Adam Caruso: uma arquitectura que quer ser específica
O arquitecto fundou, com Peter St. John, um dos ateliers britânicos mais destacados internacionalmente na última década.
O arquitecto Adam Caruso fundou, com Peter St. John, um dos ateliers britânicos mais destacados internacionalmente na última década. O trabalho da dupla Caruso St. John posiciona-se num campo muito distinto daquele que marcou a arquitectura inglesa contemporânea. Em vez de edifícios com interesse em exprimir a tecnologia, a transparência e uma escala metropolitana, os arquitectos produziram vários trabalhos sobre e a partir da história da cidade, sobre os seus materiais e atmosferas. A gravidade e a densidade, numa perspectiva de continuidade, informam o seu trabalho.
Dos projectos que produziram em edifícios de valor patrimonial destaca-se a intervenção na Tate Britain, no Museu da Criança do Victoria & Albert Museum ou na casa-museu de Sir John Soane, todos em Londres. Construíram também vários museus e galerias onde se destaca o Centro de Arte Contemporânea de Nottingham ou o atelier-galeria do artista Damien Hirst em Londres. Hoje o atelier divide-se entre Londres e Zurique e tem vários projectos em curso na Europa.
Além da prática da disciplina ambos estão intensamente envolvidos com o ensino universitário e, no caso de Adam Caruso, com a produção de livros sobre outros arquitectos e com a reflexão teórica sobre o sentido de construir hoje. Daí resultou o livro The Feelings of Things. Adam Caruso esteve em Lisboa a convite do seminário do do.co.mo.mo, dedicado à reutilização de edifícios, que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, no início de Setembro.
As intervenções na cidade contemporânea europeia habituaram-mos à ideia de que os novos edifícios devem ser protagonistas. Contudo arquitectos como Caruso St. John demonstraram que nem sempre tem que ser assim. A arquitectura pode gerar significado sem ser protagonista. Concorda?
Concordo. Acrescentaria ainda a ideia de antagonista. A arquitectura não tem que ser protagonista por antagonismo. A arquitectura constitui uma forma de participação na cidade e não tem que possuir obrigatoriamente um conteúdo retórico. Hoje assistimos a uma inclusão da arquitectura numa estratégia global de branding que não me parece aceitável. Aquilo que é vendido aos clientes, sejam eles privados ou públicos, são retóricas.
Apesar disso tenho que dizer que falamos muito no atelier sobre a imagem da arquitectura. No passado todos os edifícios trabalharam com um conteúdo iconográfico. Aliás, era para ser compreendida pela sociedade que a iconografia era usada, por exemplo, nos edifícios religiosos. Hoje as iconografias são muito diversas. Está tudo mais misturado nesta sociedade o que é óptimo, contudo temos a sensação que não falamos a mesma linguagem.
Através da sua imagem os edifícios podem gerar significado. Não acredito que se possa gerar significado apenas pela autenticidade da construção, embora este seja um tema importante para nós. Na verdade, não gosto da palavra autêntico. É difícil definir o que é uma construção autêntica. Constrói-se uma imagem com materiais que permitem associações.
Por exemplo, em Lisboa o tijolo maciço à vista não é predominante, por isso seria uma coisa excepcional recorrer a este material. Arquitectos e não arquitectos iriam compreender de imediato esta excepcionalidade. Em Londres ocorre o inverso. O tijolo é o material predominante e por isso trata-se de uma questão de encaixar no que já existe. Se ambicionamos fazer arquitectura é o modo como os tijolos são colocados que importa. O arquitecto Louis Kahn (1901-1974) perguntava “o que é que o tijolo quer ser?”. Não sei o que é que o tijolo quer ser, mas sei que temos que produzir uma imagem com ele. Uma imagem que permita associações, próximas ou distantes, com a sociedade e com a geografia.
Poderá a cidade genérica, um termo usado por Rem Koolhaas para descrever a cidade fruto do mercado global, ter um contraponto? Existirá espaço para uma arquitectura densa e não uniforme?
