Não têm “o nome no cartaz” mas os chefs não passam sem eles

Trabalham horas a fio, mas raramente são conhecidos do grande público. Ser número dois de cozinheiros como José Avillez, Rui Paula ou Vítor Sobral é um posto de grande responsabilidade mas na maior parte das vezes invisível. Hoje os holofotes estão virados para eles.

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Na cozinha de um restaurante com ambições há sempre, pelo menos, um elemento de confiança do chef — um “braço direito” —, que ajuda a assegurar a competência e a consistência do lugar. Ser número dois é um posto de grande responsabilidade, ainda para mais numa época em que os chefs principais passam parte do seu tempo fora dos restaurantes a promovê-los (e a promoverem-se). Trabalham-se horas a fio com tarefas infinitas, que vão da averiguação das entregas das encomendas ao comando da roda na hora do serviço, passando pela gestão ou o aconselhamento das equipas. Uns têm funções mais executivas, outros entram mais no processo criativo. E tudo isto se faz longe dos holofotes, reservados, normalmente, à cara principal do restaurante.

Num episódio do Chef’s Table (Netflix), Grant Achatz conta que uma vez, quando era cozinheiro de Thomas Keller, no The French Laundry (Yountville, Califórnia), mostrou-lhe uma criação sua e ele, encantado, perguntou se tinha noção que a partir do momento em que a colocasse na carta passaria a ser um prato de Thomas Keller e ele não poderia mais usá-lo. “Sente-se confortável com isso?”, perguntou. Ao que actual chef do Alinea, em Chicago, respondeu, com uma ponta de arrogância: “ De onde saiu este há muito mais. Vamos pô-lo no menu.” Entre os números dois que ouvimos para este trabalho ninguém chega a esse ponto de irreverência. Porém, se há quem se sinta realizado com a sua função e não ambicione dar o salto e assumir o papel principal num restaurante (até porque, no seu íntimo, alguns consideram que já o fazem), outros há para quem a posição faz parte de um processo de aprendizagem para alcançar voos mais altos. 

Catarina Correia

Casa de Chá da Boa Nova

Antes de dominar os fogões, Catarina Correia só queria saber de animais. Foi para o Brasil, para uma reserva natural, no litoral do estado de São Paulo, estudar a lontra e o cachorro do mato depois de ter concluído a licenciatura em Biologia, mas a cozinha nunca lhe saiu da cabeça. Antes da universidade já era essa a sua inclinação. Cedeu à família e candidatou-se, mas com a Biologia como única opção: se não, a cozinha.

No regresso do Brasil, e com as dificuldades em encontrar colocação profissional, apontavam-lhe como inevitáveis os caminhos do mestrado ou doutoramento, mas insistiu que sempre tivera uma alternativa. “Se é isso que queres, então tem que ser a sério”, sentenciou o pai, que logo tratou da inscrição na reputada escola Le Cordon Bleu, em Londres. 

Começava, assim, aos 25 anos a carreira culinária daquela que é hoje o braço direito de Rui Paula no requintado restaurante da Casa de Chá da Boa Nova. O chef destaca-lhe a capacidade técnica, a dedicação ao trabalho, o respeito dos colegas, a vontade de evoluir e, acima de tudo, a vertente criativa. “Sim, porque bons executantes há muitos, o mais difícil é encontrar criatividade”, acentua Rui Paula, que destaca ainda a cumplicidade e complementaridade com Mauro Silva na coordenação da cozinha do Boa Nova.

Em Londres, depois da formação, Catarina trabalhou quatro anos “no duro”, passando por casas como o exigente Savoy Grill, na altura com uma estrela Michelin e liderado pelo mediático Gordon Ramsay. “Começávamos às oito da manhã e só largávamos de madrugada, nunca antes das duas”, recorda Catarina, sublinhando o comprometimento e dedicação que era também a nota dominante na aprendizagem da escola londrina.

