Luaty Beirão, o filho rebelde do regime
Embaraçou internacionalmente o regime de Luanda com uma greve de fome que durou 36 dias. Foi preso, juntamente com outras 16 pessoas, sob a acusação de conspirar contra o regime. Na prisão, Luaty Beirão escreveu um diário, que chega às livrarias no dia 25.
No ano passado, Luaty Beirão embaraçou internacionalmente o regime de Luanda com uma greve de fome que durou 36 dias. Foi preso, juntamente com outras 16 pessoas, sob a acusação de conspirar contra o regime. Na prisão escreveu um diário, antes de iniciar a greve de fome, que chega às livrarias no dia 25, editado pela Tinta-da-China. A acompanhar esse diário, o livro — intitulado Sou Eu Mais Livre, Então — inclui uma longa entrevista de Carlos Vaz Marques ao activista angolano, de que publicamos um excerto.
Consegue imaginar em que medida aquilo que se passou teria sido diferente se o seu pai ainda estivesse vivo?
Pensei nisso muitas vezes enquanto estava sozinho lá na minha cela. O que teria sido diferente? Não sei. Não consigo imaginar. Acho que ia haver vários pontos de conflito e, numa gestão desses pontos de conflito, talvez eu evitasse fazer algumas das coisas que faço hoje. Mas não sei dizer quais. Não sei até que ponto iria o conflito ou de que modo a nossa relação se poderia tornar algo de irreconciliável. Até que ponto podia ser afectada.
Nunca entraram em choque por razões políticas?
Terá havido algum conflito quando eu comecei a questionar a origem dos nossos fundos. Eu indagava-me como é que ele tinha capacidade para pagar os meus estudos no estrangeiro. E durante um tempo houve um mal-estar, um clima, porque comecei a atirar-lhe as coisas à cara, a dizer que aquilo era estranho porque o salário que ele declarava, o salário oficial dele, era uma coisa irrisória. Tivemos ali uns pequenos conflitos, nessa altura. Ele tentou explicar-me, por alto, que fazia outro tipo de trabalhos — de consultoria, e não sei quê, que fazia serviços privados – mas depois eu também ultrapassei um bocado essa situação. Percebi que era uma zona que, se eu fosse escarafunchar muito, poderia resultar em problemas a nível da nossa relação pessoal. Então, ultrapassei isso.
Sente-se de alguma forma um filho do regime?
Sim, é um termo que eu não vou refutar. Eu nasci com os privilégios todos, cresci com os privilégios todos da minoria que beneficia deste sistema desequilibrado criado pelo MPLA, o partido que governa o país desde 75.
O seu pai foi o primeiro presidente da Fundação Eduardo dos Santos (FESA). Alguma vez conheceu o próprio José Eduardo dos Santos?
Eu?! Não. Nem sei com que frequência é que se viam. O meu pai também nunca me falou muito dessa proximidade entre eles. Tratava aquilo como um emprego normal, entre aspas. Nessa altura, eu ainda não ligava muito a essas coisas. Mas lembro-me — e foi a primeira vez que me lembro de ter visto o meu pai preocupado com algo que não tinha a ver connosco, com a nossa saúde, com a nossa educação, e a abrir-se ligeiramente comigo — lembro-me de ele me ter revelado que queria sair da FESA e não sabia como. Eu, na minha inocência, disse-lhe: mete uma carta de demissão, diz que não queres mais, qual é o problema? Não é bem assim, as coisas não funcionam assim, não sei quê. Hoje em dia já percebo um pouco melhor. Ele acabou por conseguir sair, conseguiu continuar só no outro cargo que tinha, portanto não teve de fazer nenhuma travessia pelo deserto, pelo menos que eu me tenha apercebido. E não sei com que frequência eles se viam. Hoje muita gente tenta dizer que eu frequentava a casa do Zé Eduardo, que era amigo dos filhos dele, mas isso não é verdade.
O facto de ser filho de um antigo quadro do partido terá tido alguma influência, positiva ou negativa — porque as duas são possíveis—, no modo como se desenrolou o processo em que esteve envolvido no ano passado?