Por vezes penso que no atelier vivemos num mundo imaginário e nostálgico. O nosso trabalho baseia-se nessa possibilidade, embora não seja esse o rumo generalizado, o mainstream, da arquitectura contemporânea. Existe hoje uma pressão enorme para ser genérico e global, para fazer o mesmo em todos os lugares. O nosso trabalho é, totalmente, sobre ser específico.
Estamos neste momento a fazer vários projectos em cidades europeias. Acabámos agora a obra da sede do Bremer Landesbank, em Bremen, Alemanha. Quando nos apresentámos a concurso percebemos que fomos os únicos arquitectos não alemães. Fomos também os únicos a recorrer ao tijolo, material característico das cidades da Liga Hanseática. Bremen é, integralmente, uma cidade de tijolo. Todos os arquitectos alemães propuseram edifícios muito distantes deste universo. Foi necessário ter arquitectos de fora, com uma sensibilidade diferente, para chamar estas referências culturais e históricas, para fazer um edifício de Bremen. Para os projectos que estamos a fazer em Zurique procurámos a mesma estratégia, ligada à imagem dominante da cidade. Aí a tradição é de estuque e pedra.
Acredito na especificidade da arquitectura. Mas também acredito que podemos trabalhar com promotores imobiliários e clientes institucionais e garantir que cumprimos todas as expectativas que estes possuem, fazendo uma arquitectura específica. A cidade do século XIX foi construída assim, com arquitectura especulativa e comercial, que era absolutamente específica.
Como Amsterdão ou Paris.
Exacto. São tão diferentes essas cidades, resultado de uma aventura especulativa. É uma desculpa pensar que o comércio insiste em fazer cidades genéricas e uniformes. Não creio que os arquitectos tenham poder, mas vem da nossa profissão esse mito e essa conivência.
O atelier Caruso St. John tem trabalhado regularmente em edifícios com valor patrimonial. Foi uma escolha?
Não foi uma escolha. Quando começámos o nosso atelier, nos início dos anos 1990, era muito difícil aspirar a fazer um edifício novo no Reino Unido. Sempre gostámos de edifícios históricos, sempre falámos sobre estas arquitecturas, mas também estávamos interessados na arte contemporânea. Começámos a fazer pequenas intervenções em património e a trabalhar com o mundo da arte e, curiosamente, estes dois universos estavam ligados em vários pontos.
Trabalhar num edifício que já existe não é para nós mais limitativo do que trabalhar num lote vazio. Se encararmos um lote vazio de forma responsável vamos perceber que este está carregado de qualidades. O primeiro projecto que construímos foi uma pequena casa nova no Lincolnshire, Reino Unido. O município dizia que podíamos fazer o que quiséssemos. Nós quisemos fazer uma casa local em tijolo, depois de olhar com atenção para aquela aldeia empobrecida, retirando daí as suas melhores qualidades. Por outro lado, quando se trabalha num edifício que já existe, continua a haver margem para se propor uma espacialidade radical sem o destruir.
Todos os trabalhos são projectos de investigação onde se pode aprender muito sobre a história da arquitectura, sobre espaço e detalhes construtivos. Muitas vezes permitem-nos entrar numa escala de trabalho íntima e sensual. Tornámo-nos progressivamente mais experientes nas técnicas de intervenção neste tipo de edifícios. Creio que posso dizer que temos até uma posição ímpar neste tipo de trabalhos, no contexto britânico, como o que fizemos para a Tate Britain. Nos projectos patrimoniais nunca recorremos a arquitectos profissionais da conservação e restauro, fazemos nós todo o trabalho.
É também um trabalho de intuição?
Sim. Absolutamente. A ideia de conservação patrimonial é uma ideia que vem do modernismo. Era necessária porque os tecidos urbanos conheciam novas ameaças fruto da reconstrução do segundo pós-guerra. Face à ruptura generalizada operada pelo modernismo emergiu a ideia de articular a intervenção com o que já existe de um modo totalmente claro, fazendo a distinção radical entre o que é antigo, supostamente autêntico, e o que é novo.