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Ele é mais extrovertido e comunicativo e eu sempre mais reservada”, revela, para evidenciar a complementaridade e cumplicidade Foto: Ricardo Castelo/NFactos

Foi aí que teve notícia que Rui Paula projectava abrir um restaurante no Porto. Tratou de fazer chegar ao chef a sua candidatura e foi logo para o DOC, no Douro, preparar a abertura do DOP, no coração do Porto. Até ao Boa Nova foi a evolução natural. A dedicação, capacidade de liderança e respeito dos colegas indicavam-na para a exigência do projecto e, com Mauro Silva, ficaram responsáveis pela preparação da abertura.

Pelo meio ainda uma temporada no criativo Mugaritz, no País Basco espanhol, antes do aturado trabalho de pesquisa e criação com vista à abertura da Casa de Chá. Recorda o complicado processo de criação do arroz de lulas, que Rui Paula baptizou como “lula Chanel”, pela elegância e sofisticação do prato.

A exigência, criatividade e exploração de novos e diferentes produtos continua a ser um desafio permanente, que Catarina, 36 anos, desenvolve em parceria com Mauro. “Ele é mais extrovertido e comunicativo e eu sempre mais reservada”, revela, para evidenciar a complementaridade e cumplicidade. Rui Paula destaca também a sintonia com as suas ideias. Quanto ao futuro, parece, por enquanto, focado na Boa Nova e na envolvência com o mar. “Adoro trabalhar o peixe, sinto-me mesmo bem aqui e o local é maravilhoso”, desabafa, ao mesmo tempo que deixa transparecer o ambiente de afecto que envolve o chef e a equipa. “Se calhar, lá longe… talvez”, é o máximo que consegue balbuciar em relação a um eventual projecto pessoal. J.A.M.

Carla Fernandes

The Yeatman

Queria ser pasteleira mas a escola só tinha cursos de cozinha. Desde pequena era ela que fazia os bolos em casa, mas a formação acabou, assim, por atirá-la para outra área. Ainda bem, pode dizer-se hoje com segurança, já que, aos 29 anos, Carla Fernandes é um valor seguro da cozinha, capaz de comandar os fogões de um dos mais exigentes restaurantes do país.

As origens do meio rural, na zona de Chaves, e três tias com artes para a cozinha desde cedo apontavam-na para o mundo culinário. Iniciou-se com um estágio no Vidago Palace e foi aí que Ricardo Costa a encontrou alguns meses depois. “Muito tenrinha”, tinha apenas 18 anos, diz o chef, mas chamou-lhe logo a atenção “o rigor, a disciplina, a dinâmica”. Pouco depois, quando aceitou o desafio de tomar nas mãos o destino do restaurante da Casa da Calçada, em Amarante, Carla foi uma das que o acompanhou.

E foi a partir daí que a jovem cozinheira começou a destacar-se. Diz apenas que “foi uma óptima aprendizagem”, mas Ricardo Costa lembra que pouco depois já a tinha escolhido para seu braço direito e foi assim que acabaram por reconquistar para o restaurante a distinção da estrela Michelin. O chef abraça em seguida o ambicioso projecto de abertura do The Yeatman e muda-se para Vila Nova de Gaia. “Foi ela que aguentou a estrela da Calçada durante seis meses”, realça, sem esconder uma pontinha de orgulho.

Logo que ficou assegurada a passagem para Vítor Matos na Calçada, Ricardo Costa lançou-lhe o “desafio para entrar no Titanic”, designação que o chef usa para sublinhar a dimensão do projecto associado ao Yeatman. Por isso, diz que, na verdade, não tem um mas dois sub-chefs, com Carla a ocupar-se do restaurante The Yeatman e Edgar Rocha no serviço de hotel. “Há dias em que servimos mais de mil refeições”, frisa, destacando a exigência e especificidade do restaurante gastronómico, com uma brigada de 35 pessoas que Carla comanda com frequência dada a multiplicidade de tarefas a que tem que fazer frente. Destaca-lhe, por isso, “o carácter e a personalidade”, e confessa também que gosta “sempre de ter a opinião dela”. “Mesmo sabendo que vai ser oposta à minha!”

