Sigilo bancário? Quem não deve, não teme
O projeto deve assegurar inequivocamente, de modo muito claro e objetivo: quais os critérios de análise e avaliação a considerar; quais os índices mínimos de desconformidade que importa efetivamente ter em consideração; quem, como e em que condições acede e analisa os elementos informativos; como é
Por estes dias muito se tem discutido, na opinião pública portuguesa, uma proposta legislativa do Governo que, ao que se sabe, parece ir no sentido da criação de um mecanismo que, em traços muito gerais, compreende uma espécie de processo de verificação automática de conformidade entre a evolução dos saldos bancários registados e os correspondentes rendimentos anualmente declarados, relativamente a cada cidadão ou entidade. Depois, ao que parece, com base nos resultados desse confronto, e naturalmente para as situações de desconformidade evidente entre uma coisa e a outra, suscita-se a possibilidade de se proceder, noutro tipo de procedimento administrativo, incluindo a possibilidade de recursos a procedimento criminal, a uma recolha complementar de elementos informativos, que permitam perceber, de modo mais claro, as razões explicativas para tais desconformidades.
Para poder ser adotado, este procedimento carece naturalmente de alterações ao nível do funcionamento do instrumento do sigilo bancário. E parece ser justamente em relação a este ponto que o projeto se torna controverso. Alguns entendem que um mecanismo com estas características oferece perspetivas interessantes no âmbito dos instrumentos de despiste de um leque de situações fraudulentas e criminosas, como sejam a fraude e evasão fiscal, a corrupção, o branqueamento de capitais, a criminalidade económica e também a ocultação das receitas geradas pela grande criminalidade organizada, como sejam o tráfico de drogas, de seres humanos ou de armas. Para outros, a questão pode assumir outros contornos, designadamente um modo de intromissão em vertentes da vida dos sujeitos que ainda se consideram particularmente reservadas, como seja o do recato da informação bancária e financeira dos cidadãos.
Como sabemos, o sigilo bancário, ou seja a garantia legalmente assegurada de reserva de confidencialidade sobre a informação financeira relativa a saldos e transacções registadas nas contas bancárias em Portugal, tem sido um factor central de organização e funcionamento da estrutura financeira e da actividade bancária em Portugal. Talvez por isso – por esta espécie de tradição cultural associada a um certo secretismo – temos assistido a algumas reacções negativas sobre esta pretensa medida e aos efeitos que dela podem decorrer. De entre os diversos argumentos, cabe destacar os receios de excessivo controlo sobre a vida dos cidadãos ou, nos contornos mais sombrios, a possibilidade de daí resultarem modos de perseguição sobre as pessoas e os seus interesses particulares.
Contudo, pesados os argumentos de um lado e do outro, assim numa primeira vista, parece que os efeitos que se pretendem alcançar são mais concordantes com a salvaguarda dos interesses coletivos do que porventura os eventuais efeitos negativos que são invocados. Por um lado o projeto não parece ter o propósito nem o fim de tornar toda a informação de livre acesso do público, mas apenas e só às entidades e serviços a quem sejam confiadas essas funções de controlo, as quais ficam naturalmente vinculadas a um dever de reserva. Por outro lado, importa não perder de vista que, em qualquer caso, sobretudo quando se suscitarem disparidades dignas de outro tipo de esclarecimento, subsistirá também e sempre a natural reserva que decorre, desde logo, do princípio da presunção de inocência, o qual continua a ser válido e, por isso, deve ser assegurado.
Todavia é naturalmente importante e imprescindível que o projeto, a avançar, deva assegurar inequivocamente, de modo muito claro e objetivo: quais os critérios de análise e avaliação a considerar; quais os índices mínimos de desconformidade que importa efetivamente ter em consideração; quem, como e em que condições acede e analisa os elementos informativos; como é acondicionada a informação tratada; e também de que modo se garante que os dados colhidos são unicamente utilizados para os fins do projeto. De outro modo, corremos o risco de ficar com um instrumento ineficaz, gerador de entropias e burocracias acrescidas no sistema de controlo e despiste da fraude e de outros delitos financeiros e também, porque não assumir, a possibilidade de este instrumento se tornar perverso por permitir fazer caça às bruxas.
“Quem não deve, não teme”, é o que diz a sabedoria do povo. Neste sentido, parece bom de ver que aqueles que, como presumo seja a generalidade das pessoas, possuem saldos e movimentações bancárias claros e inequívocos, associados às suas actividades profissionais, não terão grandes dificuldades em explicar essas correlações e não terão grandes receios de conviver com este modo de controlo sobre os registos dos seus movimentos financeiros.
Quanto aos outros, que acredito sinceramente seja uma pequena minoria – e será fundamentalmente para eles que este instrumento se destina – terão de considerar a possibilidade de mudar de modo de vida, ou então, hipótese que não pode ser de todo descartada, terão de refinar ainda mais as suas técnicas de ocultação de receitas indevidas.
P.S. - Importa referir que entretanto, depois da redação deste texto, o projeto do diploma relativo a alterações das regras do sigilo bancário foi vetado pelo Presidente da República.
Vice-Presidente do OBEGEF – Observatório de Economia e Gestão de Fraude