Os trabalhos que fizemos em torno do património não partem deste pressuposto, são muito distintos entre si. Cada caso é um caso. Não creio que exista uma linha vermelha que não se possa ultrapassar. Por outro lado também acho que devemos aspirar a uma sensibilidade que possa fazer a conexão entre tudo.
A ideia de desenhar o interior e não apenas o invólucro tem marcado o seu trabalho. Qual o valor do espaço interior na nossa cultura?
É no interior que se estabelece a ligação de escala entre as pessoas e o espaço. Há um mito moderno, expresso por arquitectos como Norman Foster, onde se afirma que o exterior e o interior são a mesma coisa. Essa ideia que dá à fachada de vidro a função do exterior entrar no interior, e vice-versa, não nos interessa. Os espaços interiores são completamente diferentes do exterior.
Antes do Movimento Moderno era prática corrente dos arquitectos desenhar interiores. Estes tinham tanta complexidade conceptual como o desenho geral de um edifício. Se pensarmos em arquitectos como Michelangelo (1475-1564), que praticamente só fez interiores, John Soane (1753-1837) ou Karl Friedrich Schinkel (1781-1841) percebemos que os interiores eram arquitectura, não um embaraço. No século XX arquitectos como Joze Plecnik (1872-1957), Adolf Loos (1870-1933) Sigurd Lewerentz (1885-1975) ou Gunnar Asplund (1885-1940) continuaram a fazer interiores, com muita variedade de conceitos. Foi a partir daí que procurámos partir. A ligação emocional a um espaço doméstico e o modo como somos afectados pelo espaço público são os dois temas da arquitectura.
Essa densidade e riqueza de ambiente dos espaços interiores que de fala foi banida por uma ideia de arquitectura genérica?
Acho que se pode construir um interior com essa linguagem genérica e ser provocador. Não sei é se o resultado será confortável. É suposto os interiores domésticos serem confortáveis e os interiores dos edifícios públicos representativos e amáveis. A ideia do espaço genérico fala-nos sobretudo de uma forma de cinismo.
Os elementos decorativos, ou o ornamento, surge na vossa obra com regularidade. Ainda hoje parece existir um preconceito contra estes elementos.
O ornamento, a cor e a assemblagem de materiais são os meios da nossa arquitectura e possuem distintos potenciais consoante as escalas. Quando trabalhámos pela primeira vez com o artista Thomas Demand ele disse-nos: “vocês são aqueles arquitectos que desenham espaços para arte com cor!” (risos). Não é integralmente verdade porque fizemos várias galerias Gagosian que são brancas.
Voltamos aos mitos e preconceitos do Movimento Moderno em relação ao ornamento e à cor, embora Le Corbusier (1887-1965) tenha usado sempre a cor nos seus edifícios e Mies van der Rohe (1886-1969) escolhesse os materiais pela intensidade da sua cor. O interior moderno está associado ao espaço branco ou cinzento. Esta ideia de neutralidade é uma falácia. Por isso raramente usamos este tipo de ambientes brancos ou cinza. No exterior também não consideramos, habitualmente, a pintura como o meio principal de acabamento, preferimos sempre uma base material. Embora em cidades como Viena a cor aplicada no reboco seja a matriz do ambiente da cidade e seja magnífico.
Acabámos recentemente o projecto de reconversão de uma fábrica para uma Escola de Hotelaria em Lille, o primeiro que fizemos em França, onde usámos largamente a cor associada a materiais correntes de mercado. É o nosso projecto Lacaton & Vassal! (risos)
Referem habitualmente arquitectos como Louis Sullivan, Adolf Loos ou Sigurd Lewerentz. Estes possuem em comum uma ligação ao século XIX, a um certo ecletismo e à cultura clássica. É também este o vosso interesse?
Quando estava no 3º ano da faculdade, no início dos anos 1980, tive que fazer um projecto à maneira de um arquitecto que escolhêssemos. Escolhi o arquitecto austríaco Adolf Loos que era praticamente desconhecido no Canadá. Esta escolha mudou a minha relação com a arquitectura. Anos depois, o primeiro projecto que o Peter [St. John] e eu construímos, o Museu de Arte de Walsall, é um projecto inspirado em Loos. Está lá a complexidade espacial e a diferença entre o invólucro e o interior. É como uma casa de Loos transformada em museu.
