escrita. Mas, se há um símbolo político da comunicação radiofónica, é Adolf Hitler. Como já tinha feito Mussolini em Itália, ele próprio se encarregou de garantir que cada família alemã tivesse um aparelho de rádio, para que a mensagem chegasse a todas as casas. E chegou. Os discursos inflamados de ódio, amplificados pela ressonância emocional que só a rádio permite, criaram o ambiente propício à guerra e ao genocídio. Discursos proferidos por um ressabiado homenzinho de bigode que na televisão teria parecido ridículo. Mas a televisão ainda não tinha sido inventada.
Agora, dir-se-ia que foi, de súbito, remetida para segundo plano. A Internet e as redes sociais parecem ser o novo medium dominante e Donald Trump o seu ícone. É verdade que se falou disto já durante as campanhas de Barack Obama, que usou o Facebook, o Twitter e o Instagram para comunicar directamente com os eleitores. Mas talvez seja uma questão de escala. Este ano, todos os candidatos das eleições americanas travaram o seu combate, antes de tudo, nas redes sociais. Hillary Clinton não largou o Twitter, Lindsey Graham entregou-se ao YouTube, Marco Rubio construiu histórias no Snapchat, Ted Cruz veiculou live-streams no Periscope, Bernie Sanders obteve dois milhões de likes no Facebook. Donald Trump foi ubíquo nas redes sociais. Todas.
Para exprimir as suas opiniões, nunca precisou de esperar pelo horário nobre dos telejornais. Os momentos importantes da sua campanha foram criados no Twitter, em mensagens curtas e provocatórias reproduzidas depois pelos outros media, incluindo a imprensa e a televisão. E a hipótese que se pode colocar é esta: terá sido este o momento da viragem? Serão as redes sociais já o meio dominante e Trump o político-modelo da nova era?
As suas mensagens são curtas e elementares, amiúde contraditórias, muito emocionais e pouco racionais, não necessariamente verdadeiras (sem que ninguém pareça importar-se com isso, numa época a que já se chama “pós-verdade) e não resistem ao debate, à argumentação ou ao escrutínio dos jornalistas. Nem precisam, porque não são veiculadas em entrevistas na imprensa, rádio ou televisão, mas a partir de um ponto isolado, algures numa penthouse de uma torre de Manhattan. Este será o novo método, estas as novas mensagens políticas, este o novo político. E não há como voltar atrás.
Mensagens personalizadas
É discutível se isto já aconteceu, ou ainda está para acontecer, e que formas assumirá. Mas há uma certeza: a nova maneira de fazer campanhas políticas já está a ser aplicada, metódica, sistemática, cientificamente.
Há o mito de que a comunicação nas redes sociais é mais espontânea e livre, imprevisível nas consequências. Pensa-se que uma mensagem se torna “viral” quando um conjunto de acasos se conjuga para que ela se reproduza descontroladamente. No caso de Trump, isto não podia estar mais longe da verdade.
Para João Tocha, director-Geral da empresa consultora de comunicação F5C e especialista em campanhas e comunicação política, o que foi viral na campanha do candidato republicano foi a disseminação das suas mensagens nos media tradicionais. “Isso, sim, surgiu espontânea e automaticamente”, empurrado pela lógica da própria televisão e da imprensa. A exposição que foi dada ao candidato por jornalistas que não resistiram ao seu lado anedótico, chocante, incrível e escandaloso, essa, sim, foi exagerada e descontrolada, e ninguém a planeou. A campanha das redes sociais foi calculada milimetricamente, pelos melhores profissionais.
“Os três factores da vitória de Trump foram estes: primeiro, conseguiu pôr os media tradicionais a falar sobre ele; segundo, teve a capacidade de falar de forma directa com as pessoas; terceiro, e isto é que é completamente novo, utilizou robôs em massa, que criaram e enviaram para os destinatários certos milhões de mensagens. Isto nunca tinha sido feito. A novidade é a escala. Nunca tinha sido utilizada artilharia de fogo desta maneira. A tecnologia foi usada de outra forma. Dantes, no caso de Obama, por exemplo, tudo era feito à base de voluntários. Agora, são profissionais altamente especializados que criaram um algoritmo capaz de usar bases de dados sofisticadas e disparar milhões de mensagens nas redes sociais.”
João Tocha sabe do que está a falar, porque ele próprio tem usado estes métodos no seu trabalho com políticos. “Na área económica, isto já é aplicado há anos. Na política, está a começar. Qualquer supermercado faz isto. Qualquer agência de viagens compra dados ao Google sobre os seus potenciais clientes.”