Carla é daquele estilo de pessoas a quem é difícil arrancar uma ou duas palavras. Mas percebe-se pelos trejeitos, pela bonomia e permanente sorriso que se sente bem e gosta do que faz. Explica as rotinas que diariamente partilha com Edgar Rocha, a distribuição de tarefas a recepção e controlo dos produtos, mas o stress é na cozinha. “O fogão é uma guerra”, dispara.

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As origens do meio rural, na zona de Chaves, e três tias com artes para a cozinha desde cedo apontavam-na para o mundo culinário Foto: Ricardo Castelo/NFactos

Quanto ao futuro, Ricardo Costa diz que tem preparação, capacidade e conhecimento para enfrentar qualquer desafio: “Tem tudo para ser o que quiser!” Ela, contudo, prefere dizer que se sente bem onde está e que se um dia mudar há-de ser para voltar às origens. O apelo da terra. “Sonho com uma tasquinha de comida boa, de sabores. Nada do que se vê por aí. Seria uma coisa ligada às raízes, coisas que nos estão na memória, como as comidas da minha mãe, os assados, os rojões…” J.A.M.

David Jesus

Grupo José Avillez

Em Janeiro 2012, num dos primeiros dias do novo Belcanto, José Avillez foi chamado à sala por um cliente que acabara de jantar. Com uma breve troca de olhares, David Jesus tomou a sua posição na roda (o lugar de onde saem os pratos para a sala) e continuou a missão com a maior naturalidade do mundo. David já era o braço direito de Avillez, no Tavares. Porém, José saíra primeiro e passaram largos meses até voltarem a reunir-se junto ao calor dos fogões, pelo que aquele momento revelava uma cumplicidade e sincronia que surpreendeu quem observava o serviço. 

David Jesus refere que desde que começaram a trabalhar juntos houve logo uma empatia pessoal e profissional e que nunca existiu um mínimo de desentendimento entre os dois. “O José sempre sentiu um grande respeito e admiração pelo meu trabalho e eu pelo dele.”

No percurso de vida de um cozinheiro há quase sempre uma mãe, uma avó ou outro familiar com dotes para a cozinha. Foi o que aconteceu com o chef executivo do Belcanto. Nascido e criado na Bobadela, onde ainda hoje vive, David Jesus, 38 anos acabados de completar, viveu a infância à volta da cozinha, entre os aromas das receitas lusas da mãe e os caris indianos do pai, natural de Damão. Porém, a ideia de se tornar cozinheiro só surgiu por altura dos seus 15 anos. “Não andava a portar-me muito bem na escola e os meus pais começaram a questionar-me sobre o futuro.” Foi aí que as memórias de criança fizeram “o clique” e o seu destino começou a adivinhar-se.

David haveria de fazer a escola de hotelaria (em Lisboa), estagiar num hotel e passar pelos seus primeiros restaurantes, entre eles o Massima Culpa e o Galeria, em Lisboa, onde esteve com Augusto Gemelli.

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Eu sinto que já tenho vários restaurantes. Somos sócios desde 2011. Estes já dão muita dor de cabeça Foto: Rui Gaudêncio

Após 18 meses com o chef italiano, surgiu a hipótese de entrar como cozinheiro de segunda no Carlton Valle Flôr (actual Pestana Palace Lisboa). Seria a sua primeira experiência de cozinha portuguesa, logo num restaurante de fine dining, e com um chef ultra-exigente como Aimé Barroyer. David Jesus acabaria por permanecer seis anos e meio e evoluir, tornando-se um dos cozinheiros nucleares do chef francês.

Foi por essa altura que conheceu José Avillez, que por lá passou num curto estágio. Mais tarde, quando este aceitou ficar à frente do Tavares e buscava um “número dois”, alguém lhe falou de David. A sintonia entre os dois foi imediata. “As coisas sempre funcionaram muito bem. Foi muito fácil”, refere David, hoje sócio de Avillez no grupo que marca forte presença no Chiado.  

