Sim, é uma nova tradução da Bíblia
Como pode o Padre Mário Sousa garantir que a tradução de Frederico Lourenço não foi “dialogada” com helenistas, leitores ou teólogos?
O Padre Mário Sousa publicou neste jornal um interessante artigo sobre a tradução da Bíblia por Frederico Lourenço. A qualidade do seu trabalho (estudioso que passou pelo Pontificio Instituto Biblico, grande instituição jesuítica, tal como a Pontificia Gregoriana) e as questões do seu artigo justificam, no entanto, algumas notas da minha parte – na qualidade de editor da obra que o Padre Mário Sousa insinua ter sido apresentada como sendo a primeira tradução das línguas originais para português. Lamento desmentir essa afirmação, que nunca o editor ou o autor patrocinaram. Trata-se, sim – insisto – da primeira tradução integral da Bíblia Grega, a Septuaginta; ou seja, uma versão mais completa, contendo todos os livros do Novo Testamento, e 53 do Antigo Testamento (ou seja, mais sete do que a tradução actual do cânone católico). Este é um facto. As duas mais completas traduções da Bíblia em línguas modernas têm como base, aliás, esse texto grego – a edição inglesa de Nicholas King (2013) e a alemã, de 2009. Nenhuma delas é “herege”. Nasceram no interior do catolicismo.
Um dos ângulos de ataque contra esta edição tem a ver com a insistência de Frederico Lourenço “numa tradução linguisticamente mais exacta”. O Padre Mário Sousa assinala a intenção (e a competência do autor), que considera “positiva”, mas nota a perda da “alma semântica” da Bíblia porque lhe falta uma “finalidade religiosa”. Porém, quando ocorre Frederico Lourenço invocar teólogos para melhor contextualizar as suas opções, Mário Sousa acha isto uma contradição. Como se a teologia fosse propriedade de teólogos e a Bíblia refém da sua finalidade religiosa. Acontece que a maior parte dos estudos mais inovadores sobre a Bíblia (sem isso desmerecer o trabalho interpretativo de teólogos como o Padre Mário Sousa) tem origem nas áreas de filologia de Oxford, Yale, Harvard, Cambridge, etc. É nesse domínio que se situa a tradução de Frederico Lourenço – e não a fazer concorrência a uma Bíblia confessional e “finalista”.
O que uma minoria de críticos oriundos da igreja católica sustenta é que só é boa uma versão de índole religiosa (com a sua “alma semântica”) e que os leitores não poderão apreciar a beleza incandescente do texto de Lucas, as perigosas insinuações de João, a complexidade de Marcos, se não forem guiados por teólogos, pela igreja, pela fé ou pela Conferência Episcopal (CE) – que patrocina, afinal, uma nova tradução para daqui a uns anos. Espantemo-nos. Então tudo está bem nas traduções bíblicas, e afinal a CE promove uma nova tradução feita por uma equipa que inclui tradutores de versões anteriores?
Nem Frederico Lourenço nem o editor apresentaram esta edição como “a” Bíblia” (ao contrário de uma anterior edição confessional). Mesmo assim, vozes da igreja apressaram-se a esclarecer que se tratava apenas de “mais uma Bíblia” (como se fosse um defeito) e que a CE promove “mais uma Bíblia” nos próximos anos – ninguém escapa à tentação.
Finalmente, Mário Sousa critica o que seria a “fraqueza” desta versão: ter sido obra de um homem só e não de um comité de sábios enquadrados por uma instituição religiosa. Ora, sempre houve traduções solitárias da Bíblia: São Jerónimo, Wycliffe, Tyndale, Lutero, Ferreira d’Almeida, Pereira de Figueiredo ou, ainda agora, a notável versão de Nicholas King, de Oxford. A “Bíblia do Rei James”, de 1611, tece como base a “tradução solitária” de William Tyndale, académico de Oxford queimado vivo (por ter traduzido a Bíblia) em 1536. Como pode o Padre Mário Sousa garantir que a tradução de Frederico Lourenço não foi “dialogada” com helenistas, leitores ou teólogos?
A verdade é que Frederico Lourenço procurou o espírito da língua em que o Novo Testamento foi escrito; e isso não é pouco num país onde os leitores da Bíblia foram condenados à fogueira – por lerem a Bíblia.
Editor da Quetzal