Claro que sim. Eu cresci, lá está a cena do regime, rodeado dos filhos destas pessoas que hoje são importantes. Andámos nas mesmas escolas. Não os filhos do Presidente, necessariamente, mas os dos ministros, dos generais. Crescemos juntos. Uma das filhas do Kopelipa estudou no mesmo colégio que eu e éramos amigos. Eu não tinha a noção, na altura, de quem ela era filha, não me preocupava com isso. Os nossos pais sempre foram muito de perguntar quem é o pai, quem é a mãe. Para nós, era a amiga, damo-nos bem, acabou. Portanto, querendo ou não, e por menos que a gente hoje em dia se dê uns com os outros, isso fica, né? São pessoas que nos conheceram, que tiveram um percurso connosco; pessoas, acredito, que também influenciam os seus pais, e que dirão: não é nada disso do que dizem, não é nada disso do que pensam. Algumas dessas pessoas, quando se organizaram as vigílias, foram pela primeira vez, deram o corpo ao manifesto, apareceram. Filhos e filhas de generais. São pessoas com quem eu não privei muito, não fomos os melhores amigos do mundo, mas tivemos esse contacto durante alguns anos. Eu cresci no seio deles. Isso tem influência, claro que teve influência, porque essas pessoas mexem-se nos bastidores, de alguma forma. (...)
Já estava em Inglaterra [a estudar] quando Jonas Savimbi foi morto no Moxico, em 2002?
Já. Lembro-me exactamente do momento em que me foi transmitida a notícia.
Como é que soube?
Foram os meus companheiros. Lembro-me de ter sentido algo de muito estranho. Uma espécie de euforia, só que não era uma euforia alegre. Consegui perceber que não estava feliz. Só que também não fazia sentido estar triste. O Savimbi sempre foi pintado como um monstro e eu tinha estado sujeito à propaganda do MPLA durante toda a minha vida, tendo crescido na capital. Senti um estranho vazio.
Celebrou a notícia?
Não. Todos os meus amigos celebraram mas eu não consegui celebrar. Fiquei a tentar perceber e a tentar digerir aquilo. Percebi nesse momento que não consigo celebrar a morte de ninguém. Se o José Eduardo morrer, eu não vou lançar foguetes. É a esse ponto. Ele pode mandar me bater, me prender, mas se ele morrer eu não me vou sentir eufórico de alegria, como não me senti com o Savimbi. O meu primo abriu já champanhe, grande festa, e eu simplesmente não estava nessa. Logo a seguir chegaram as imagens; vi aquela imagem dele ali exposto daquela forma e achei aquilo tão humilhante, tão degradante.
A morte dele representou o fim da guerra civil.
Sim. Eu tinha noção disso, também. Tinha noção de que a partir dali muito dificilmente a coisa poderia continuar. Era esse lado que correspondia a uma ponta de... não era alegria, a palavra não será alegria. A palavra é, tipo...
Alívio.
Alívio, iá. A ponta de alívio era essa: pronto, pelo menos vamos poder passar a uma outra etapa. (...)
O que é que lhe deu alento para não desistir [durante os 36 dias em que esteve em greve de fome]? Achava que aquela luta e aquele eventual sacrifício, se a coisa fosse até ao limite, podiam mudar de forma drástica a situação política em Angola?
Não. Eu não tenho assim tanta fé e também não me tenho em tanta estima. Simplesmente, acho que cada um de nós, como indivíduo, deve ser fiel às suas convicções. Se isso depois se traduz num impacto ao nível do exemplo que se deixa, se há consequências por as pessoas de repente entrarem num estado de desencanto e de estarem fartas... Eu não estava a pensar que podia dar início a algo de grandioso. Pensei apenas: decidi-me e devo dar um exemplo, porque é o que eu prego aos outros. Tenho de ter a minha palavra, tenho de ter a minha honra. Isso para mim é mais importante do que qualquer outra coisa. Se tiver consequências, óptimo. Sejam elas quais forem, tenham elas a dimensão que tiverem. Também me fui apercebendo de que não devo ficar ansioso pela gota que faz transbordar o copo, pela faísca que faz rebentar o barril. A pólvora já aqui está, pode rebentar a qualquer instante, mas eu não devo estar ansioso por essa faísca, não devo estar a pensar que sou eu que vou criá-la. Simplesmente, contribuí para o barril se desgastar um pouco mais. Pode parecer pouco mas é uma cena mesmo muito individual. Eu decidi: não sei o que isto vai dar mas decidi que é assim e assim será. Não é uma coisa de: eu agora vou morrer e isto pega fogo, como o director nacional dos serviços prisionais veio-me dizer. Tu não podes morrer, se tu morreres isso vai fazer correr muito sangue. E então, e agora, você quer pôr em mim essa responsabilidade? Já não chega eu estar a morrer e ainda me quer dizer que eu vou ser responsável pela morte de outras pessoas? Era só o que faltava. Eu não sentia aquilo como decisivo e não queria sentir isso. Se calhar recuso-me a dar-me essa importância toda.