David Jesus assume-se mais como um chef executivo do que como um criativo, embora também participe no processo, sobretudo na parte de testes e  implementação. As suas funções no dia-a-dia da cozinha, além da presença no Belcanto à hora do serviço, “são basicamente as mesmas do José: gerir e organizar as cozinhas, formar cozinheiros, ajudar os chefs de cada um dos restaurantes do grupo a organizar a sua semana, assim como as suas equipas”. Quando se lhe pergunta se ambiciona ter o seu próprio restaurante, responde de pronto, com tranquilidade: “Eu sinto que já tenho vários restaurantes. Somos sócios desde 2011. Estes já dão muita dor de cabeça.” M.P.

Hugo Nascimento

Grupo Vítor Sobral

No início de Outubro, Hugo Nascimento completou duas décadas de trabalho ao lado de Vítor Sobral e registou o momento na sua conta do Facebook:  “20 anos. Obrigado @vitorsobralvs por ter acreditado no skater de cabelo azul.”

Ao princípio, o rebelde desalinhado pretendia ser apenas barman. Porém, quis o acaso que, ao procurar trabalho em Lisboa, lhe aparecesse o Café Café, onde a função implicava, também, empratar sobremesas e preparar os couverts. “Era uma cozinha muito organizada, muito diferente daquele canto sujo lá ao fundo”, comenta Hugo Nascimento, referindo-se à ideia que tinha, na altura, sobre o que era um restaurante. O jovem Hugo começou então a gostar daquele mundo arrumado e sistematizado numa época em que precisava de alguma organização. “Se tenho calhado noutro restaurante qualquer, desgovernado, provavelmente não me teria despertado a curiosidade e hoje não seria cozinheiro.”

Por detrás desse local bem estruturado havia Vítor Sobral, um cozinheiro que o cativou desde o início e a quem tem sido leal, ao ponto de o ter acompanhado em todos os seus projectos, mesmo quando nem sempre as coisas correram bem ao chef que ajudou a renovar a cozinha portuguesa.

“Já nessa altura, se me perguntassem se queria ser cozinheiro deste ou daquele chef, eu dizia que não. Só queria trabalhar com o Vítor.” Sobral retribui de forma idêntica ao falar hoje do seu braço direito: “O Hugo não é o número dois, é o número um. A minha equipa é um três-em-um” afirma, referindo-se igualmente a Luís Espadana, o outro vértice do triângulo que se ocupa essencialmente da cozinha nas operações que têm em São Paulo (Brasil).

E se Hugo Nascimento, hoje com 40 anos, resolvesse partir e seguir um caminho autónomo, como reagiria Sobral? “Não era uma situação que me deixasse feliz. De alguma maneira, este projecto de vida, de que eles fazem parte, iria por água abaixo. A questão é que o Hugo é um sócio e, por isso, não estaria a abandonar um restaurante, mas sim a sua empresa.” Todavia, não há razões para Sobral ficar preocupado. O seu sócio olha para os restaurantes como parte deles e confessa sentir-se completamente realizado. E quanto à questão do mediatismo, Hugo confessa: “Não tenho o nome no cartaz e não é isso que pretendo. O meu mundo não é o restaurante visto de fora, mas sim visto de dentro.”

Os menus dos vários “Esquinas” do Grupo Vítor Sobral são organizados com uma semana de antecedência e Hugo reúne-se com a equipa para os definirem. Fala ainda frequentemente com Sobral, anda pela sala, pela cozinha (“para as sentir”) e quando necessário faz as devidas correcções. Porém, mesmo tendo actualmente funções de gestão e de liderança, Hugo Nascimento confessa que continua a gostar de meter a mão na massa e de participar no processo criativo, “muitas vezes a 100%”. A matriz de toda a cozinha do grupo é de Vítor Sobral, pela qual foi influenciado e com a qual diz identificar-se totalmente. Porém, diz ter um cunho pessoal e diferenças que complementam as dele. “Quero também que o meu trabalho esteja bem expresso.”

