Se me deixarem continuarei a ser juiz
O juiz Carlos Alexandre concedeu uma entrevista a um órgão de comunicação social. Não o conheço. A postura algo provinciana que apresenta sugere atracção e simpatia. Acrescente-se o distanciamento relativamente à ganância e dinheiro que caracterizam e gerem o mundo de hoje. A simplicidade e transparência exigíveis de um magistrado em funções.
O seu pensamento, em várias vertentes, deveria servir de exemplo a muitos dos seus colegas. Esquecidos das funções que exercem. Atentos a outros “valores”. À carreira, ao despachar de qualquer modo o que lhes cai na secretária em forma de processos. Ao tratamento linear dos direitos, liberdades e garantias. Ao esquecimento e lateralização dos grandes princípios constitucionais.
Como seria de esperar, a entrevista provocou diversas reacções negativas. Até ostensivas e persecutórias. Condenações claras. Repúdio. Continuamos num sítio em que se não promovem ou respeitam as diferenças. Nas magistraturas, já se sabe, vigora um código censório. Da boca cosida.
Não admira que o ex-primeiro ministro se revolte. José Sócrates tem esse direito. Defender-se daquilo que, na entrevista, lhe parecem referências directas ou indirectas ao processo em que é visado. Aí, o juiz não terá sido feliz.
O ex-primeiro ministro tem razões de sobra para se queixar do processo investigatório. Num estado onde haja lei é imperdoável e abusivo que a investigação se vá prorrogando, ano após ano, ad aeternum, com o estafado choradinho dos meios. A análise de documentos. As cartas rogatórias que nunca mais chegam. Estamos fartos disso.
O que atrasa os processos não é a complexidade dos mesmos, é a incompetência. Não ser capaz de vencer as dificuldades processuais. Há sempre mais uma prorrogação com a bênção da hierarquia. Outra(s) à revelia e ocultas da hierarquia. Isso não é com o juiz de instrução. Não investiga. Zela pelos direitos e liberdades na pendência do inquérito. Quando estão em causa liberdades fundamentais, os actos processuais devem ser autorizados ou praticados pelo juiz de instrução. Quem investiga é o Ministério Público (MP). Com carta de autorização constitucional e legal.
Ergueram-se vozes e canetas para condenar o juiz. Ao invés do bom senso na cabeça, têm aí alojada uma metralhadora apontada à sua cabeça. Há os do costume, que debitam sobre tudo, sem contraditório. Nunca ouvem. Têm sempre razão. São os que mais metralharam. Desprezaram as mensagens da entrevista.
O Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos quer (ou exige) um inquérito. Já. Não se entende a quê. Quer já. Vivemos aqui. Um sindicato quer um inquérito às declarações de um juiz numa entrevista! Estamos nisto.
Reputados deputados pressionam o juiz a pedir o afastamento do processo . É admirável. Um juiz deve pedir ou considerar o seu afastamento de certo processo por ter emitido uma opinião que não tem nada a ver com o objecto do dito. Deputados da Comissão Parlamentar dos Direitos, Liberdades e Garantias. Assim vai a democracia no burgo. Como se um juiz tivesse legitimidade para, a seu bel-prazer, se afastar de um processo que lhe está distribuído legalmente. Para onde a independência, imparcialidade e a isenção do juiz? Para o fim fica o melhor. Ou o pior.
Os magistrados, sobretudo eles, conhecem os apetites dos seus conselhos superiores. Não lhes servem para nada.
Qual guarda pretoriana da moral e bons costumes exercem com mão de ferro a acção disciplinar. Detestam a liberdade de expressão dos magistrados. Agem como proprietários dessa liberdade. Os magistrados são para digerir processos. Sem opinião sobre nada. Fora do mundo. Assépticos, como se não fossem cidadãos com todos os direitos que a Constituição e leis lhes conferem. Com os deveres impostos pela Constituição e respectivos estatutos.
Na ânsia não se sabe do quê, mas adivinha-se, a hierarquia superior dos juízes vai investigar. O quê? A entrevista do juiz. Não se sabe é o quê. O mero anúncio da existência de um processo de inquérito constitui intimidação sobre o magistrado. Uma afronta à sua liberdade de expressão. O juiz tem esse direito provindo da Constituição da República Portuguesa. Que crime cometeu na entrevista? Que falta disciplinar?
Entende-se o desabafo final da entrevista: “ Se me deixarem, vou continuar a ser magistrado judicial”.
Há-de continuar.
Procurador-geral adjunto