O segredo é, portanto, conhecer ao pormenor as características de cada grupo de eleitores e enviar-lhes mensagens personalizadas. É preciso construir bases de dados, pesquisando e comprando informação. E depois disparar milhões de mensagens, diferentes para cada destinatário, de forma a que, quando o sistema atinge a perfeição, cada um ouça aquilo que quer ouvir.
Saber com quem se fala
As redes sociais como o Facebook, ou mesmo a Google, vendem dados dos seus utilizadores, explica João Tocha. Embora não necessariamente com os nomes e moradas de cada um. O que é preciso é que envie as mensagens para os destinatários em quem foram identificadas certas características.
João Tocha, que já organizou as campanhas de vários políticos portugueses, entre as quais, as de José Sócrates e de Pedro Passos Coelho, tem vários funcionários da sua agência a trabalhar em exclusivo nas redes sociais. “O que praticamos é microtargeting, uma técnica de segmentar os grupos, para saber exactamente com quem falamos. Criamos bandeiras, grupos de conversa, grupos com algo em comum.” Na prática, o que se faz é criar grupos de discussão, páginas de pessoas reais ou fictícias no Facebook, lançar posts controversos com o objectivo de obter reacções, partilhar essas reacções, fazer comentários, etc. Tudo isto serve dois propósitos em simultâneo: veicular mensagens para certas pessoas e estudar os seus comportamentos. É claro que elas não têm consciência de estar a ser monitorizadas. Ninguém as informa disso, o que não seria possível, nem, na opinião de João Tocha, necessário, uma vez que coloca sob observação as discussões públicas, não as privadas.
Num processo de recolha de informação tradicional, da responsabilidade, por exemplo, de um jornalista, considera-se obrigatório informar as pessoas sobre quem quer obter que informação e com que propósitos. Mas “nas redes sociais as pessoas têm de saber que tudo o que ali fazem ou dizem é público”.
A informação vai sendo acumulada sobre cada grupo, cada indivíduo, em bases de dados cada vez mais aperfeiçoadas, que, em última análise, acabarão por se substituir às sondagens. “Todo o tipo de informação é relevante, porque o processo é cumulativo. Uma base de dados só ganha informação, nunca perde. E essa informação pode provir de muitas fontes diferentes, desde posts e comentários no Facebook, a dados sobre compras, a conversas ocorridas em jantares ou sessões públicas e sociais. Tudo se vai acrescentando à base de dados.”
Não perguntar, antes observar e registar
As sondagens já são feitas desta forma, integrando uma complexidade de factores. Mas isto é muito caro, pelo que está ao alcance de partidos ou governos, mas não dos media, com orçamentos cada vez mais reduzidos. É por isso que as sondagens têm, recentemente, falhado tantas vezes.
Maurício Moura, um brasileiro que criou nos Estados Unidos uma empresa dedicada às campanhas de comunicação política, diz que a razão pela qual as sondagens convencionais têm falhado é a base tendenciosa das suas equações. “As perguntas são enviesadas, já pressupõem uma determinada resposta correcta”, disse numa entrevista por Skype, a partir de Washington. É por isso que muitas vezes os entrevistados dão a resposta que pensam que se espera que dêem, embora depois votem de outra forma. A melhor maneira de os sondar é portanto observar o seu comportamento espontâneo, não lhes fazer perguntas. “No futuro, as boas sondagens serão feitas sem qualquer pergunta.”
Maurício Moura é doutorado em Economia e Política do Sector Público pelas Universidades de São Paulo e George Washington, nos EUA. Trabalhou na ONU e no Banco Mundial, antes de criar a sua própria empresa, a Ideia, dedicada a aplicar a Estatística à sociologia, à comunicação e à propaganda políticas. Hoje é professor nas universidades de Harvard e George Washington, e tem trabalhado em campanhas, como a de Hillary Clinton.
“Está a haver uma mudança profunda na comunicação, em todas as indústrias. Na política também. Duas premissas antecedem esta mudança. A primeira é económica. Como há menos recursos, é preciso rentabilizar os esforços. As nossas mensagens têm de atingir apenas aqueles que farão a diferença. Não a comunidade inteira. A segunda premissa está do lado do cidadão. Hoje, ele espera que quem dialoga consigo saiba o que ele quer. As pessoas sentem-se cada vez menos representadas pelos políticos. É até difícil convencer os cidadãos a irem votar. Logo, é fundamental conhecê-los para nos aproximarmos deles.”
Poder-se-ia pensar que a intromissão na vida das pessoas com o objectivo de recolher dados levaria a uma ainda maior desconfiança para com os políticos, mas, segundo Maurício, sucede o oposto. “As pessoas sentem menos desconfiança quando percebem que as conhecemos.”