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Não tenho o nome no cartaz e não é isso que pretendo. O meu mundo não é o restaurante visto de fora, mas sim visto de dentro Foto: DR

Antes de terminarmos a conversa ainda tentamos a rasteira... mas e se tivesse um restaurante só seu, em que seria diferente? Quase o vemos montar-se na prancha sobre rodas, para não responder à pergunta. Com uma gargalhada pelo meio, lá deixa escapar: “Seria mais irreverente, mais miúdo. Corria mais riscos, sei lá.” M.P.

André Cruz

Feitoria

São 15h, a hora do almoço já passou, mas nem assim a cozinha do Feitoria fica parada. Hoje é dia de folga, por isso André Cruz não está a dar ordens a ninguém, nem a fazer a ponte entre o chef João Rodrigues e o resto da equipa. Está “à civil”, de calças de ganga e sem a sua jaleca, aparentando os 28 anos que tem.

Guia-nos como quem está em casa: secção de peixes, à frente a de carnes, além as entradas quentes, num cubículo à parte, mantido a 14 ou 15 graus, as frias... Lá em baixo descascam-se batatas, arranjam-se grandes pedaços de carne, amanha-se o peixe — uma tarefa que André Cruz e João Rodrigues gostam de fazer. Têm ambos essa necessidade de contacto com o produto, não só de o ter nas mãos, inteiro, como de ir ao seu local de origem. “A nossa criatividade começa aí: sentir um lagostim vivo em Peniche, ir ao Lugar do Olhar Feliz [no Cercal do Alentejo] e ver os citrinos que nos agradam, prová-los no momento, ir à Quinta do Poial [em Azeitão]...”

Há dois anos que André Cruz é o “número dois” de João Rodrigues, mas antes disso já tinha passado cinco anos como cozinheiro no Feitoria (o restaurante com uma estrela Michelin do Altis Belém Hotel). Depois, foi para a América do Sul. “O Gusto, do Claus Meyer [co-fundador do Noma, em Copenhaga] marcou-me muito. Ele está a fazer um restaurante que ajuda aqueles miúdos [dá formação a jovens desfavorecidos], é um trabalho humanitário”. Quando voltou a Portugal, regressou a “casa”.

A relação com João Rodrigues “é quase como uma irmandade. Somos amigos. Mas tenho um lema: cognac é cognac, trabalho é trabalho. Aqui dentro ele é o chefe e as amizades têm de ser postas de lado.”

João Rodrigues resume assim os papéis de cada um: “O sous-chef faz a ponte entre o chef e o resto da brigada. Eu sou o pai, ele é a mãe e os outros são os filhos, do mais velho para o mais novo. É uma posição muito difícil. Quando alguma coisa corre mal, é com ele que falo; mais ninguém.” E adianta: “O mais importante é haver confiança absoluta. Quando se tem uma relação destas com alguém, essa pessoa passa a fazer parte integrante do projecto.” “Falamos a mesma linguagem: quando digo ‘vamos por ali’ ele percebe o que eu quero dizer.”

Para ambos é importante “pesquisar, sair para a rua, trabalhar com biólogos, pessoas que nos transmitem conhecimento”, explica André Cruz. “Como cozinheiro, é incrível conhecer um produto quase na sua totalidade. Tem que haver uma ligação com a base, senão o sentido vai-se.” Projectam até ter um terreno, “não para dizermos ‘este produto é nosso’, mas para participar directamente no processo”. “Ter mel para ver como o mel é feito. Ter a consciência de quanto tempo demora um legume a desenvolver-se.”