A greve de fome começou em Setembro. Houve algum momento em que tivesse começado a perder a lucidez? Ou manteve sempre plena consciência?
Estive consciente o tempo todo, não perdi a lucidez em momento algum. Aliás, no momento em que senti que me podia acontecer alguma coisa ao cérebro, no dia em que me transferiram para a Girassol, mandei chamar o médico.
Temeu que o alimentassem à força, com soro ou de qualquer outra forma?
Temi. O director nacional fez questão de me advertir que iriam fazê-lo. Nós não vamos deixar-te morrer, nós vamos enfiar-te aí uma sonda, tu vais estar inconsciente e vamos alimentar-te à força, vais ver; depois podes-me processar, se quiseres; estás à vontade de fazer o que quiseres mas nós, Estado angolano, não te vamos deixar morrer; não, enquanto estiveres sob os nossos cuidados. Eu disse: o senhor faz o que o senhor quiser, vocês estão habituados a ser prepotentes e a passar por cima do direito dos outros. Se o senhor quiser violar mais um dos meus direitos, mesmo esse, o senhor faça o que quiser e eu depois também sou livre de o processar. Virei-me para a outra directora da prisão, que era médica, e disse: a senhora sabe que ele não tem o direito de fazer isso. E ela acenou com a cabeça. Disse-lhes: façam como entenderem, vocês fazem sempre à vossa maneira, impingem sempre a vossa coisa à força, é a única maneira como vocês sabem lidar com as pessoas. Façam.
Terminou a greve de fome no dia 26 de Outubro de 2015. Estava-se nessa altura a pouco mais de duas semanas das comemorações dos 40 anos da independência de Angola. Alguma vez teve como objectivo aguentar até ao 11 de Novembro de modo a provocar um embaraço ainda maior ao regime?
Não. Eu não pensei em datas. Nem sequer pensei naquela matemática dos 36 dias, 36 anos. As pessoas é que foram muito rápidas a fazer essas associações dos dias com os anos, mas eu não pensei nisso. Estava mais preocupado em manter-me são e manter-me bem, manter-me em forma, manter-me lúcido e consciente, do que em fazer essas matemáticas. A única matemática que eu estava a fazer era esperar. Vamos esperar mais um dia, mais dois dias, mais três dias, a ver se mais alguém se pronuncia. Já se pronunciou o departamento de Estado norte-americano, já se pronunciou a União Europeia, já se pronunciou tudo isso. Faltam as Nações Unidas. A partir daí faltava pouco mais. Nós dissemos: vamos só esperar até domingo. (...)
Disse-me que pensou desistir no trigésimo segundo dia. Pelas minhas notas, foi nesse dia que o embaixador português em Luanda o visitou. Houve alguma relação entre esses dois factos?
Não, nenhuma. Eles próprios também não foram tentar muito convencer-me, porque acho que sabiam mais ou menos com quem estavam a lidar: uma pessoa obstinada. O embaixador só perguntou assim a brincar: não há nada que eu possa fazer que o possa levar a mudar de ideias, não é? Eu disse que de facto não, só se conseguisse convencer alguém a aplicar a lei ou dizer-lhes que trouxessem alguém que me convencesse de que eu estava enganado. Se não, não há mais nada.
Sendo cidadão português, acha que devia ter havido, por parte do Estado português, uma intervenção diferente daquela que houve?
Eu percebo que os cidadãos portugueses exijam isso do Estado português. Se eu estivesse do lado de lá, a querer arranjar uma forma para que um co-cidadão, onde quer que ele estivesse, não tivesse de passar por isso e se salvasse, eu também ia fazer pressão. Mas na verdade, do meu lado, já não ia fazer diferença nenhuma. Não quero cobrar isso ao Estado português. Não espero muito de políticos e já fiz a minha leitura de qual é a relação de Portugal com Angola — nessa altura, ainda por cima, tendo o PSD no Governo. É uma relação de extrema dependência. Nós fomos para aí comprar as empresas-chave e os sectores-chave de Portugal, puseram tudo ao desbarato, agora até a imprensa quase que nos pertence. Há uma coisa de promiscuidade muito grande. Portugal acabou por ser a lavandaria do dinheiro sujo de Angola porque precisava de dinheiro.