A convicção é de que a criação de bases de dados sobre os cidadãos os aproxima dos políticos e estes estarão assim mais bem preparados para satisfazer as necessidades daqueles. Isto justifica o aperfeiçoamento dos métodos intrusivos, que estão a atirar para um outro nível a recolha e aperfeiçoamento de informações sobre as pessoas.
“O nosso mantra é que a intromissão é oportunidade de coligir mais informação”, diz Maurício Moura. “Os nossos cientistas de dados (que é uma nova profissão) colocam posts para observar as respostas, numa cada vez mais fina microssegmentação. O mercado político demorou a desenvolver estes métodos, que qualquer rede de supermercados utiliza há muito tempo. São técnicas para usar as bases de dados de forma eficaz. Toda a informação é útil, desde que devidamente processada. É preciso registar reacções, índices de receptividade, cruzar tudo (matching). A informação sem organização, disciplina e fácil acesso é como se não existisse.”
Como criar um líder global
Foi aqui que a campanha de Donald Trump fez a diferença, “na sua capacidade de construir robôs, para que a eficácia das mensagens fosse potenciada, constituindo nichos específicos de eleitores, que recebem a comunicação certa”.
Estes robôs, explica Maurício, são algoritmos, programas informáticos que varrem milhares de milhões de posts, comentários e conversas nas redes sociais, para definir grupos e respectivas características, e bombardeá-los com as mensagens adequadas. O robô que Maurício usa é um servidor localizado em Hong Kong que pode recolher informação maciça sobre eleitores americanos, ou sobre adeptos do Benfica em Lisboa, e, entre estes, os que estão descontentes com a arbitragem do último jogo. Ou ainda sobre os portugueses que se queixam das obras na capital, dividindo-os entre os que acreditam e os que não acreditam que a sua situação vai melhorar depois das obras.
Os novos métodos de auscultação servem também para que os políticos formulem as mensagens com base não nas suas convicções, mas nas expectativas do eleitorado. A nova era exige não apenas um novo tipo de político, mas também um novo tipo de mensagem política.
E “é cada vez mais difícil encontrar esses líderes e essas mensagens. Tem de ser alguém capaz de ter uma mensagem geral (por exemplo, ‘make America great again’), susceptível de ser decomposta em mensagens específicas. O líder tem de ser capaz de falar com várias vozes. Porque a rede tem um efeito desagregador, divide as pessoas em pequenos grupos. O líder tem de falar para cada grupo. Na rede, é fácil criar movimentos, mas não consensos. Potencia os extremos, faz o centro perder espaço. A convergência é mais difícil. E cada vez mais difícil também encontrar líderes globais”.
A televisão já não é o que era
O paradoxo é que a televisão, num certo momento histórico, teve esse papel agregador, ao dirigir-se simultaneamente a audiências colossais. Mas, observa o mediólogo José Manuel Nobre Correia, nunca foi verdadeiramente global, como hoje é a Internet.
“Até aos anos 20, 30 do século passado, não havia media de massa. Os maiores jornais em França chegavam a dois milhões de pessoas, numa população de 50 milhões. A imprensa chegava a um público limitado. Era só para quem sabia ler, e podia pagar, porque os jornais custavam dinheiro. Era um bem supérfluo, de luxo. A comunicação de massa surge com a rádio e depois a televisão, onde a informação era gratuita. As pessoas só tinham de investir no aparelho receptor.”
Nesse aspecto, a Internet não introduz nada de novo. A informação já era gratuita na rádio e televisão. A única que parece estar em crise é a informação mais diferenciada, para as elites. A outra está de boa saúde, e a única novidade é que chega a audiências muito maiores, ainda que segmentadas.
“A rádio e a televisão nunca conseguiram ser media globais”, diz Nobre Correia, que estudou na Universidade Livre de Bruxelas, onde hoje é professor emérito. “Os satélites nunca conseguiram o que hoje é possível com a Internet, até para expandir as emissões dos próprios canais de rádio e televisão.”
Talvez a consequência disso seja, por um lado, o aumento da influência da cultura popular e da política populista. Mas, por outro, fará provavelmente dividir os públicos, favorecendo a emergência dos radicalismos e dos conflitos.
“A própria televisão tem hoje mais canais, e nenhum tem ou terá as audiências de outros tempos. Nenhum atinge os 40% de share, como chegou a acontecer em vários países europeus. A fragmentação é maior, e isso fará aumentar a capacidade de manipulação dos poderes políticos e outros.”