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Como cozinheiro, é incrível conhecer um produto quase na sua totalidade. Tem que haver uma ligação com a base, senão o sentido vai-se Foto: Rui Gaudêncio

Chegará o dia em que André Cruz quer vir a ter o seu próprio restaurante, mas tudo a seu tempo. “Quando tiver que ser, a oportunidade aparece. Não tenho pressa de chegar a chef porque as coisas têm de ser consolidadas. Sinto-me bem a aprender desta maneira.” F.G.H.

Gil Fernandes

Fortaleza do Guincho

Gil tem 26 anos, chegou à Fortaleza do Guincho há um ano, mas apresenta um já invejável currículo que levou o chef Miguel Rocha Vieira a não ter dúvidas em apostar em alguém tão jovem. Tem um olhar sincero, um sorriso simpático, uma forma de falar descontraída e a segurança de quem sabe para onde vai.

“Sou da Lourinhã, o meu pai é agricultor e tive sempre que ajudar nas lidas da fazenda”, conta. “Logo aos dez, 11 anos estava a ganhar a primeira jorna, a apanhar a pêra, tomate. Fui ganhando estaleca.” Aos 14 anos, influenciado pelo facto de a mãe ser pasteleira, foi para a Escola de Hotelaria do Estoril, continuou para a faculdade e aos 21 estava formado.

Tinha já feito vários estágios, entre os quais no Vila Joya, mas percebeu que tinha que sair do país para aprender mais. “Sabia que parte do sucesso passava por conhecer novos povos e novas gastronomias.” Seguiu-se Espanha e o restaurante de Martin Berasategui, depois a Holanda e o trabalho com o chef Jonnie Boer, no De Librije (três estrelas Michelin) e, por fim, o regresso a Portugal, para o Ocean, o restaurante do Vila Vita Parc, no Algarve.

“No De Librije a comida é muito estética e isso cativou-me imenso. É quase como a arte.” Sempre soube que queria criar. “É uma das coisas que mais dá prazer como cozinheiro, faz parte de mim. Antes de vir para aqui deixei bem claro que para mim é importante que possa colocar no prato o que idealizo, a partir do que me inspira, que podem ser as viagens, a família, a natureza, sei lá, tudo.”

Ao fim de três anos no Ocean, onde gostou muito de estar, achou que “era altura de dar o próximo passo” e quando soube que Miguel Rocha Vieira vinha para a Fortaleza do Guincho, candidatou-se. “Vim fazer uma entrevista. Acho que o chef me achou piada.” E aceitou bem essa vontade de criar vinda de alguém que seria o seu número dois?

O melhor é ouvir Miguel Rocha Vieira: “Primeiro tem que haver uma empatia, e no caso dele senti isso. E depois há o percurso. O Gil tem uma grande vantagem porque começou muito novo. Com 22 ou 23 já tinha um currículo que muita gente neste país com 33 ainda não tem.”

Um número dois deve também ter capacidade de liderança, deve ser capaz de gerir uma equipa. Mas também aí Gil não tem inseguranças. “Tenho que ser duro quando é preciso e quando é necessário estou lá para dar a mão. Gosto da liderança e as pessoas vêem-me como um líder.” É “a posição mais difícil na cozinha”, sublinha Rocha Vieira, porque o sous-chef está no meio, entre o chef e o resto da equipa, e tem que manter a autoridade ao mesmo tempo que tem que ser amigo.

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Para mim é importante que possa colocar no prato o que idealizo, a partir do que me inspira, que podem ser as viagens, a família, a natureza, sei lá, tudo Foto: Rui Gaudêncio

Quanto à criatividade, diz, “o Gil não pára, é a 300 à hora, desde as nove da manhã, mas é isso que uma cozinha precisa, essa energia”. Mas a cozinha da Fortaleza é a de Miguel Rocha Vieira? “Eu assino o menu”, responde o chef. “Mas é a nossa cozinha. Nunca na vida impediria o Gil de criar. É para isso que cá estamos, para crescermos todos juntos.”

E Gil, vê-se no futuro a ter um restaurante? “Sim, a ser chef. Sem dúvida. Se o objectivo agora foi ser sous-chef, depois é ser chef. Cada vez mais vou tendo uma linha de pensamento para a minha cozinha. Sou uma pessoa ambiciosa.” A.P.C. 