Mais tarde, quando tentámos fazer edifícios de escritórios, que nunca conseguimos fazer no Reino Unido, passámos a olhar para Chicago e para a sua arquitectura moderna. Esta corresponde a uma ideia de qualidade urbana ímpar. Tão qualificado e específico como Veneza. A expressão urbana dos edifícios - as suas fachadas e acabamentos - levou-nos a investigar este tipo de arquitectura.
A relação entre progresso e um ambiente brutal de sobrevivência que caracterizou Chicago na transição entre os séculos XIX e XX permitiu a Sullivan produzir velozmente edifícios extraordinários com acabamentos sofisticados, embora pré-fabricados. É uma arquitectura poética, não fantasiosa, carregada de significado, num ambiente de desespero humano. Hoje ninguém está interessado nesta arquitectura. Tudo o que aí se constrói ignora esta especificidade de Chicago.
A monumentalidade é um dado para o vosso trabalho?
Não tenho receio da monumentalidade. Faz parte da carga representacional da arquitectura, mas tem que ser relevante e apropriada. Talvez a monumentalidade seja referida a propósito do nosso trabalho porque desejamos fazer uma arquitectura onde se sinta o peso e a gravidade. Não temos interesse pela ideia de edifícios que flutuam. Olhando para a história podemos dizer que a arquitectura gótica foi uma reflexão sobre a resistência à gravidade e a arquitectura clássica sobre a sua expressão.
O seu trabalho como professor tem dado origem à publicação de livros sobre arquitectos modernos europeus pouco conhecidos, como é o caso da dupla milanesa Asnago & Vender ou do francês Fernand Pouillon. Como é que este trabalho de investigação e edição informa o seu trabalho como arquitecto?
São fruto do meu trabalho com os alunos da ETH de Zurique sobre arquitectos que admiro. Produziram uma arquitectura específica e nacional, sem os aspectos sombrios da ideia de nacionalismo. As obras que construíram nas suas cidades são admiráveis porque afirmam uma ideia de pertença.
A ideia dos livros é trabalhar sobre arquitectos do século XX que estavam fora do Movimento Moderno. Estão ausentes da narrativa da modernidade, principalmente porque depois da Segunda-Guerra muitos foram deixados de fora, embora continuassem a trabalhar e sejam conhecidos nos seus respectivos países. As poucas publicações que existem não são em inglês. Vou agora editar um novo livro sobre o arquitecto alemão Rudolf Schwarz (1897-1961).
O seminário do do.co.mo.mo abordou uma das questões fulcrais da cidade contemporânea europeia, que é a reutilização e reabilitação de edifícios. Qual é a sua experiência sobre este processo?
Acredito que, sempre que possível, devemos tentar reutilizar um edifício em vez de o demolir. É terrível ver hoje como existem tantos processos de demolição em Londres. Vivo nesta cidade há 30 anos e tenho visto como a sua atmosfera tem sido destruída.
Um bom exemplo de reutilização é o projecto para a Tate Britain. Foi sempre a Tate desde o início, sempre o mesmo programa, mas conheceu várias intervenções e ajustes ao longo do tempo, até chegar àquela que o nosso atelier fez. O mesmo se pode dizer para a fábrica que reconvertemos em Escola de Hotelaria em Lille, numa área suburbana da cidade. É uma transformação de um espaço em espera e agora alberga uma escola e jardins. A preservação da imagem da fábrica foi crucial para a cidade e para a sua história. Tudo isto foi feito com grande esforço e complexidade, desde a despoluição dos edifícios até à localização do novo programa. Teria sido mais barato fazer um edifício novo mas o significado para a cidade não seria o mesmo.
Os tecidos urbanos e os seus edifícios albergam uma história humana ou social. São uma construção física e intelectual e actuam como testemunhas de um conteúdo colectivo. A cidade é o grande artefacto cultural da humanidade, a sua maior invenção.