Quanto ao perfil dos novos líderes, é impossível de prever. “Fenómenos como Berlusconi em Itália, ou o nosso Marcelo Rebelo de Sousa, que construíram uma imagem através da televisão, talvez não sejam mais possíveis. Luís Marques Mendes está a tentar percorrer o mesmo caminho, mas quem sabe o que será a televisão daqui a nove anos (nas próximas presidenciais)?" Ou seja, a própria televisão também já não é o que era, e talvez a origem da mudança esteja mais na atitude das pessoas face aos poderes mediático e político do que na inovação tecnológica que foi a invenção da Internet.
O talk show de Trump
Para Rita Figueiras, professora e investigadora em Comunicação Política, e coordenadora do doutoramento em Ciências da Comunicação da Universidade Católica de Lisboa, é prematuro falar-se de uma nova “era das redes sociais” na comunicação política. “A vitória de Donald Trump não se pode reduzir ao seu êxito nas redes sociais. Ele esteve dez anos a dar-se a conhecer através da televisão. No programa The Apprentice, ele era visto a tomar decisões correctas, numa posição privilegiada, porque não estava a candidatar-se a nada, nem era um actor. Aquilo era real.”
Foi um longo caminho nos talk shows televisivos, percorrido por Trump, mas também por outros, que lhe abriram o caminho. “Foi importante a talk radio americana. Programas como o de Howard Stern ou de Rush Limbaugh foram habituando as pessoas a uma linguagem diferente da do politicamente correcto.”
Isto facilitaria mais tarde a Trump a entrada nos media mainstream, com a atitude “mal-educada” que anos antes seria intolerável. “São processos cumulativos. As pessoas habituam-se e afeiçoam-se. Porque se gosta de alguém pelas suas idiossincrasias, coisas boas e más. A longa exposição permite o crescimento de um afecto, que depois pode ser usado politicamente.”
Neste contexto, as redes sociais são importantes, mas não exclusivas. “São parte de um sistema. Há uma tendência para ver as inovações tecnológicas como motores da mudança social, mas não concordo. É verdade que quem assistiu pela rádio ao debate de 1960 achou que Nixon ganhou, mas talvez porque quem ouvia rádio eram as pessoas mais conservadoras, mais desconfiadas das novas tecnologias. Da mesma forma, talvez hoje quem mais use as redes sociais sejam os mais radicais, mais insatisfeitos com o sistema.”
Quanto ao medium predominante, continua, na opinião de Rita Figueiras, a ser a televisão. Mas, dentro da televisão, voltou a ser mais importante, mesmo para a política, o espaço de entretenimento, como acontecia nos anos anteriores ao do debate Nixon-Kennedy.
E, em si mesmo, isso é mais um contributo para desenhar o perfil do político da nova era. Nem todos se adaptam ao ambiente dos talk shows, observa Cláudia Álvares, professora de História do Jornalismo e Media na pós -modernidade na Universidade Lusófona de Lisboa, doutorada pela Universidade de Londres, investigadora em Ciências da Comunicação. “A política está a deixar de ser do domínio das coisas sérias, para entrar no do divertimento. Isso, supostamente, coloca os políticos mais próximos do povo. Trump funciona bem nesse meio. Ser despenteado num programa, como ele foi, não é para qualquer um. É preciso algum sentido de humor, humildade.”
E também uma disposição para se prestar ao ridículo, sem comprometer a reputação. É preciso fairplay e um talento natural mas provavelmente também… ser homem, diz Cláudia Álvares. A preconceituosa sociedade americana não tolera da mesma maneira que mulheres ou homens façam certas figuras. Hillary Clinton também tentou colaborar em brincadeiras propostas pelos apresentadores dos vários talk shows. Mas teve de se manter dentro de certos limites, por ser mulher, sob pena de se tornar objecto de troça ou insulto, principalmente nas redes sociais.
E talvez isso a tenha prejudicado, numa altura em que as intenções de voto podem mudar pelos motivos mais fúteis e de um momento para o outro. “Um dos factores importantes hoje é a grande quantidade de indecisos. Como os grandes ideais colectivos são mais difíceis de conseguir, há um vazio ideológico, os partidos são menos sólidos. E as pessoas não têm grandes razões para deixar de mudar de posição.”
E mudam, de facto, para desespero das agências de sondagens. Porque o racional está a ser substituído pelo emocional e irracional, o colectivo pelo individual. “As pessoas conotam as elites com uma excessiva racionalidade. É um protesto contra a lógica iluminista. Como diz Bepe Grillo, em Itália, é preciso pensar com as entranhas.”