João Viegas

São Gabriel

João Viegas, 28 anos, nasceu em Tavira e cresceu por lá, entre tachos e panelas, na Quinta do Caracol, o turismo rural que ainda hoje é dos seus pais. Quando acabou o ensino básico, ficou indeciso sobre o futuro mas resolveu seguir o caminho dos progenitores e entrou na Escola de Hotelaria de Faro. “Quis começar pela base, a cozinha, e no futuro, eventualmente, fazer a parte de gestão”, conta.

Entre o turismo rural da família, os primeiros restaurantes, ainda no Algarve, e a vitória no seu primeiro concurso de cozinha, foi um passo. Porém, quando concorreu à “Revolta do Bacalhau”, em 2009, não esperava, além de poder vencer a competição, ficar debaixo de olho de um dos mais conceituados chefs nacionais, Leonel Pereira. “Achei que o miúdo tinha talento”, diz-nos o chef e proprietário do São Gabriel, que integrava o júri. A partir desse momento, sempre que tinha um evento no Algarve, chamava-o. Ciente do seu potencial, Leonel desafiou-o a ir para Lisboa para poder evoluir. Porém, como não tinha lugar para ele no Panorama, do Hotel Sheraton (onde na altura era chef), indicou-o ao seu amigo Joachim Koerper, que ficou com ele no Eleven.

“Estive dois anos a ganhar metade do que ganhava no Algarve”, explica João. Quando se preparava para aceitar o convite do alemão para assumir a chefia do restaurante, Leonel Pereira resgatou-o e propôs-lhe que fosse com ele para o Algarve. Leonel saíra do Hotel Sheraton Lisboa e preparava-se para tomar as rédeas do São Gabriel, em Almancil. Naquele momento só lhe poderia oferecer o lugar de sub-chefe júnior mas, ainda assim, Viegas não hesitou: “Aceito e vou consigo, mas fale com o chef Joachim.”

No início, confessa, sentiu um certo nervosismo por estar a  trabalhar, finalmente, com Leonel Pereira, um profissional que há muito admirava. Contudo, a forma de trabalhar e de formar de Leonel incute confiança e motivação nas equipas e João Viegas confirmaria todo o seu potencial, ao ponto de, em 2015, no ano em que venceu o concurso Chefe Cozinheiro do Ano, chegar finalmente a número dois do São Gabriel. 

“O João é extremamente educado e, por isso, é bom de lidar”, diz Leonel Pereira, que adianta ainda que ele “é algo criativo” e que aproveita “todos os tempos mortos para desenvolver algo”. “Além disso, é um excelente saucier [a pessoa que faz caldos e molhos — fundamentais em restaurantes de topo] e dá-me uma segurança muito grande nos pontos de cozedura. Quando não estou, fico descansado.”

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Quis começar pela base, a cozinha, e no futuro, eventualmente, fazer a parte de gestão Foto: Filipe Farinha/Stills

Viegas é ambicioso, mas ao mesmo tempo humilde, e Pereira incentiva-o e está a ajudá-lo a melhorar a parte de liderança que lhe faltava. Leonel tem consciência que não será um fiel numero dois por muito tempo, mas isso não é nada que o transtorne, antes pelo contrário. “O João está a fazer uma carreira para ter o espaço dele e isso é uma vantagem porque dá o seu melhor, enquanto recebe, também”. “Vou tê-lo aqui mais dois ou três anos, mas não o vou prender porque ele vai querer seguir o caminho dele”, prossegue. João Viegas corrobora e adianta que antes de dar esse salto gostaria de “conhecer o mundo” e de trabalhar no estrangeiro “como segundo de outros chefs”. No fundo, deseja aprender o máximo possível “para ter os pés bem assentes e não dar nenhum passo em falso”. M.P.

Stefan Langmann

Vila Joya

Durante vários anos, Stefan Langmann teve uma vida de nómada. Enquanto o ouvimos contar, quase perdemos conta às vezes que entrou e saiu do Vila Joya, o hotel de luxo em Albufeira onde hoje é head-chef ao lado do chef executivo Dieter Koschina, e que ostenta duas estrelas Michelin. 

“A primeira vez que vim para o Vila Joya foi há onze anos, era muito jovem, tinha cerca de 21 ou 22”, recorda o austríaco. “Trabalhei seis meses, depois o hotel fechou para o Inverno durante dois, voltei por mais seis meses.” Nos intervalos, corria mundo. “Trabalhei na Áustria, na Alemanha, em Espanha. Muitas vezes deixei esta casa pensando que nunca mais voltaria.”

Mas, de vez em quando, recebia uma chamada de Koschina: “Podes voltar?”. Ele voltava porque o Vila Joya foi sempre uma casa de família, e a relação, não só com Koschina mas com a dona do hotel, Joy Jung, era mais do que profissional, era de amizade.

Agora, diz, que acabou “a vida de cigano” e que vai “assentar”. O último regresso aconteceu em Março, mas desta vez é diferente: ser head-chef significa que Koschina confiou a cozinha nas mãos de Stefan e que “95% das vezes” os menus — que aqui mudam diariamente — são desenhados por ele.

É também ele quem, no dia-a-dia, tem que gerir a equipa que, neste momento, “em fim de estação”, tem mais austríacos do que é costume. “Esta é uma cozinha internacional e falamos inglês. Quando há mais germanófilos, a tendência é para começarem a falar em alemão e isso não é bom.”

Não significa, contudo, que Langmann esteja aqui para fazer a sua cozinha. Isso é algo que ele tem muito claro na cabeça. “Não estou aqui para ser a estrela e cozinhar tudo o que me apetecer. Não é nada disso. Temos que ver quem são os nossos clientes. Temos pessoas que vêm aqui há 25 anos e que vêm por causa da cozinha de Koschina.”

Quando entrou pela primeira vez no Vila Joya tinha já passado por outros restaurantes, mas cada cozinha é uma história diferente e foi preciso aprender. “Vim para uma posição em que tinha que saltar por todas as tarefas. Depois acabei por ficar na secção dos molhos, que foi muito difícil para mim, tudo era novo. Aprendi muito. Esforcei-me bastante para fazer o que o chef queria.”

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Não estou aqui para ser a estrela e cozinhar tudo o que me apetecer. Não é nada disso. Temos que ver quem são os nossos clientes. Temos pessoas que vêm aqui há 25 anos e que vêm por causa da cozinha de Koschina Foto: Filipe Farinha/Stills

Foi também a descoberta de um país que, para um jovem austríaco, era naquela altura completamente desconhecido. “Aqui vivemos e trabalhamos na costa, temos os melhores produtos do mar, o peixe, os mariscos, não se pode comparar com a Europa Central, onde quando se recebe um peixe ele já teve três dias de viagem.”

Ao fim de alguns meses dessa primeira experiência já se sentia mais confiante. “Sabia como ele queria as coisas e tive uma vida muito boa”, conta, sempre sorridente. E como é que Koschina quer as coisas? “Tem uma cozinha de base clássica com um twist moderno. Koschina pensa em primeiro lugar no sabor, não pensa tanto na apresentação, como outros chefs. É sabor, sabor, sabor. Quando se trabalha ao lado dele, ao fim de algum tempo sabe-se exactamente o que ele quer e o que não quer.”

Agora que Koschina está muitas vezes ausente em viagens de trabalho, cozinhando pelo mundo, Stefan faz os pratos e mostra-os para o chef aprovar. E se tivesse um restaurante próprio, cozinharia de outra maneira? Sim, provavelmente. “Gosto de comida simples que fique sexy no prato.” Mas para já não está a pensar nisso. “O importante aqui não sou eu. Vila Joya é sobre Koschina.” A.P.C

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